sábado, 29 de dezembro de 2012

O que li em 2012


Em termos de leitura, foi um bom ano pra mim. Li bastante. Aprendi um tanto. Segue minha lista, com link e um mini resumo.


1. Animal Spirits – George Arkelog e Robert Shiller

Na contramão da corrente majoritária ('o homo economicus é totalmente racional'), os dois renomados economistas defendem teses comportamentais, já defendidas por Keynes: a economia é regida por sentimentos de confiança, percepção de justiça, propensão a comportamentos de má fé ou corrupção, ilusão monetária e histórias que rondam o imaginário ('causos'). Ok, a economia comportamental já não é tão 'pequena'...


 

2. Um jogador – Dostoievsky

Com pesar, confesso que ainda não li 'Crime e Castigo', nem 'Irmãos Karamazov', nem 'O Idiota'. Ou seja, foi minha estreia em Dostoievsky. A narrativa é gostosa, mas esperava mais.






Trata-se basicamente de uma 'resposta' - dessa vez 'defendendo o corpo' - a um outro livro do rabino, 'Alma Imoral', que 'defendia a alma'. Novamente os dilemas entre desejo e valores, liberdade e segurança, traição e tradição, evolução e preservação, malícia e hipocrisia. É espetacular. Separei uns trechos aqui.




Mais um ótimo livro de psicologia econômica, sobre nossos vieses. No caso, especificamente o auto-engano: nossas ilusões de atenção, de memória (pra mim, o melhor capítulo), de confiança, de conhecimento, de causa e de potencial. Muito bom!



Meu 3º livro do escritor pop também é bem legalzinho. Ele exagera em alguns pontos (bastante criticado inclusive no Invisible Gorilla) como por exemplo ao afirmar relações causais sem o devido cuidado metodológico (tendo grupos de controle, por exemplo). Mas ok, não deixa de ser interessante. A tese central do livro é a não-linearidade de eventos sociais (venda de livros, fortuna, crimes no metrô...), os pontos de ruptura, assunto bem interessante.
 


A historinha de Antoine que, desiludido e infeliz com o mundo, tenta se matar algumas vezes, mas nem isso consegue. Acaba no mercado financeiro. Interessante.
"De tanto pensar, a consciência sempre tumescente, vivia mal. Ele agora queria ser um pouco inconsciente, bem ignorante das causas, das verdades, da realidade... Estava cansado da acuidade de observação que lhe dava uma imagem cínica das relações humanas. Queria viver; não saber a realidade da vida..."

Um tributo ao acaso, com um apanhado de textos que passa pela Bíblia, por Epíteto, Homero, Shakespeare, Rembrandt, Voltaire, Mark Twain, Albert Camus, Sartre, Borges...
Destaco o 1º parágrafo desse texto de Epíteto.
Difícil de ler, até pelo inglês erudito, mas interessante.


8. 
Justiça – Michael Sandel

O livro sobre o baladado curso, disponibilizado online, de Harvard. O professor-autor-filósofo é muito bom. Faz um resumão, confrontando as noções de moral e justiça ('o que é o certo? o que deve ser feito?') nas visões de Kant, Bentham e os utilitaristas, a teoria do véu da ignorância de Rawls e Aristóteles. A argumentação é tão boa que eu sempre ficava com a sensação de que o autor era 'signatário' do pensamento em questão. Talvez tenha faltado justamente isso: uma oposição a cada um desses pensadores.
Mas essa crítica ao autor também é interessante. Livro top.



Segundo o próprio autor, principal nome do niilismo, o livro se propõe a ser um resumão de sua obra. Nietzche refuta a exaltação dos ‘fracos’ (a moral da décadence) e não se conforma que ninguém perceba isso. Volta às ideias de ‘transmutação dos valores’, ou seja, trocar ‘tudo isso que está aí’, sempre apresentando seu Zaratrusta como o super-homem. Os títulos dos capítulos são impagáveis! (Por que sou tão sábio; Por que escrevo tão bons livros; Por que sou um destino...)
É muito bom. A vida só é possível ‘apesar de’.
 

O autor é conhecido pelos seus bons livros sobre a arte da psicoterapia. Nesse, ele vai fazendo um paralelo entre o trabalho cotidiano de um terapeuta com câncer e a vida e obra de Arthur Schopenhauer. Uma ótima introdução a uma das principais influências para o pensamento de Nietzche e de Freud. Gostei muito.


Resenhei aqui. Três intelectuais justificam suas preferências pelas ideias conservadoras.
Gostei bastante do texto de João Pereira Coutinho e, sabendo ponderar, costumo gostar bastante do Ponde. Acho que o Rosenfield não foi bem. A introdução, de Marcelo Consentino, é também muito boa.
Até pela grande quantidade de citações e bibliografia, trata-se de uma excelente referência para quem quiser estudar (entender, criticar, sei lá) as ideais direitistas.



Sem dúvida meu livro mais difícil do ano. A escrita de um dos primeiros pensadores existencialistas, raríssimo caso que se manteve cristão, não é nem um pouco fácil. Com a história de Abraão como pano de fundo, o autor discorre sobre sua noção de fé. Tentei resenhar aqui.


13.O estrangeiro – Albert Camus

O autor foi amigo de Sartre até romperem por questões políticas do pós-guerra. O texto de Camus é considerado misantropo, ou seja, com uma eterna desconfiança na humanidade. A principal fala do protagonista do enredo em questão, recém órfão e preso por um crime bobo, é ‘Tanto faz...’.
Espetacular livro que conta a história dos estacionamentos, desde a transição de carroças para carros, das ruas para ‘estalagens’. Sobretudo, tenta inserir a questão do estacionamento (que chega a ocupar 30%~40% da área urbana) como um fator mais importante na definição da ‘cidade que queremos’, do ponto de vista funcional e, principalmente, arquitetônico. A passagem sobre os usos alternativos da área de estacionamentos (em horários de subutilização) – como quadras, teatros, feiras, brechós, templos – é muito interessante.


