segunda-feira, 15 de maio de 2017

Rezar, esperar, agradecer

Faith means believing in advance what only makes sense in reverse. - Philip Yancey
No domingo, voltei pra casa pra fazer uma mala: minha esposa estava no hospital com minha filha, que seria internada por um problema respiratório. Sentei numa banqueta no banheiro, rezei, tentei controlar a respiração como na yoga e pensei: as próximas horas vão ser duras; que o tempo passe rápido e cheguemos logo na, sei lá, quarta-feira. Por várias vezes ao longo da vida, em momentos especialmente mais "reflexivos" - Natal, Ano Novo, diante de uma paisagem - fazendo aquele tradicional review do que vinha acontecendo, pedia a Deus para que eu conseguisse levar essa calma para os momentos de turbilhão. É fácil explicar uma história depois que ela passa; difícil é ter o discernimento para, na hora certa, facilitar a resolução e encaminhar melhor o rumo da história. Era o que eu estava tentando fazer ali. Mas, tolinho!, quarta-feira ainda seria cedo.

Helena acabou parando na UTI por longos 6 dias. A porra da merda do ciclo da doença tem seu pico no 5º~6º dia; isso significa que, ao contrário do que se espera quando se está num hospital, ela PIORAVA a cada dia. Poupando maiores detalhes, eu vi cenas fortes com minha filha (... uma vez vistas, jamais serão des-vistas...). A possibilidade de perder minha filha - pelo menos, na minha cabeça - foi bastante real. Nesse momento, diante de muitas crises de choro, lembrei da experiência de Abraão, que levando seu filho para o local da morte, mantinha a fé em Deus. Lembrei de 2 textos. O primeiro da peça "Alma Imoral", de Nilton Bonder:
Abraão caminha com o filho pelos montes de Moriah. No seu íntimo, a dúvida é terrível. Em determinado momento o filho lhe pergunta: “pai, onde está o cordeiro que oferecerás em holocausto”? Ele responde: “Deus o enviará, filho”. Ele não quer obedecer. Ele não quer desobedecer. E ele não obedece. E ele não desobedece. Porque ao colocar o filho entre os gravetos Abraão escuta um terceiro comando divino: “Não lance tua mão sobre o mancebo e não lhe faça mal”. Ao ouvir esse terceiro comando divino Abraão não trai nem a Deus e nem a si e ainda consegue legitimar a sua transgressão em relação à cultura como sendo a verdadeira vontade do seu Deus. O segredo de Abraão está na sua capacidade de não revolta. Na sua capacidade de manter um altíssimo nível de tensão interna e esperar. Esperar ouvir Deus desdizer. E ele ouve. Essa capacidade de ouvir Deus expressar uma vontade diferente da que inicialmente tinha revelado é a capacidade humana de legitimar e dar prioridade aos interesses da alma, munido de seu corpo moral. Abraão, assim, funda a história porque ele compreende, através do seu esforço, que seus comandos divinos lhe são internos, mas tão internos, tão internos, que vêm de uma superfície entre o eu e o não eu. Uma superfície em região tão profunda e sagrada que pode até ser simbolizada como o céu e o inferno.  Essa é a “terra prometida” com que Abraão sonha. Uma terra que não sacrifique os seus filhos.
O segundo foi "Temor e Tremor", de Soren Kierkegaard, que também versa sobre a angústia, a dúvida doída e calada de Abraão. Para isso, a fé:
A fé é a mais elevada paixão de qualquer homem. Talvez existam muitos homens de cada geração que não a atinjam, porém nenhuma vai mais além dela.
O único modo de encarar essa semana foi essa resignação absoluta, esse completo aceitar. Não procurar "entender" nem encontrar porquês.

