Ambiguidade epistemológica da fórmula "não poderes
odiar": significa não poderes invejar e, assim, chegares ao ódio? Ou
significa não poderes reagir ao mal feito, fazendo outro?
Nos obriga a distinguir entre um "ódio de partida"
e um "ódio de reação", tendo o primeiro justificação psíquica, mas
não moral; e o segundo, igualmente justificações psíquicas e morais.
1. Um homem chega a odiar o outro pelas qualidades que não
tem ou pelo grau acrescentado das qualidades que ambos têm (...). Odiando-o,
ele lhe deseja o mal. Este mal não responde de maneira nenhuma a nenhum gesto
pelo qual o odiado tenha feito àquele que o odeia. (...) O ódio nasce
"puro". (...) Porque não tem o precedente no ato ou feitos do odiado,
o ódio dele é "de partida". O odiado é a vítima passiva daquele que
odeia. Ele se vê odiado "do nada". (...) É gerado estritamente do
ponto de vista psicológico. (...) É profundamente imoral precisamente à medida
que não tem nenhuma justificação moral. (...) Gratuito em sua maldade.
2. Um homem chega a odiar o outro pelo mal que aquele lhe
faz. (...) É justificado como réplica ao mal suportado. (...) "ódio de
reação". O ódio de reação, procurando recolocar o mundo em equilíbrio, é
um ódio com justificativas morais.
Todo o tempo da vida, saibamos ou não, comparamo-nos com os
outros. Que posição ocupo do mundo em relação aos que a vida me colocou no
caminho? (...) Nossa vida é de fato uma contaminação perpétua que resulta da
"fricção" contínua com os outros. (...) Como me distingo dos outros?
O encontro com o igual ou superior termina no amor, passando
pela admiração, ou no ódio, passando pela inveja. (...) Dito de outro modo, não
se põe o problema do ódio enquanto o outro é avaliado como inferior.
Goethe sugere que é "mais rentável" amares, e a
"salvação" neste caso é, evidentemente, a do "inferno do ódio". (...) Em suma, o ódio nasce da impotência de amar.
Numa comunidade atomizada e desunida, em que a admiração
está em vias de desaparecer, o sucesso de alguém já não pode ser avaliado em
termos positivos. O ódio é que passa a ser automaticamente um sintoma de
sucesso. É odiado, logo, existes.
Uma qualidade que desejo pra mim, eu a descubro no outro.
(...) Odeio ao que tem parte neles, porque considero que um puro acidente
impediu-o de ser meu. (...) Não é minha impotência essencial que ponho em
discussão, fundada nos limites dos meus dons, mas a "injustiça
cósmica": Por que ele, e não eu?
(...) Desaparece o semelhante
e Caim percebe Abel mais como diferente
(...), depois como oposto a ele
(...), no fim, como inimigo (...),
digno de ser morto. (...)
"Algo" tem de ser tão poderoso em sua imponência, tão importante, que
impeça Caim de reconhecer Abel e, assim, reconhecer a si nele. Este
"algo" é o ódio. (...) Inveja-ódio-crime.
Deus não faz senão condená-lo ao estado que, pelo ódio, Caim
já obtivera: à cegueira.
Adão e Eva, calcando o mandamento divino, abrem o problema
da opção. Caim, o filho mais velho, o corta em favor do mal.
O ódio de Caim é pessoal.
(...) sendo gerado pontualmente pela
inveja. (...) é uma paixão negativa espontânea.
(...) algo ruim. (...) Pressupõe um castigo. (...) O crime tem um reverso e
um eco (...) no sofrimento que este lhe provoca. (...) vergonha (...) remorso.
