terça-feira, 22 de novembro de 2016

Do Ódio

Trechos selecionados do excelente 'Do Ódio', de Gabriel Liiceanu.




Ambiguidade epistemológica da fórmula "não poderes odiar": significa não poderes invejar e, assim, chegares ao ódio? Ou significa não poderes reagir ao mal feito, fazendo outro?

Nos obriga a distinguir entre um "ódio de partida" e um "ódio de reação", tendo o primeiro justificação psíquica, mas não moral; e o segundo, igualmente justificações psíquicas e morais.

1. Um homem chega a odiar o outro pelas qualidades que não tem ou pelo grau acrescentado das qualidades que ambos têm (...). Odiando-o, ele lhe deseja o mal. Este mal não responde de maneira nenhuma a nenhum gesto pelo qual o odiado tenha feito àquele que o odeia. (...) O ódio nasce "puro". (...) Porque não tem o precedente no ato ou feitos do odiado, o ódio dele é "de partida". O odiado é a vítima passiva daquele que odeia. Ele se vê odiado "do nada". (...) É gerado estritamente do ponto de vista psicológico. (...) É profundamente imoral precisamente à medida que não tem nenhuma justificação moral. (...) Gratuito em sua maldade.

2. Um homem chega a odiar o outro pelo mal que aquele lhe faz. (...) É justificado como réplica ao mal suportado. (...) "ódio de reação". O ódio de reação, procurando recolocar o mundo em equilíbrio, é um ódio com justificativas morais.


Todo o tempo da vida, saibamos ou não, comparamo-nos com os outros. Que posição ocupo do mundo em relação aos que a vida me colocou no caminho? (...) Nossa vida é de fato uma contaminação perpétua que resulta da "fricção" contínua com os outros. (...) Como me distingo dos outros?

O encontro com o igual ou superior termina no amor, passando pela admiração, ou no ódio, passando pela inveja. (...) Dito de outro modo, não se põe o problema do ódio enquanto o outro é avaliado como inferior.

Goethe sugere que é "mais rentável" amares, e a "salvação" neste caso é, evidentemente, a do "inferno do ódio".  (...) Em suma, o ódio nasce da impotência de amar.

Numa comunidade atomizada e desunida, em que a admiração está em vias de desaparecer, o sucesso de alguém já não pode ser avaliado em termos positivos. O ódio é que passa a ser automaticamente um sintoma de sucesso. É odiado, logo, existes.


Uma qualidade que desejo pra mim, eu a descubro no outro. (...) Odeio ao que tem parte neles, porque considero que um puro acidente impediu-o de ser meu. (...) Não é minha impotência essencial que ponho em discussão, fundada nos limites dos meus dons, mas a "injustiça cósmica": Por que ele, e não eu?


(...) Desaparece o semelhante e Caim percebe Abel mais como diferente (...), depois como oposto a ele (...), no fim, como inimigo (...), digno de ser morto. (...) "Algo" tem de ser tão poderoso em sua imponência, tão importante, que impeça Caim de reconhecer Abel e, assim, reconhecer a si nele. Este "algo" é o ódio. (...) Inveja-ódio-crime.

Deus não faz senão condená-lo ao estado que, pelo ódio, Caim já obtivera: à cegueira.

Adão e Eva, calcando o mandamento divino, abrem o problema da opção. Caim, o filho mais velho, o corta em favor do mal.

O ódio de Caim é pessoal. (...) sendo gerado pontualmente pela inveja. (...) é uma paixão negativa espontânea. (...) algo ruim. (...) Pressupõe um castigo. (...) O crime tem um reverso e um eco  (...) no sofrimento que este lhe provoca. (...) vergonha (...) remorso.