Uma ode à cidade. O renomado economista defende os centros urbanos, principalmente pela sinergia e troca de ideias que geram inovações e evolução. Cada capítulo trata de um assunto, via de regra usando uma cidade como exemplo (ou contra exemplo). Dá uma bela cutucada nos ambientalistas, defendendo as cidades verticais ao invés de expansões territoriais. O argumento é: ‘Cada estudo só avalia o impacto do projeto se ele for aprovado, e não o impacto de ele ser negado e a construção começar em outro lugar’.
Dei uma pincelada sobre um dos assuntos aqui.
O livro já é considerado pré-requisito para se estudar urbanismo. Muito bom.



Concordo: é fácil não gostar do Pondé. Se esse for seu caso, nem chegue perto do livro. Na minha opinião, o cara peca pelo exagero, por ser agressivo ou arrogante demais; mas a mensagem geralmente é muito boa. De filosofia mesmo, tem muito pouco. Nesse livro, que ele mesmo chama se ‘ensaio de ironia’, Pondé bate em quase tudo: preconceitos, opinião pública, felicidade, mulheres, universidades, religião, música,... O politicamente correto é a origem da maioria dos males do nosso tempo.
Gostei bastante do livro (talvez porque concorde com quase tudo).

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Não tenha medo de trocar de ônibus


Faço um resumo desse bom texto do ótimo Jarrett Walker, acrescentando alguns comentários. (as figuras desse post são do texto original).

Em 'Por que dirigimos assim?' (que resumi aqui), Tom Vanderbilt argumenta (com estudos) que o que mais incomoda o cidadão no trânsito não é o longo tempo em si da viagem, mas, sim, a variação desse tempo. Exemplificando: o que mais incomoda um aluno da cidade universitária de São Paulo que mora na zona leste não é gastar 1 hora para atravessar a cidade mas, sim, que em vários dias, essa 1 hora vira 1 hora e meia (na prática, a felicidade de que, em alguns dias, ele leve 'apenas' 40 minutos não compensa a frustração da demora nos outros dias).

Nessa mesma linha, Jarrett Walker defende como um dos maiores pilares da política de mobilidade urbana a busca por FREQUÊNCIA ao invés de VELOCIDADE. O artigo que trago toca justamente nesse ponto.

Via de regra, os cidadãos se deliciam com uma linha de ônibus que passe na porta do trabalho e os leve à porta de casa. Mas isso é simplesmente impossível de atender em larga escala. Buscar esse objetivo é jogar dinheiro fora e subaproveitar a malha de ônibus.

A alternativa, impopular (aliás, como a maioria das soluções de verdade), é incentivar transferências (conexões, baldeações,...).

O exemplo clássico é o seguinte: imaginemos 3 origens e 3 destinos. Pra ligar ponto-a-ponto pra todo mundo, precisaremos de 9 rotas (A a 1, A a 2, A a 3, B a 1, B a 2, B a 3, C a 1, C a 2, C a 3).
Supondo tempo de viagem de 20 minutos e orçamento suficiente para realizar cada viagem a cada 30 minutos, temos que cada viagem demorará entre 20 minutos (você chegou no ponto bem na hora da porta aberta do ônibus; tempo de espera = 0) e 50 minutos (você chegou no ponto bem na hora da porta fechando; tempo de espera = 30 minutos). Na média, 35 minutos.



A alternativa com transferência criaria um ponto de conexão (vamos supor no meio do caminho de todo mundo). Nessa situação serão necessárias apenas 3 rotas, todas passando por esse ponto central. Com o mesmo orçamento e a redução de rotas num fator de 3, podemos aumentar a FREQUÊNCIA das viagens em um fator de 3, ou seja, a cada 10 minutos. O tempo de viagem será composto por: de 0 a 10 minutos pra pegar o 1º ônibus + 10 minutos da 1ª viagem + de 0 a 10 minutos para pegar o 2º ônibus + 10 minutos da 2ª viagem; ou seja, entre 20 e 40 minutos. Na média, 30 minutos.



Repare que, se você tiver a 'sorte' de ter a viagem direta (no exemplo, acontecerá em 1/3 das rotas), você ainda não terá o tempo de espera do meio, ou seja, a média de viagem cai ainda mais.

Essa alternativa possui ainda mais vantagens do que apenas a economia de tempo:
- é mais fácil pra população entender as rotas; é mais mnemônico; haverá menos tempo perdido com o motorista tendo que responder pra senhorinha se esse ônibus passa na avenida x.
- a malha será mais bem aproveitada; a tendência é que todos os ônibus sejam mais bem ocupados (todo ônibus será, de fato, útil). Isso pode parecer uma desvantagem (ônibus cheio é mais desconfortável), mas ônibus bem ocupado (não superocupado) é sinal de bom uso do dinheiro público. Ou não existe a sensação de 'desinteligência' ou desperdício quando pegamos um ônibus abarrotado e, na sequência, um ônibus super vazio?
- menos rotas e mais curtas significam mais resiliência, mais capacidade de acertar um detalhe do trajeto como um cruzamento-gargalo.
- a vantagem aumenta com o aumento da cidade. Basta imaginarmos uma redução de rotas num fator de 10 e aumento da frequência num fator de 10.

Existem três argumentos contra os transfers: um fresco, um falacioso e um considerável.

A crítica fresca é que não terá mais viagens sentadinhas, longas, para se ler um livro. Bem, aí a população precisa escolher se prefere chegar logo ou chegar sentada. Frescura.