Também foi importante separar a dor (real) do medo (potencial). Como nesses trechos de "Segundas Intenções", também de Nilton Bonder:
Não é tanto o que me dói que me assusta; mas o que pode doer. Os sábios reconheciam que o mais poderoso recurso da imaginação é o medo, que pode ser definido como uma mentira muito sofisticada. O medo não é a subversão de um fato ou evidência, mas uma mentira sobre o tempo. Ele não distorce a realidade em si, apenas o seu tempo. Em vez de olhar a realidade no presente, o medo faz com que a vejamos nas imagens projetadas sobre o futuro. Como o futuro ainda não existe, tudo aquilo pelo qual nos preocupamos está no território da mentira, produzido pela inventividade. O medo tenta neutralizar o elemento mais poderoso do corpo e que tanto o ameaça: a dor. Diferente do medo, a dor localiza-se no território da verdade, que é o agora.
Todo choro contém uma fração que não é de dor, mas de uma segunda intenção que quer controlar a dor. Para realizar isso, o ‘Eu’ tem como artifício transformar a experiência do acidente que causa a dor numa ameaça constante. O choro passa a existir por preocupação e por controle, não mais pelas consequências dolorosas do ocorrido, mas pela possibilidade dessa dor se repetir. No choro está o truque de transformar nossa impotência, o fato de que somos vítimas, numa forma falsa de potência e controle. Reagimos assim não só à dor, mas à injustiça da dor e à perda do privilégio que ela representa.
Minha filha está bem. Saímos domingo, presente de Dia das Mães. E, ex-post, todo esse medo pode parecer meio besta, claro. Mas, mesmo assim, sem dúvida, provocou uma transformação aqui dentro.

Não posso ser acusado de não valorizar as "pequenas coisas cotidianas", as sortes-bençãos que tenho na vida, como minha família. Valorizo e agradeço frequentemente. Mas, talvez, eu tenha aprendido a dar menos valor para outras coisas. Nessa semana, teve um problema grave na empresa, teve uma eliminação grave do meu São Paulo. Quer dizer, ... nada disso foi GRAVE MESMO...

Também percebi que não adianta tentar se antecipar muito às dores futuras, transformando-as em medos presentes. Meu grande medo é bandido, mas quem me deu susto mesmo foi um vírus. Difícil lutar contra o acaso...

E, falando em acaso, penso nas, sei lá, mais de 50 pessoas que passaram pela vida da Helena nessa semana: médicos, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, motorista de ambulância, secretária de internação,... Quantas avaliações, quantos pequenos procedimentos poderiam ter dado errado e...: não deram!

Toda minha vida parou. Fui só 2 dias ao escritório, sem ter dormido quase nada no hospital, claro. E foi extremamente difícil fazer qualquer coisa: o cérebro simplesmente não reagia. Também voltei a lembrar - na verdade, eu nunca tinha esquecido - da sorte-benção de ter esse trabalho flexível. Fiquei triste pelos que não tem essa sorte, inclusive funcionários da empresa.

Também tive muita ajuda da família nesse período. E quem não tem?...
Conversando sobre filhos & medos com uma amiga há algumas semanas, ela me disse: a experiência de ter filhos é uma prova de humildade, pois todos os dias eles desafiam nossas certezas. Helena desafiou muita coisa em mim nessa semana. Refleti bastante sobre a relação assimétrica entre pais e filhos: é uma relação de amor, claro, mas é uma relação assimétrica. O amor que emana dos pais é, sei lá, mais "ativo"; os atos de amor dos pais são silenciosos, contritos, quase que "não-reconhecidos"; é uma oferta de tempo, sono, preferências ... e que os filhos jamais vão perceber, não por maldade, mas por simples ignorância. Encanado como sou, imaginei tudo que meus pais fizeram por mim e eu não pude ou não soube reconhecer. De novo, fiquei mais triste.

Ficar na UTI por uma semana é uma experiência de humanização, um - como dizem - "BANHO DE POVO" (considerando que não fiquei num hospital ~TOP™, como falam os jovens). O drama de casos mais graves, de bebês ainda mais novos, de pacientes com longas permanências, de neuropatas, cirurgias punks... Enfermeiras que deixam filhos doentes em casa para cuidar dos filhos doentes dos outros... É tudo muito forte.

Mas tudo isso fortaleceu minha fé. Não pelo resultado positivo, claro. Mas pela experiência em si. Peço apenas mais 2 coisas: que todo esse sentimento não se enfraqueça em mim com o passar do tempo e que eu possa transmitir toda essa reverberação para outras pessoas.
"Eu creio mas aumentai a minha fé".