Ao contrário do amor, por exemplo, cuja satisfação pode multiplicar-se ao infinito nos limites desse mesmo objeto, o ódio em sua forma originária não pode realizar-se de maneira absoluta senão uma única vez, juntamente com o crime. (...) A principal limitação do ódio consta no fato de que o odiado não pode ser morto mais do que uma vez. [Maaaaaas:]

A espécie humana teve de esperar até o final do século XIX para que as "insuficiências" do ódio originário - a satisfação limitada, a direção única, o castigo, o opróbrio, o sofrimento ou remorso - fossem eliminadas e substituídas pelo oposto delas. Era necessário que o ódio se transformasse numa paixão honrada, era necessário que o assassino perdesse sua aura funesta, e juntamente com esta, todo o cortejo que geralmente acompanha a ideia de pecado, remorso e castigo tinha de ser, a seu turno, suprimida. Que elemento miraculoso faltava ainda para que tudo isso acontecesse? Para fazer do ódio um sentimento preferível ao amor, para fazer do crime algo bom e do autor dele um herói, para pôr, em lugar do remorso, o respeito de si e, em lugar do pecado supremo, a façanha que devia ser encorajada, louvada e recompensada?

O que descobria, juntamente com Marx, o final do século XIX é que o ódio pode ser organizado. Dito de outro modo, ele pode ser induzido, argumentado, explicado, teoretizado, previsto com um escopo, com um programa e posto de modo sistemático a trabalhar. (...) IDEOLOGIA. Desde esse momento, o ódio passa a ter dignidade histórica e aura científica. E o crime que o acompanha é, a seu turno, enobrecido, porque a finalidade a que ele serve sonha com o bem para muitos e, no limite, para toda a humanidade. O ódio vazio tem a eficiência de um arco e flecha, de um mosquete que dá um único tiro. Previsto com ideologia, ele se torna uma arma com repetição.

Transformação do ódio em "paixão política".  Ideologia: organização intelectual dos ódios políticos. (...) Ódio de classe, de raça, de nação e religioso. (...)  Todos encontram um teórico eminente, ou seja, homens capazes de organizá-los intelectualmente. (...) O desenvolvimento da imprensa como "instrumento de cultivo das próprias paixões".

Intelectuais abdicaram, por amor "das paixões políticas", sua missão eterna: a de defender, ao longo dos tempos, os valores da verdade, do bem e do direito da humanidade.

O ódio se torna impessoal. (...) Já não se odeia sozinho, mas se odeia em grupo. (...) Já não se odeia uma pessoa isolada, mas odeia-se uma pessoa como agente de uma categoria. (...) Odeia-se a alguém "como".

O ódio se aperfeiçoa: torna-se culto e cultivado. (...) consciente e orgulhoso de si. (...) O ódio dá o passo da natureza para a cultura. (...) Ódio canalizado. (...) Apenas quando se torna "ódio com programa", ele pode atingir as massas. (...) O enobrecimento do ódio. (...) O ódio justificado. (...) Em vez de receber um castigo pelo crime, recebe uma recompensa pelo seu ato.

De modo paradoxal, a ideologia introduz o ódio numa equação de felicidade. (...) deixa crer que a ideia de felicidade humana passa fatalmente pelo extermínio de uma parte dela.

A ideologia distorce fatalmente a verdade e cultiva de maneira sistemática a mentira. A mente escurecida pelo ódio não pode, falando platonicamente, ter acesso à verdade, mas apenas ao falso. (...) No plano afetivo, a sua vida de instala no horizonte do ódio e no plano intelectual, no da mentira.

O comunismo utiliza sistematicamente, no plano intelectual, a mentira, e no plano afetivo, o ódio e a inveja. Portanto, no que diz respeito às duas funções essenciais da psique humana - o intelecto e a afetividade - ele se situa em oposição aos valores centrais de cada uma: a verdade e o amor.

A agressividade das ideologias: do projeto de ódio à realidade do crime. (...) Marx: "Quando chegar nossa vez, não vamos disfarçar o terrorismo" e aceitou o assassinato com  a condição de ser eficiente.

A história do século XX se eleva nos montes de ressentimentos acumulados nos corações de alguns poucos indivíduos.

