Trechos selecionados desse texto de Olavo de Carvalho.
(...) O poeta Stephen
Spender, após romper com o Partido Comunista, já havia admitido que o que
conduzia os intelectuais ocidentais à paixão por ideologias contrárias à
própria liberdade de que desfrutavam era o sentimento de culpa e o desejo de
livrar-se dele a baixo preço.
(...) A origem dessa culpa
reside no fato de que amplas faixas da classe média passaram a desfrutar de
lazeres e prazeres praticamente ilimitados, sem ter de arcar com as
responsabilidades políticas, militares e religiosas com que a antiga
aristocracia pagava o preço moral dos seus desmandos sexuais e etílicos.
(...) Já na Idade Média, os
encargos da defesa territorial incumbiam inteiramente à classe aristocrática:
ninguém podia obrigar um camponês ou comerciante a ir para a guerra, mas o
nobre que fugisse aos seus deveres bélicos seria instantaneamente executado
pelos seus pares. Noblesse oblige: a classe aristocrática era
liberada de parte dos rigores morais cristãos na mesma medida em que pagava
pela sua liberdade com a permanente oferta da própria vida em sacrifício pelo
bem de todos.
(...) Ao contrário, junto com
a liberdade vem o acesso a bens inumeráveis e a um padrão de vida que chega
mesmo a ser superior ao da velha aristocracia – tudo isso a leite de pato.
Ortega y Gasset notou, no seu clássico de 1928, La Rebelión de
las Masas , que o típico representante da moderna classe média, o
“homem massa”, era realmente um filhinho-de-papai, um señorito
satisfecho que se julgava herdeiro legítimo de todos os benefícios da
civilização moderna para os quais não
havia contribuído em absolutamente nada, pelos quais não tinha de pagar coisa
nenhuma e dos quais, geralmente, ignorava tudo quanto aos sacrifícios que os
produziram.
Por
toda parte, nas civilizações anteriores, um certo equilíbrio entre custo e
benefício, entre direitos e deveres, entre prazeres e sacrifícios, era reconhecido
como o princípio central da sanidade humana. A liberação de massas imensas de
população para o desfrute de prazeres e requintes gratuitos é uma das situações
psicológicas mais ameaçadoras já vividas pela humanidade desde o tempo das cavernas. Para cada indivíduo engolfado nesse
processo, o efeito mais direto e incontornável da experiência é um sentimento
de culpa tanto mais profundo e avassalador quanto menos conscientizado.
(...) O señorito
satisfecho é corroído por um profundo ódio a si mesmo, mas está
proibido, pela cultura vigente, de perceber a verdadeira natureza de suas culpas,
e mais ainda de aliviá-las mediante a confissão religiosa e o cumprimento de
deveres penitenciais.
(...) A culpa mal
conscientizada, conforme a psicanálise demonstrou vezes sem conta, acaba sempre
se exteriorizando como fantasia persecutória e acusatória projetada sobre os
outros, sobre “o mundo”, sobre “o sistema”. O homem medianamente instruído do
nosso tempo joga suas culpas sobre “o sistema”, fingindo para si mesmo que está
revoltado pelo que ele nega aos pobres, quando
na realidade o odeia por aquilo que esse sistema lhe dá sem exigir nada em troca. Não que o sistema seja isento de culpas; mas a mesma
prosperidade geral que espalha os benefícios da civilização entre massas
crescentes que jamais poderiam sonhar com isso nos séculos anteriores mostra
que essas culpas não são de ordem econômica, mas cultural: o capitalismo
não cria miséria e sim riqueza; mas junto com ela espalha o laicismo e o
permissivismo, rompendo o equilíbrio
entre o prazer e o sacrifício, necessidade básica da psique humana. Daí o
aparente paradoxo de que o ódio ao sistema se dissemine principalmente – ou
exclusivamente – entre as classes que dele mais se beneficiam materialmente.
(...) A tentação socialista
aparece aí como o canal mais fácil por onde as culpas do filhinho-de-papai são
jogadas precisamente sobre as fontes do seu bem-estar e da sua liberdade. Vejam
essa meninada da USP, gente de classe média e alta, depredando uma universidade
gratuita, e compreenderão do que estou falando: o que esses garotos precisam não é de mais benefícios; é de uma
cobrança moral que restaure a sua sanidade. Mas, como os representantes do
Estado são eles próprios señoritos satisfechos que também não
compreendem a origem das suas próprias culpas, sua tendência é fazer dos jovens enragés um
símbolo da sua própria consciência moral faltante; daí que lhes cedam tudo, num
arremedo de penitência, corrompendo-os e
corrompendo-se cada vez mais e precipitando uma acumulação de culpas que só
pode culminar na suprema culpa da sangueira revolucionária. “Vivemos num mundo
demente, e sabemos perfeitamente disso”, dizia Jan Huizinga na década de 30,
pouco antes que o desequilíbrio da alma européia desaguasse no morticínio
geral.
(...)Transcorridas quase oito
décadas, a humanidade ocidental nada aprendeu com a experiência e está pronta a
repeti-la. Hipnotizada pela lógica do desejo, que não enxerga cura para os
males senão na busca de mais satisfações e mais liberdade, como poderia ela descobrir que seu problema não é falta de bens ou
prazeres, mas falta de deveres e sacrifícios que restaurem o sentido da vida e
a integridade da alma?
(...)
Os capitalistas, os representantes do “sistema”, por sua vez, aceitam
passivamente ser objeto de ódio e até se regozijam nele, na vã esperança de
assim purgar suas próprias culpas; mas, como estas não residem onde as aponta o
discurso revolucionário, cada nova concessão ao clamor esquerdista os torna
ainda mais culpados e vulneráveis.