Ao contrário do amor, por exemplo, cuja satisfação pode
multiplicar-se ao infinito nos limites desse mesmo objeto, o ódio em sua forma
originária não pode realizar-se de maneira absoluta senão uma única vez,
juntamente com o crime. (...) A principal limitação do ódio consta no fato de
que o odiado não pode ser morto mais do que uma vez. [Maaaaaas:]
A espécie humana teve de esperar até o final do século XIX
para que as "insuficiências" do ódio originário - a satisfação
limitada, a direção única, o castigo, o opróbrio, o sofrimento ou remorso -
fossem eliminadas e substituídas pelo oposto delas. Era necessário que o ódio
se transformasse numa paixão honrada, era necessário que o assassino perdesse
sua aura funesta, e juntamente com esta, todo o cortejo que geralmente
acompanha a ideia de pecado, remorso e castigo tinha de ser, a seu turno,
suprimida. Que elemento miraculoso faltava ainda para que tudo isso
acontecesse? Para fazer do ódio um sentimento preferível ao amor, para fazer do
crime algo bom e do autor dele um herói, para pôr, em lugar do remorso, o
respeito de si e, em lugar do pecado supremo, a façanha que devia ser
encorajada, louvada e recompensada?
O que descobria, juntamente com Marx, o final do século XIX
é que o ódio pode ser organizado. Dito de outro modo, ele pode ser induzido,
argumentado, explicado, teoretizado, previsto com um escopo, com um programa e
posto de modo sistemático a trabalhar. (...) IDEOLOGIA. Desde esse momento, o
ódio passa a ter dignidade histórica e aura científica. E o crime que o
acompanha é, a seu turno, enobrecido, porque a finalidade a que ele serve sonha
com o bem para muitos e, no limite, para toda a humanidade. O ódio vazio tem a
eficiência de um arco e flecha, de um mosquete que dá um único tiro. Previsto
com ideologia, ele se torna uma arma com repetição.
Transformação do ódio em "paixão política". Ideologia: organização intelectual dos ódios
políticos. (...) Ódio de classe, de raça, de nação e religioso. (...) Todos encontram um teórico eminente, ou seja,
homens capazes de organizá-los intelectualmente. (...) O desenvolvimento da
imprensa como "instrumento de cultivo das próprias paixões".
Intelectuais abdicaram, por amor "das paixões
políticas", sua missão eterna: a de defender, ao longo dos tempos, os
valores da verdade, do bem e do direito da humanidade.
O ódio se torna
impessoal. (...) Já não se odeia sozinho, mas se odeia em grupo. (...) Já
não se odeia uma pessoa isolada, mas odeia-se uma pessoa como agente de uma
categoria. (...) Odeia-se a alguém "como".
O ódio se aperfeiçoa: torna-se culto e cultivado. (...) consciente
e orgulhoso de si. (...) O ódio dá o passo da natureza para a cultura.
(...) Ódio canalizado. (...) Apenas
quando se torna "ódio com programa", ele pode atingir as massas.
(...) O enobrecimento do ódio. (...)
O ódio justificado. (...) Em vez de
receber um castigo pelo crime, recebe uma recompensa
pelo seu ato.
De modo paradoxal, a ideologia introduz o ódio numa equação
de felicidade. (...) deixa crer que a ideia de felicidade humana passa
fatalmente pelo extermínio de uma parte dela.
A ideologia distorce fatalmente a verdade e cultiva de
maneira sistemática a mentira. A mente escurecida pelo ódio não pode, falando
platonicamente, ter acesso à verdade, mas apenas ao falso. (...) No plano
afetivo, a sua vida de instala no horizonte do ódio e no plano intelectual, no
da mentira.
O comunismo utiliza sistematicamente, no plano intelectual,
a mentira, e no plano afetivo, o ódio e a inveja. Portanto, no que diz respeito
às duas funções essenciais da psique humana - o intelecto e a afetividade - ele
se situa em oposição aos valores centrais de cada uma: a verdade e o amor.
A agressividade das ideologias: do projeto de ódio à
realidade do crime. (...) Marx: "Quando chegar nossa vez, não vamos
disfarçar o terrorismo" e aceitou o assassinato com a condição de ser eficiente.
A história do século XX se eleva nos montes de
ressentimentos acumulados nos corações de alguns poucos indivíduos.
Doravante a humanidade se divide em duas categorias: a
"progressista" e a "reacionária". A primeira é
"boa" porque caminha no sentido da História. A outra é "má"
porque se encontra fora do curso da História ou bloqueando-a.