Doravante a humanidade se divide em duas categorias: a "progressista" e a "reacionária". A primeira é "boa" porque caminha no sentido da História. A outra é "má" porque se encontra fora do curso da História ou bloqueando-a.

Lênin: libertar-se de qualquer inibição que o mundo civilizado, com seus códigos e moral, podia induzir em si. (...) A nação como fator de coesão humana era extremamente forte (...), o pertencer ao mesmo povo no plano da união. Tinha de ser encontrado algo que, unindo do exterior, pudesse desunir o interior. (...) A noção de "semelhante" tinha de ser mudada para além das fronteiras de um país, e a de "inimigo" trazida para dentro delas. [HOJE: multiculturalismo, ambientalismo, ...] (...) Em todos os casos de ódio ideológico, de ódio organizado intelectualmente, é a operação de destituição da esfera do humano.


Caim mata tolamente, sem ser capaz de oferecer uma fundamentação do ódio que conduziu ao crime. Nós, ao contrário, (...) temos a qualquer momento um amplo sistema de justificativas, senão mesmo uma metafísica do ódio. Com convicções. (...) Vai afirmar que ‘então’ não era ele que agia, mas, através dele, uma ‘força histórica’.

O paradoxo do ódio organizado intelectualmente é que o objeto dele não desaparece com o crime. (...) Odiados igualmente em nome da categoria que representam. (...) A satisfação ilimitada do ódio pela inesgotabilidade do seu objeto é uma invenção da modernidade. (...) Um desenfreamento do ódio que não se pode satisfazer senão no crime infinito.

‘intelectuais’: (...) homens de letras. (...) Por oposição a ele, o resto dos homens, ‘leigos’.
Para que servem os intelectuais num mundo dominado inteiramente pelos leigos? (...) se opõem de maneira aberta às barbáries geradas pelo desenrolar-se das paixões políticas. É claro que não podem mudar o curso do mundo (...) mas, propondo sem cessar um tipo honroso de homem, mantém intacto o prestígio do ideal: não puderam impedir os leigos de encher toda a história com o zunido dos ódios e dos seus massacres, mas impediram que tivessem o culto desses atos, que se orgulhassem com o cometimento desses. Graças a eles, a humanidade praticou o mal, mas honrou o bem.

Os intelectuais são os moralistas de plantão da humanidade. Um mundo onde ninguém mais está da parte do espiritual, em que ninguém mais defende os valores de humanidade e de justiça e não se opõem às ‘paixões leigas’ é um mundo que escorrega para o materialismo mais puro e termina na bestialidade. Os valores universais e a dimensão do extra-temporal constituem a cilha com que a humanidade é impedida de sair do caminho da civilização.

No final do século XIX, os intelectuais começam a fazer o jogo das paixões políticas. (...) O termo intelligentsia descreve intelectuais que querem o poder a fim de mudar o mundo. (...) Espécie de intelectual que, uma vez com a ‘apresentação do programa’, assume também o papel de realizador dele. (...) Organizadores do jogo, eles querem, ao contrário, escrever a peça, dirigi-la e interpretar o papel principal. Todos os condutores da Revolução Russa eram intelectuais. (...) Lênin: o proletariado deve ser conduzido por homens capazes de conscientizar os interesses do proletário (este não estava em condições e terminava por ‘pactuar’ com a burguesia). (...) os que passaram à organização intelectual do ódio, os fanatizados por ele e desejosos de fazer bem aos outros, se não pela sua livre aceitação, então com a força e, no limite, matando-os.

Eles terão de demonstrar, ao contrário, que as leis, a moral e a crença são relativas e que, de um dia para o outros, podem já não valer dois caracóis. “As leis, a moral, a religião são para o proletário igualmente preconceitos burgueses”, diz-se no capítulo I do Manifesto do Partido Comunista. Nada mais é universal: nem a verdade, nem a moral, nem a justiça.

(...) para os quais o tempo e o mundo começaram com eles.