A crítica falaciosa condena o cálculo de espera lá de cima no texto. Dizem que basta você saber a hora que o ônibus passa e se programar pra ela, levando o tempo de espera sempre a zero. Quem vive a prática, sabe que isso não é aplicável. Primeiro porque não sabemos ao certo a hora dos ônibus. Segundo porque, mesmo que soubéssemos, nem sempre conseguiríamos nos adequar. A frequência menor (mais tempo entre um ônibus e o próximo) levará a tempos de espera, mesmo que você saiba os horários. O exemplo no post original é bom: se você tem que chegar ao escritório às 9h00, mesmo que saiba que um ônibus passa às 8h05 e te deixará no escritório às 8h40, você continuará perdendo os 20 minutos no trabalho por ter chegado mais cedo do que precisaria (e o ônibus seguinte faria você chegar atrasado). Ou seja, essa crítica é uma falácia.

A crítica boa é psicológica: o perrengue da conexão. Ou seja, existe um 'penalty' maior do que simplesmente o tempo de espera adicional na conexão.
Na verdade, tudo isso pode ser mensurado para vermos até que ponto (até quantos minutos) o usuário aceita gastar mais na viagem direta do que fazendo conexão (5 minutos? 10 minutos?). Obviamente, a conexão tem que ser uma situação agradável e cômoda, sem ter que andar demais, por exemplo.

Pra tudo isso, claro, um cartão do tipo 'bilhete único' é imprescindível.

Experimentei a teoria na prática e adivinhem: dessa vez, deu certo. hehe. Comecei a pegar, de fato, o primeiro ônibus que passasse em frente ao trabalho, sem nem saber o nome ou o número. No meu caso, confesso, era um pouco mais fácil: ou ele pega a Av Santo Amaro (que me basta para rota direta) ou sobe a Av Brigadeiro Luis Antonio. Nesse 2º caso, pulava do ônibus assim que percebesse o 'desvio da minha rota', andava até a Av Santo Amaro e pegava o primeiro ônibus que passasse, também sem saber nome ou número. Como a entrada dos ônibus na Av Santo Amaro às vezes trava, acredito que em alguns dias, até ganhei tempo ao pular de um ônibus e entrar no outro, já na Avenida.

Enfim, seria bom ter um prefeito com um pouco mais de coragem para enfrentar o status quo e tomar uma decisão um pouco mais técnica com relação à malha de ônibus.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Xinguem os números. Ou: cuidado, vó!


No debate pra eleição de governador em São Paulo em 2010, um dos candidatos (acho que o ex-neo-queridinho Russomano) perguntou pro candidato Alckmin sobre as propostas para combater a violência em São Paulo e terminou com algo como 'Mas não me venha com estatísticas, não...'.

Dei risada.
Talvez seja verdade que, em alguns casos, 'estatística seja a arte de fazer os números confessarem'.
Madre Teresa dizia que, se ela fosse olhar as desgraças de todo o mundo, não ajudaria o próximo, ao lado. E, se não ajudasse a pessoa ao lado, o mundo não melhoraria. Isso é válido para igrejas, psicólogos, assistentes sociais. Minha esposa trabalha na Brasilândia, um dos locais mais afetados nesses meses. O bicho pegou e eu ficava tenso. Mas era uma questão muito mais qualitativa do que quantitativa.

Com relação ao Estado, não há outro modo para tomar decisões e medir os resultados, se não pelas estatísticas.

A grande diferença da crise pela qual São Paulo passou é que foi justamente isso: uma crise. Aguda, não crônica. Pontual, não sistemática.
Não deve ser minimizada. A polícia tem que entender os motivos que levaram o PCC a se rebelar novamente. E evitar. Mas a imprensa não tem que ficar na base do achômetro. A entrevista que o Canal Livre da Band fez com um coronel da PM foi muito interessante. O link aqui. Os jornalistas faziam comentários de botequim e o coronel respondia com dados.

Mas vamos aos números.
A OMS estabeleceu uma métrica para definir o que pode ser considerada uma cidade 'violenta': menos de 10 mortes por 100 mil habitantes por ano, a cidade está ok; mais do que 10 por 100 mil habitantes, a cidade passa a ser 'endemicamente' violenta. Para essa métrica, eles consideram os 'crimes violentos letais intencionais (CVLI)': homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte.

São Paulo teve 10,8 dessas mortes por 100 mil habitantes em 2011. Em 2012, deve subir para algo em torno de 11,5. E, com esse número é, simplesmente, o Estado mais seguro do Brasil.

Muita coisa do que pensei em escrever já estão aqui e aqui.
Um dado interessante é que, mesmo extrapolando esse pior cenário por todo ano, São Paulo ainda é o Estado mais seguro. É dado, não opinião.
Não adianta discutirem comigo ou com a Veja ou com quem quer que seja.
'Ah, mas eu conheço um vizinho do meu tio que foi assassinado'. Sim, são 11 assassinatos por 100 mil habitantes por ano. Não zero. Infelizmente.

Xinguem os números.
Aliás, publico a tabela abaixo, mas consultem vocês mesmos aqui. Página 28, tabela 10. Antes de questionar os dados, lembro que se tratam de publicações do próprio Ministério da Justiça.



'Ah, mas quem diz que os dados são confiáveis? Quem garante que nem toda morte na praia é considerada afogamento, como em Tropa de Elite?' 'Tu é legista, mermão??'.

Bom, compartilho a opinião - e, no fundo, é só isso mesmo, uma opinião, um chute - de que furtos não são mesmo denunciados pela população através de boletim de ocorrência. Mas morte? Sumiço de corpo? Hum... Sei não. E, SE houver, mais provável que seja em Estados menores, mais distantes, com menos gente, não?

Aliás, São Paulo é o único Estado que divulga seus números de segurança mensalmente e abertos por delegacia. Ou seja, se você é um estagiário de jornalismo em um portal qualquer, terá pelo menos um tema garantido por mês! Sempre terá números novos pra você descer a lenha. (No Acre, por exemplo, as últimas estatísticas ainda são de 2009).