Lênin: libertar-se de qualquer inibição que o mundo
civilizado, com seus códigos e moral, podia induzir em si. (...) A nação como
fator de coesão humana era extremamente forte (...), o pertencer ao mesmo povo
no plano da união. Tinha de ser encontrado algo que, unindo do exterior,
pudesse desunir o interior. (...) A noção de "semelhante" tinha de
ser mudada para além das fronteiras de um país, e a de "inimigo"
trazida para dentro delas. [HOJE: multiculturalismo, ambientalismo, ...] (...) Em todos os casos de ódio ideológico, de ódio organizado
intelectualmente, é a operação de destituição da esfera do humano.
Caim mata tolamente, sem ser capaz de oferecer uma
fundamentação do ódio que conduziu ao crime. Nós, ao contrário, (...) temos a
qualquer momento um amplo sistema de justificativas, senão mesmo uma metafísica
do ódio. Com convicções. (...) Vai afirmar que ‘então’ não era ele que agia,
mas, através dele, uma ‘força histórica’.
O paradoxo do ódio organizado intelectualmente é que o objeto
dele não desaparece com o crime. (...) Odiados igualmente em nome da categoria
que representam. (...) A satisfação ilimitada do ódio pela inesgotabilidade do
seu objeto é uma invenção da modernidade. (...) Um desenfreamento do ódio que não
se pode satisfazer senão no crime infinito.
‘intelectuais’: (...) homens de letras. (...) Por oposição a
ele, o resto dos homens, ‘leigos’.
Para que servem os intelectuais num mundo dominado
inteiramente pelos leigos? (...) se opõem de maneira aberta às barbáries
geradas pelo desenrolar-se das paixões políticas. É claro que não podem mudar o
curso do mundo (...) mas, propondo sem cessar um tipo honroso de homem, mantém
intacto o prestígio do ideal: não puderam impedir os leigos de encher toda a
história com o zunido dos ódios e dos seus massacres, mas impediram que
tivessem o culto desses atos, que se orgulhassem com o cometimento desses.
Graças a eles, a humanidade praticou o
mal, mas honrou o bem.
Os intelectuais são os moralistas de plantão da humanidade.
Um mundo onde ninguém mais está da parte do espiritual, em que ninguém mais
defende os valores de humanidade e de justiça e não se opõem às ‘paixões leigas’
é um mundo que escorrega para o materialismo mais puro e termina na
bestialidade. Os valores universais e a dimensão do extra-temporal constituem a
cilha com que a humanidade é impedida de sair do caminho da civilização.
No final do século XIX, os intelectuais começam a fazer o
jogo das paixões políticas. (...) O termo intelligentsia descreve intelectuais que querem o
poder a fim de mudar o mundo. (...) Espécie de intelectual que, uma vez com a ‘apresentação
do programa’, assume também o papel de realizador dele. (...) Organizadores do
jogo, eles querem, ao contrário, escrever a peça, dirigi-la e interpretar o
papel principal. [hummm]. Todos os condutores da Revolução Russa eram intelectuais. (...) Lênin: o proletariado deve ser conduzido por homens capazes
de conscientizar os interesses do proletário (este não estava em condições e
terminava por ‘pactuar’ com a burguesia). (...) os que passaram à organização intelectual do ódio, os
fanatizados por ele e desejosos de fazer bem aos outros, se não pela sua livre
aceitação, então com a força e, no limite, matando-os.
Eles terão de demonstrar, ao contrário, que as leis, a moral
e a crença são relativas e que, de um dia para o outros, podem já não valer
dois caracóis. “As leis, a moral, a religião são para o proletário igualmente
preconceitos burgueses”, diz-se no capítulo I do Manifesto do Partido
Comunista. Nada mais é universal: nem a verdade, nem a moral, nem a justiça.
(...) para os quais o
tempo e o mundo começaram com eles.