A ele e sua esposa – nenhum sabia escrever – lhes deram títulos de acadêmicos e, dessa forma, destruíram o símbolo da excelência do espírito. (...) Prostituíram o talento e mutilaram o gosto; destruíram a substância semântica das mais importantes palavras da língua (honra, verdade, povo, direito, dignidade, liberdade, consciência).

Bajulando um ser inferior, deram ao povo romeno um padrão de valores e de humanidade extremamente baixo; fazendo do cinismo a regra suprema do comportamento, atrofiaram aos concidadãos o sentimento de orientação na vida e tomaram de um povo as referências morais. Devastaram o espírito e a substância moral.

Na nova orla da história, 3 categoria de intelectuais: - os ‘desprendidos’ ou ‘castrados políticos’ (críticos literários e de arte, compositores ou pintores honestos, homens de ciência, lógicos,...); - os ‘comprometidos’, (...) o agrupamento sob a bandeira da esquerda, rebatizada no doce estilo novo, ‘social-democracia’; - os ‘neomoralistas’, (...) que se engajaram na reconstrução dos padrões morais da sociedade (os valores extra temporais perdidos no percurso dos decênios de relativismo anterior).

[entre ‘comprometidos’ e ‘neomoralistas’:] Uns odeiam porque se sentem deslegitimados socialmente e em perigo de perder os próprios privilégios (...). Os outros odeiam porque lhes parece impudico ouvir muitas vezes a mesma voz cantando agora uma partitura completamente diversa da história; porque esperam dos ‘comprometidos’ uma desculpa um tanto vaga pela qual decoraram o inferno; porque esperam deles um simples ‘passo pra trás’.

A diferença entre essas duas formas de ódio é, no entanto, enorme. Uma sonha com a supressão da pessoa odiada; a outra, com a aposentadoria dela.

[O ‘neomoralista’] crê no ‘humanismo’ e nas forças frágeis do bem. (...) [Para o ‘comprometido’], deve ser demonstrado a qualquer preço que todos fomos culpados. (...) [Para o ‘neomoralista’] mesmo se não conseguir sempre impedir os políticos de trapacear o jogo, ao menos vai tentar impedir que apresentem seus atos como morais e como a regra do próprio jogo.


Inclino-me cada vez mais a crer que a impossibilidade dos romenos de reencontrar um sofro histórico se explica pelo capital de ódio acumulado na sociedade.

Grande vitória de Lênin foi a de ter levado o ‘inimigo’ para dentro; (...) representado como estando permanentemente à espreita. (...) inimigo potencial.

Organizado intelectualmente como ‘ódio de classe’, conseguiram com notável eficácia obter, em apenas alguns anos, uma sociedade reassentada no domínio do ódio. (...) Capaz de fazer o mal a outro homem como se não fosse um homem. (...) Acontece numa dupla excomunhão da espécie humana: para poder agredir, o agressor tem de sentir o agredido como um não-homem, mas o agredido, por sua vez, sendo agredido, sente como não-homem o seu agressor.

A história é ‘abrigada’ ou é experimentada como abrigo por tanto tempo quanto os homens mantêm uns para os outros a imagem humana, por tanto tempo quanto o ódio não os desfigura. (...) infâmia, preguiça, delação, perda de referências, aniquilação das relações respeitosas entre os homens e cujo ingrediente supremo foram a inveja, a suspeita e o ódio.

O ódio organizado como princípio de governo devastou a sociedade romena: devastou as almas dos homens e as relações entre eles, assim como, pelos instintos de destruição liberados, devastou as acumulações do passado.

As confusões são muito disseminadas, seja porque alguns têm necessidade de mantê-las (a confusão é o estado de espírito ideal para a manipulação da consciência), seja porque outros, por tolice ou por preguiça intelectual, se comprazem nelas. Uma sociedade que vive em confusão não pode construir nada. Ela tateia por sua própria história e termina por sucumbir diante da burrice coletiva.

Pôr ordem nos conceitos fundamentais da vida não é uma questão de pedantismo, mas um modo de fazer periodicamente a limpeza no pátio da tua mente e da sua vida.