E, sobretudo, São Paulo prende. São Paulo tem cerca de 22% da população do Brasil e 41% da população carcerária nacional. Quiseram comparar a ação das UPPs do Rio com a ação da PM na favela Paraisópolis em São Paulo. Não tem NADA a ver. A UPP é tomada de território. É war, futebol americano, Combate da Estrela. Era uma terra do tráfico, que o Estado recuperou. O símbolo é hastear a bandeira da cidade e do país. Em São Paulo, não foi isso. A polícia entrou pra prender. E prendeu mais pessoas do que todas as UPPs somadas. Veja bem: não estou criticando a ação das UPPs no Rio, não. A ação é correta. Mas é um estágio anterior a prender. Lá, os bandidos foram simplesmente espalhados.



'Ah, mas São Paulo ainda não está bom'.
É verdade. Não está e tem muita coisa pra fazer. Mas isso não justifica mentir, não justifica bater nos dados. Pra efeito de comparação, Nova Iorque tem cerca de 7,5 mortes por 100 mil habitantes por ano e Chicago tem 15. Sim, senhores e senhoras, São Paulo é só um pouco mais violenta que Nova Iorque e mais segura que Chicago.

'Ah, mas a sensação não é essa'.
Esse é, de fato, um grande problema. Difícil arrumar, ainda mais quando não olhamos os números.
Vale também lembrar, jogando um pouco de polêmica ou conspiração no ar, que o percentual da 'indústria da insegurança' (seguranças particulares, redes elétricas, monitoramento remoto, blindagem) no PIB não é pequeno (li sobre um estudo do IPEA que estima em 5% do PIB, mas não encontrei o artigo original). Ou seja, há interesses econômicos nisso tudo também.

Dica para os críticos
Se quiserem bater no governo estadual (ou mesmo nos paulistas, a nova moda brasileira), sugiro não tentarem refutar os números. Um caminho pode ser dizer que o governo não tem responsabilidade nenhuma nessa melhora (dos últimos anos). Isso é mais crível. Sério. Os economistas do Freakonomics captaram correlação de décadas atrás para redução da violência atual (no caso de lá, a liberação do aborto). Malcoln Gladwell, em seu Outlier, diz que a violência parece ter algo como 'ciclos endógenos', ou seja, crescem e diminuem sem muitas razões claras, numa espécie de manada irracional. Se quer xingar, vá por esse lado. 'São Paulo melhoraria de qualquer jeito'. Melhor que bater nos números.

Finalizando
No mês passado, quando liguei para mandar um beijo pra minha avó, que mora no interior de Minas, ela ficou uns 5 minutos falando pr'eu tomar cuidado na rua, que a cidade era um caos e tudo mais. Coitada. É o que aparece na TV. Na cidade dela, nos últimos 12 meses, devem ter tido umas 2 mortes. São cerca de 2.500 habitantes, ou seja, uma taxa de 80 por 100 mil habitantes por ano. Pensei em fazer toda essa argumentação com ela pelo telefone. Mas não sei se seria uma boa. Fica aqui minha resposta: cuidado vó! A probabilidade da senhora morrer assassinada aí é 8 vezes maior do que eu aqui...

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Angústia, fé e razão


Algumas perguntas das inúmeras discussões em que me meto às vezes simplesmente ficam no ar. Uma dessas é a do amigo Fil, questionando os motivos da minha religiosidade, ‘embora culto, sem doenças e sem necessidades materiais’.

Antes de tudo, é bom deixar claro que não sou ‘do tipo pregador’, tão chato quanto os ateus pregando sua crença, a inexistência de deus. Ou seja, não o incomodo (pelo menos, não nesse particular...). Outro fato intrigante da pergunta-confronto é que esse amigo é muito ‘do bem’, segue uma moral ou ‘bons costumes’ que uma mãe (ou uma religião...) gostaria de passar pr’um filho. Mas me questiona...

Geralmente digo que, por trás dessa desconfiança no sobre-humano por parte de um ateu, existe um excesso de confiança na razão humana. E esse excesso de confiança no homem, essa auto-suficiência é tão ‘misteriosa’ (ou ‘questionável’...) que a confiança em um deus. Pois bem...



Acabei de ler ‘Temor e tremor’, de Soren Kierkegaard, um raro filósofo existencialista e, ao mesmo tempo, religioso. Confesso que a leitura não é fácil.

Cheguei ao autor através de um dilema interno entre idéias aparentemente paradoxas, pelas quais sou simpático: a ausência de sentido da vida e a fé em Deus.

O livro conta a história de Abraão - já em idade avançada, chamado por Deus a sacrificar seu único filho, Isaac -, apresenta suas alternativas e as compara a alguns outros dilemas famosos da História.
A passagem de Abraão é (erroneamente) simplificada da seguinte maneira: ‘Abraão ofereceu o que tinha de mais valioso como prova de sua fé em Deus’.
Kierkegaard discorda. A mensagem não é essa e destaca duas grandes razões:
1) Um milionário que se desfaz de toda sua fortuna como prova de amor a Deus também pode estar oferecendo o que tem de mais valioso, mas definitivamente não revive a história de Abraão. Aí não há a angústia, não há a dúvida doída e calada, questão central no drama de Abraão.
2) Ao contrário dos demais dilemas, nos quais a moral é ‘força impulsionadora’ para coisa certa, na questão de Abraão a moral é justamente a tentação. Os costumes mandavam Abraão não matar seu próprio filho.

A história é o caminho pelo qual Kierkegaard desenvolve sua noção de fé. Ele diz que antes da fé, é preciso uma resignação absoluta, um completo aceitar. Acho que assim, ao invés de contrapor (como um paradoxo), ele consegue aliar a ideia da religiosidade ao conceito de (ausência de) sentido da vida.

Gosto da parte em que diz que a fé é uma paixão e, como toda paixão, deliciosa e carente de maiores explicações. Ainda: a fé se inicia onde acaba a razão. (Uma boa explicação para religiosidade em diversos níveis educacionais, isto é, cada pessoa com seu ‘limite de razão’).