A ele e sua esposa – nenhum sabia escrever – lhes deram
títulos de acadêmicos e, dessa forma, destruíram o símbolo da excelência do
espírito. (...) Prostituíram o talento e mutilaram o gosto; destruíram a
substância semântica das mais importantes palavras da língua (honra, verdade,
povo, direito, dignidade, liberdade, consciência).
Bajulando um ser inferior, deram ao povo romeno um padrão de
valores e de humanidade extremamente baixo; fazendo do cinismo a regra suprema
do comportamento, atrofiaram aos concidadãos o sentimento de orientação na vida
e tomaram de um povo as referências morais. Devastaram o espírito e a substância moral.
Na nova orla da história, 3 categoria de intelectuais: - os ‘desprendidos’
ou ‘castrados políticos’ (críticos literários e de arte, compositores ou
pintores honestos, homens de ciência, lógicos,...); - os ‘comprometidos’, (...)
o agrupamento sob a bandeira da esquerda, rebatizada no doce estilo novo, ‘social-democracia’;
- os ‘neomoralistas’, (...) que se engajaram na reconstrução dos padrões morais
da sociedade (os valores extra temporais perdidos no percurso dos decênios de
relativismo anterior).
[entre ‘comprometidos’ e ‘neomoralistas’:] Uns odeiam porque
se sentem deslegitimados socialmente e em perigo de perder os próprios
privilégios (...). Os outros odeiam porque lhes parece impudico ouvir muitas
vezes a mesma voz cantando agora uma partitura completamente diversa da
história; porque esperam dos ‘comprometidos’ uma desculpa um tanto vaga pela
qual decoraram o inferno; porque esperam deles um simples ‘passo pra trás’.
A diferença entre
essas duas formas de ódio é, no entanto, enorme. Uma sonha com a supressão da
pessoa odiada; a outra, com a aposentadoria dela.
[O ‘neomoralista’] crê no ‘humanismo’ e nas forças frágeis
do bem. (...) [Para o ‘comprometido’], deve ser demonstrado a qualquer preço
que todos fomos culpados. (...) [Para o ‘neomoralista’] mesmo se não conseguir
sempre impedir os políticos de trapacear o jogo, ao menos vai tentar impedir
que apresentem seus atos como morais e como a regra do próprio jogo.
Inclino-me cada vez mais a crer que a impossibilidade dos
romenos de reencontrar um sopro histórico se explica pelo capital de ódio
acumulado na sociedade.
Grande vitória de Lênin foi a de ter levado o ‘inimigo’ para
dentro; (...) representado como estando permanentemente à espreita. (...) inimigo
potencial.
Organizado intelectualmente como ‘ódio de classe’,
conseguiram com notável eficácia obter, em apenas alguns anos, uma sociedade
reassentada no domínio do ódio. (...) Capaz de fazer o mal a outro homem como se não fosse um homem. (...) Acontece
numa dupla excomunhão da espécie humana: para poder agredir, o agressor tem de
sentir o agredido como um não-homem, mas o agredido, por sua vez, sendo
agredido, sente como não-homem o seu agressor.
A história é ‘abrigada’ ou é experimentada como abrigo por
tanto tempo quanto os homens mantêm uns para os outros a imagem humana, por
tanto tempo quanto o ódio não os desfigura. (...) infâmia, preguiça, delação,
perda de referências, aniquilação das relações respeitosas entre os homens e
cujo ingrediente supremo foram a inveja, a suspeita e o ódio.
O ódio organizado
como princípio de governo devastou a sociedade romena: devastou as almas dos
homens e as relações entre eles, assim como, pelos instintos de destruição liberados,
devastou as acumulações do passado.
As confusões são muito disseminadas, seja porque alguns têm
necessidade de mantê-las (a confusão é o estado de espírito ideal para a
manipulação da consciência), seja porque outros, por tolice ou por preguiça
intelectual, se comprazem nelas. Uma sociedade que vive em confusão não pode
construir nada. Ela tateia por sua própria história e termina por sucumbir
diante da burrice coletiva.
Pôr ordem nos
conceitos fundamentais da vida não é uma questão de pedantismo, mas um modo de
fazer periodicamente a limpeza no pátio da tua mente e da sua vida.
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