Acho que é uma boa resposta, na medida do que é possível e preciso ser respondido...

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Por que virei à direita

Li ‘Por que virei à direita – Três intelectuais explicam sua opção pelo conservadorismo’. Os intelectuais são João Pereira Coutinho, Luiz Felipe Ponde e Denis Rosenfield.

A introdução, de Marcelo Consentino, já é bem agradável. Ele escancara a régua assimétrica: absoluta intolerância ao nazismo (ainda bem!) sem a equivalente repugnância ao totalitarismo esquerdista. Diz que, embora lamentável pela repressão policial, torturas, prisões, etc, a ditadura brasileira nunca tentou impor uma doutrinação ideológica, comum nas ditaduras esquerdistas; tanto que universidades, imprensa e partidos estiveram dominados pelo pensamento esquerdista, mesmo no período militar.

A melhor contribuição de Consentino, no entanto, foi a interessante categorização dos pensamentos direitista e esquerdista. Diante da evidente distância entre os mundos real e ideal, a estratégia do esquerdista é tentar misturá-los. Para o direitista, a vida será melhor se entendermos, aceitarmos e termos bem clara a separação desses mundos.

A tônica dos textos é nesse sentido: o homem é imperfeito e sempre será. Ignorar essa verdade, buscar a utopia, a criação do Paraíso na Terra é um gigantesco engano (até porque o Paraíso será diferente para cada homem). A busca pela utopia é uma chantagem e, portanto, suja: onde já se viu não buscar o mundo perfeito?; 'consola a alma e os outros'. (E, depois, procuram-se os culpados pelo óbvio insucesso...)

O erro da esquerda é justamente ignorar a falibilidade inata do ser humano, ignorar que ‘somos condenados ao naufrágio’.  Para o direitista, basta aos homens não transformar nosso mundo real num Inferno.

Não é função do Estado se colocar como agente moralizador. Quem governa deve suspeitar das suas próprias idéias de mundo. O governo é apenas necessário; não é uma entidade naturalmente benigna, com a função de levar a comunidade à perfeição, justamente porque os homens são incapazes para tanto e porque o Estado não sabe o que é melhor para cada cidadão.

Os autores também trazem o clássico embate entre liberdade e igualdade. Ampliando liberdade, ampliamos a criatividade e escancaramos as diferenças, distanciando-se da pretendida igualdade. Ao contrário, ampliando igualdade, ampliamos a mediocridade. A solução para o direitista é, de novo, aceitar que os homens são diferentes.

Vivemos sob um pano de fundo randômico e, daí, a necessidade de seguir hábitos que nos trouxeram até aqui. É preciso ser cético, desconfiado em relação à razão: nenhum homem ou grupo de homens deve se colocar como capaz nem tem a primazia de resolver os problemas do mundo. Temos que ser cuidadosos com a crença excessiva em si mesmo 'porque o si mesmo não é fundamento de si mesmo, assim como ninguém escapa do abismo puxando a si mesmo pelo cabelo'. Precisamos respeitar a ‘sabedoria dos mortos’.

Gostei bastante.

sábado, 7 de julho de 2012

APESAR DE...


Sempre fui um cara pessimista; talvez, preocupado. Na origem, quem sabe, isso se deva à tradição judaico-cristã, de zelo presente e preocupação com o futuro. A mudança do mundo corporativo em um banco para a gestão de uma empresa própria me empurrou pra ‘vida de verdade’. Casar com uma psicóloga que trabalha com dependente químico ainda mais. As sujeiras e tristezas do mundo ficaram muito próximas. A seqüência de desilusões políticas foi minando minha pouca esperança restante. No trabalho, clientes querendo dar migué. Funcionários armando o bote pra sacanear. Em conversa de bar, sugiro ações de trânsito que restringiriam veículos privados. Amigos inteligentes refutam de imediato. Fico indignado. Num almoço, amigos que trabalham num grande fundo de investimento contam que os cabeças querem colocar grana em logística e infra-estrutura no Brasil, mas a burocracia impede... Fui dar uma olhada em filosofia, alguns pensadores e logo gostei das idéias niilistas: ‘tudo isso pra quê mesmo?’. Li Nietzsche e sua crítica ao idealismo. Vi-me em um paradoxo: como ser simpático ao niilismo e ser católico ao mesmo tempo? Como não ver sentido na vida e ter (que ter) esperança num mundo melhor? Conversei com minha terapeuta, com o padre, com um vereador e até com um professor-filósofo. Fui apresentado a Soren Kierkegaard, um raro existencialista, angustiado, que se manteve cristão. Ainda não o conheço direito. Com o vereador, quis mostrar idéias de trânsito – também tenho estudado –, disparado o item que mais me incomoda numa cidade grande. Não entro na crítica fácil a ‘esses políticos malditos...’. A política somos nós. A Câmara é um conjunto aleatório de quaisquer 513 brasileiros. O cara me recebeu bem, mas vi que a boa vontade dele não bastava. O buraco é bem embaixo. Nos sermões do padre, o convite à ação diária. Na conversa pessoal, ele concordou comigo sobre o momento difícil da humanidade, de transição, com pouca luz no túnel. Relembrou a ideia de buscar portos seguros, instituições, em especial, a família. Ah, minha família... Tive um momento de paz ao perceber que nela poderei ficar bem, sem precisar pensar. Pensando na continuidade, começamos a pensar em filhos. Mas aí lembrei de Brás Cubas: ‘Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.’ E aí, volta a dúvida: ‘Como colocar um filho nesse mundo? Coitado...’ E a terapeuta dando liga, sugerindo que eu me cobre menos. Não sou fã do Brasil. Não gosto do ‘jeitinho’ brasileiro, tão encarnado no nosso dia-a-dia, a lei de Gerson. O brasileiro não é solícito; é uma auto-ilusão. Na verdade, chego a pensar que é diametralmente oposto a isso. Por que não largar o osso? Não foram poucas as vezes que me colocaram o ‘ame-o ou deixe-o’. Até eu mesmo me perguntei. Visitei um amigo no Canadá, tenho amigos nos EUA, na Alemanha, Austrália, na África do Sul, Cingapura,... Todos com seus bens e seus poréns. A grama do vizinho é sempre mais verde, é difícil ser ‘pra sempre’ um ‘imigrante’. No fundo, todo cético-ao-extremo vivo, todo niilista vivo é um incoerente; deveria se matar. Prefiro, então, a incoerência. Continuarei vivendo. Minha esposa, talvez quem melhor me conheça, não me considera mal-humorado, apesar de tudo isso. Ranzinza mas bem-humorado. Acordo sorrindo, vou dormir sorrindo. Tenho amigos com os quais eu sorrio. Vivo (ou sobrevivo) apesar de tudo. Talvez seja esse o princípio para ultrapassar o niilismo, se tornar o tal Übermensch. Ou talvez seja só parar de pensar. Sorrio apesar de tudo.

UPDATE: No exato dia em que escrevo esse texto, leio à noite em 'Ecce Homo' de Nietzsche:
A dor não aparece como objeção contra a vida: "se já não tens alegria alguma para me dar, bem!, tens ainda a tua dor..." (...) de tal modo que a preamar me impossibilitava o sono durante a noite, proporcionava-me quase em tudo o contrário do que era de desejar. Apesar de tudo e quase como demonstração da minha máxima de que tudo o que é decisivo acontece "apesar de". 

sexta-feira, 4 de maio de 2012

A Vida é um fractal da História


Há muitos anos, descobri o prazer da leitura. Mais tarde, com curiosidade, desejo de aprender e influenciado por um ou outro amigo, resolvi postergar o desejo de um mestrado, substituindo os cursos por leituras mais ‘sérias’, mais formais. A ideia era fazer meu próprio curso, aprender o que desse na telha. Ganhei amplitude, perdi profundidade. Nunca mais fiz uma matéria da qual eu não gostava. E fiquei preparado para ser um ‘tudólogo’: enrolar sobre quase todos os assuntos... hehe. E misturar assuntos diversos.
Essa introdução serve apenas para contextualizar uma associação que fiz pela leitura de alguns livros que, a princípio, não teriam nada a ver.

Começo com uma ideia do Nassim Taleb, de "Cisne Negro" e "Iludidos pelo Acaso", crítico do uso sem restrições da curva normal, com suas caudas estreitas. Taleb defende a tese de que alguns eventos de grande impacto são menos raros do que supostamente esperamos (os extremos da distribuição de probabilidades – as caudas – são na verdade mais gordos). Os exemplos disso na História são as guerras e revoluções que nos levaram ao mundo como é hoje. Fosse a História feita apenas pelos dias comuns, estaríamos em um estágio muito anterior. Ao ler esse trecho, imaginei 2 gráficos que se somam. Abaixo, o azul representa a evolução cotidiana, de grão em grão, lenta e segura. O vermelho, as revoluções e grandes mudanças, pontuais, ocasionais, um pouco caótico. A soma, em preto, resulta a evolução da História da humanidade. Passos pequenos somados a grandes saltos.





Retire 2 ou 3 grandes eventos ou grandes dias da História, e estaríamos em tempos MUITO diferentes. Analogia do tempo moderno: a Bolsa parece um ótimo investimento de longo prazo; retire (ou esteja fora dela) os 2 ou 3 dias com maiores valorizações e o rendimento total do período já não será bom.

Ok, e daí?
E daí que li também Nilton Bonder, o rabino cujo principal assunto são nossos confrontos internos, nossos dilemas conscientes e inconscientes. Com paródias judaicas (lembrando que sou bem católico...), ele passeia por filosofia e psicanálise. Gostei muito. ‘Alma imoral’ e ‘Segundas intenções’ são embates sobre a imoralidade da alma com a moralidade do corpo, o bom versus o correto, a evolução versus a preservação. (O jogo das capas dos livros é bem legal: aqui e aqui). Ao longo do texto, fui completando a tabela abaixo. E percebendo que nossas vidas são pequenas versões dos gráficos acima. A grande maioria dos dias é comum, mas nossa vida é fundamentalmente marcada pelos poucos momentos atípicos, por acaso, fora de controle. Uma mesmice com pequenos picos de grandes mudanças. Uma topada com certa pessoa, uma demissão, um acidente de carro, um convite, uma ruptura. Retire 2 ou 3 grandes momentos da vida e estaríamos em outro estágio.



Tanto a composição dos gráficos como a ideia de que pequenas estruturas formam estruturas maiores idênticas são baseadas nos fractais de Mandelbrot.
A vida é um fractal da história da humanidade.



Ao longo dos textos, fui pensando também sobre as implicações políticas ou, mais que isso, nas minhas discussões diárias (já que gosto de discutir...). Será que eu estava delirando, querendo encaixar o mundo ao meu pensamento (e não o contrário), fazer o convidado do tamanho da cama (e não o contrário)? No final de ‘Segundas intenções’, fui presenteado com uma seção voltada mesmo pra política – liberais versus conservadores – tal como eu vinha imaginando ao longo dos textos. Não viajei sozinho.
Não gosto da ideia de que essa separação política não faz mais sentido porque não me considero parte do mainstream esquerdista contemporâneo, não gosto desse ‘é-tudo-a-mesma-coisa’, já que não quero a ‘mesma coisa’ que está aí. Não acho legal tudo caminhar para o centrismo, para a peemedebização. E os livros me permitiram categorizar, rotular algumas dessas diferenças.

Em essência, a direita é o corpo, é a linha azul lá de cima. A esquerda é a alma, a linha vermelha lá em cima.
Em essência, o dia-a-dia tem que ser direitista, com cuidado, com regras, com preservação (Daí, acho que em geral os governos devem ser direitistas). Mas os grandes eventos, as grandes conquistas da humanidade foram realizadas por gente que pensou fora da caixa, esquerdistas, alma. Mas não dá pra ter uma situação esquerdista, é muito “vida-loka”. Direita como default, esquerda como conquista.
Do mesmo modo, em essência, nossa vida tem que ser com cuidado, com regras, com disciplina. Mas os grandes momentos da vida são imorais, são alma, um pouco caótico e sem controle.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Segundas intenções

Acabo de ler 'Segundas intenções' de Nilton Bonder. Foi-me apresentando como a resposta do Corpo à 'Alma Imoral', um outro excelente livro do autor-filósofo-rabino (aliás, percebo só agora que não fiz um texto sobre o que esse livro provocou em mim...; um erro).
'Segundas intenções' não é uma leitura fácil. Acho que é do tipo de livro que cada nova leitura acrescentará um ponto não percebido nas anteriores. Não sou capaz de fazer uma resenha. Por isso, apelo para a simples transcrição de alguns pontos que achei interessantes.


Sobre o confronto de corpo e alma
A imoralidade da alma se confunde então com o próprio impulso-mau, com uma segunda intenção; da mesma forma, o corpo, através da moral, produz hipocrisias que são também segundas intenções. O impulso-ao-mau abocanhará dos dois lados sempre que estes não conseguirem preservar a tensão entre si e abandonarem o diálogo direto.

Mas enquanto a tática da alma é propor o desmascaramento do impulso-mau pela transgressão de suas morais hipócritas, a tática do corpo será o de vesti-lo ainda mais, revelando assim que não há honestidade plena e que expor esta condição proporciona a melhor forma de retidão e franqueza disponíveis a um ser humano.

A alma denuncia a presença do impulso-mau na hipocrisia e na moral e as combate com imoralidade, transgressão, relativização e tolerância. O corpo denuncia a presença do impulso-mau na malícia e a combate com a moral, a obediência, a verdade e a intransigência.


Sobre a verdade per se
Dois rivais no mundo dos negócios se encontram numa estação de trem. O primeiro pergunta: “Para onde você está viajando?”. E o segundo responde: “Para Minsk”. “Para Minsk? Que cara de pau! Você está me dizendo que vai para Minsk só para que eu pense que está indo para Pinsk. Mas acontece que eu não sou bobo e sei que você vai mesmo é para Minsk. Então por que você está mentindo pra mim?”. A anedota traz uma questão profunda: a verdade existiria per se ou dependeria do entendimento de quem a escuta? (...) As falas partem sempre do lugar das intenções e atingem o lugar das intenções dos outros.


Sobre a certeza e a verdade
O objeto da visão é a certeza; o objeto da confiança é a verdade. A certeza está associada à função da presença, do material. A verdade está associada à existência, à essência.
“Ah, mas eu vi você fazendo!” é sempre uma prova material, e assim vamos pautando a vida por este preceito maior. O que é visto pelos outros parece determinar o que é verdadeiro. No entanto, isso funciona basicamente de maneira inversa. O que não é visto sempre terá maior materialidade para nossa identidade do que aquilo que se apresenta diante de nós. Distante de olhares, ou na intimidade da consciência, é produzido o material que nos faz sujeito. Nesse lugar, o ser que é visualizado pelos outros com certeza surpreenderia por ser bem mais ou bem menos do que a vestimenta leva os olhos a enxergar.


Sobre a mentira que não fere a verdade
Todo ser humano vestido é como o membro de um grupo de Alcoólicos Anônimos, expondo uma civilidade que é falsa, mas declarando-a abertamente como uma demonstração de honestidade humana. Nossa maior verdade está em nos caracterizarmos como potenciais mentirosos. E se isso parece uma resignação inaceitável, um conformismo à imperfeição, saiba que pode ser também uma manifestação de maturidade própria de uma consciência que se fiscaliza.

[Comentando a paródia do rabino que troca a galinha da mulher pobre para que fique dentro das normas dietéticas da tradição:] Quando o rabino mente – já que entrega outra galinha – só está mentindo para si e com consciência de que é uma mentira. Mentir apenas para si, tendo consciência disso, não fere a verdade. Essa é a inventividade do corpo, diferente da inventividade da alma, que se projeta para fora do mundo e quer modificá-lo (...)


Sobre o não visto
Lembro do caso de um psicanalista socorrendo uma mãe desesperada porque o filho a ameaçara com uma faca. Estavam discutindo acaloradamente na cozinha quando, colérico, o filho ergueu uma faca para a própria mãe. A mulher estava inconsolável: como poderia olhar de novo para aquele filho com amor? Não lhe saía da cabeça a cena da faca levantada, pronta para feri-la. O terapeuta então perguntou: “Mas o que foi que fez que ele não a esfaqueasse?”. A mulher, a princípio, pareceu não entender o que era perguntado. O terapeuta então completou: “Você diz que não consegue tirar de sua mente a cena em que aquele ódio tomou a forma de uma faca. Mas o que foi que deteve a mão de cumprir com o desígnio do ódio?”. Ele mesmo respondeu: “O que a deteve foi o amor. Foi o amor de seu filho que impediu a mão de desferir qualquer agressão”. O que o psicanalista estava dizendo é que sempre vemos o ato, mas não conseguimos completá-lo com seu desdobramento, com a parcela não visível.


Sobre o avesso do avesso do avesso do avesso
A estratégia de revelar um camaleão não é retirando sua roupa. Por baixo de uma estarão outra e mais outra e mais outra e assim infinitivamente. A estratégia correta não é tentar despir, mas acrescentar nova vestimenta. É no contrassenso que está a sapiência.


Sobre a racionalização
A racionalização é fruto da decisão da consciência. Esta racionalização equivaleria ao somatório de impulsos, com os quais considerariam possíveis retaliações sociais e morais. Ela induziria à ação não por aderência a princípio e valores, mas como resultado do mecanismo animal de temores [e recompensas] por seus impulsos.
Melhor o errado que não se afasta da verdade do que o correto que dela prescinde. Por isso, a preferência da tradição pelo “perverso que se sabe perverso” mais do que pelo “justo que se sabe justo”. (...) Isso só é possível se entendemos que o primeiro tem a virtude de não se enganar a si mesmo; já o segundo, por não desconfiar de suas segundas intenções, se faz presa fácil de construções errôneas sobre si e sobre a realidade.


Sobre a falsa humildade
“O nada refletido expõe o tudo”.
Uma clássica anedota judaica conta que em pleno Dia do Perdão, num dos momentos mais fervorosos das orações, o presidente da sinagoga se levantou e, consternado, confessou: “Meu Deus, quem sou eu? Eu sou um nada”. Logo depois, seguindo seu exemplo, levantou-se o diretor de culto que admitiu também: “Meu Deus, o que sou eu? Eu sou um nada”, voltando a sentar-se com um ar constrito. Animado pela seqüência, o bedel, o contínuo da sinagoga, fica de pé e confessa: “Meu Deus, quem sou eu? Eu sou um nada”. De imediato, várias pessoas protestam na multidão: “E quem ele acha que é para se declarar um ‘nada’?”.


Sobre as individualides
Um discípulo leva um amigo para conhecer o rabino. O amigo vai e descreve que tem uma visão sobrenatural, um halo de santidade emanava do rabino. O discípulo ficou gratificado mas com uma espécie de inveja, pois nunca tinha vivenciado algo semelhante. Perturbado com esse sentimento, procurou o conselho do próprio rabino: “Há anos com assiduidade venho vê-lo e nunca presenciei fenômeno extraordinário de conteúdo místico e transcendental. No entanto, trago um amigo, uma pessoa cheia de resistências e na primeira visita que lhe faz já afirma ter visto fenômenos assombrosos. Isso não me parece razoável, não parece justo”. Então o rabino respondeu: “Não se trata de ser justo. Seu amigo é pessoa resistente e, portanto, precisa ver a verdade com seus olhos. Você, por sua vez, é um discípulo, e de você é esperado que confie e acredite”.


Sobre o choro e a dor
Todo choro contém uma fração que não é de dor, mas de uma segunda intenção que quer controlar a dor. Para realizar isso, o ‘Eu’ tem como artifício transformar a experiência do acidente que causa a dor numa ameaça constante. O choro passa a existir por preocupação e por controle, não mais pelas conseqüências dolorosas do ocorrido, mas pela possibilidade dessa dor se repetir. No choro está o truque de transformar nossa impotência, o fato de que somos vítimas, numa forma falsa de potência e controle. Reagimos assim não só à dor, mas à injustiça da dor e à perda do privilégio que ela representa.


Sobre o medo e a dor
“Não é tanto o que me dói que me assusta; mas o que pode doer.”
Os sábios reconheciam que o mais poderoso recurso da imaginação é o medo, que pode ser definido como uma mentira muito sofisticada. O medo não é a subversão de um fato ou evidência, mas uma mentira sobre o tempo. Ele não distorce a realidade em si, apenas o seu tempo. Em vez de olhar a realidade no presente, o medo faz com que a vejamos nas imagens projetadas sobre o futuro. Como o futuro ainda não existe, tudo aquilo pelo qual nos preocupamos está no território da mentira, produzido pela inventividade. O medo tenta neutralizar o elemento mais poderoso do corpo e que tanto o ameaça: a dor. Diferente do medo, a dor localiza-se no território da verdade, que é o agora.


Sobre liberais e fundamentalistas
Para os liberais, a mentira humana, o lugar onde o ser humano enganou a si próprio, está nas doutrinas e nos dogmas. Falas da tradição ou de uma forma superior é a maneira de ludibriar as massas e as mentes em relação a uma autoridade que tem interesses particulares, uma moral particular. Por sua vez, para os fundamentalistas, o lugar onde o ser humano engana a si é na anuência a tudo o que lhe demanda o ‘Eu’, quando este se eleva à autoridade suprema. O ‘Eu’ está para o fundamentalista como o clero ou uma casta privilegiada está para o revolucionário. (...)

E a escolha pelo lado que assumimos amadurece num indivíduo a partir da relação que ele estabelece com seus desejos. Se a força vital permite a alguém exercer controle de seus desejos com maior facilidade, esse indivíduo tenderá a encontrar sua coerência diante das cobranças externas. Se, ao contrário, a força dos desejos for um aspecto fundamental da força vital desse indivíduo, então ele terá que primeiro prestar contas à sua coerência interna, mesmo que em detrimento das expectativas externas.


Sobre desilusão e tristeza
Quem tem sua coerência na alma deve saber que terá que conviver com o impulso-mau em sua liberdade. Quem se pauta pela coerência do corpo terá que conviver com o impulso-mau em suas verdades. E a terapêutica de cada um estará no campo do outro. Para um fundamentalista triste recomenda-se mais liberdade. Para um liberal perdido em ilusões prescreve-se um pouco de verdade e de lei.


Sobre o sagrado e a qualidade humana
A percepção de sagrado deriva de outra perspectiva e acredita na diferença qualitativa da natureza humana. Essa diferença estaria na capacidade de fazer escolhas morais. Estas escolhas não seriam o mero evitar da gratificação dos impulsos por conta do temor de suas conseqüências [como qualquer outro animal o faz], mas a capacidade de conter um impulso justamente quando não há possibilidade de implicações desagradáveis. Quando estas decisões são praticadas a partir de valores e sensibilidades do que é certo ou errado, abandonamos a dimensão animal e nos elevamos à qualidade humana.