domingo, 22 de outubro de 2023

A passagem do meio

[Muitos] Trechos selecionados do livro "A passagem do meio", de James Hollis.

Sem dúvidas, foi um dos livros que mais impactou minha jornada, tocando em questões fundamentais sobre o sentido da vida, assunto tão caro a mim.

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INTRODUÇÃO

Quem sou eu além da minha história e dos papéis que interpretei?

Do infortúnio ao significado. Aqueles que passam conscientemente pela transição trazem mais significado à sua vida.

Assumir responsabilidade pessoal. Se encararmos eternamente nossa vida como um problema causado pelos outros, um problema “a ser resolvido”, mudança nenhuma ocorrerá.

A obra consiste em três partes: insight, persistência e ação. A psicologia só é necessária na primeira parte; na segunda e na terceira partes, a força moral desempenha papel predominante.


PERSONALIDADE PROVISÓRIA

A natureza do sofrimento infantil: 1. negligência ou abandono; 2. esmagamento pela vida.

Nossas várias neuroses representam estratégias inconscientemente desenvolvidas para defender a criança.

Angústia existencial -> autoproteção

‘Eu’ relativamente impotente: por não possuir os elementos necessários a uma experiência comparativa, a criança reage de forma defensiva, tornando-se excessivamente sensível ao ambiente e ‘escolhendo’ a passividade, codependência ou compulsividade para proteger o território psíquico. Passar toda a vida na busca incessante de um Outro mais positivo. [by me: então elementos comparativos podem ser úteis para perceber-se menos frágil?]

O problema é que não somos nós que temos os complexos e sim os complexos que nos possuem.

Podemos ser movidos pelo que não compreendemos a nosso respeito. O poder libertador da tragédia grega repousava no fato de que através do sofrimento, o herói alcançava a sabedoria, ou seja, um relacionamento revisto entre a verdade interior (o caráter) e a verdade exterior (os deuses ou o destino).

Nossa vida só é trágica à medida que permanecemos inconscientes tanto do papel dos complexos quanto da divergência entre nossa natureza e nossas escolhas. [by me: O que eu sou vs o que eu poderia ser (?)]

Descompensação (=não mais repressão): quase toda sensação de crise na meia-idade é provocada pela dor da separação/disparidade entre a concepção interior do eu e a personalidade adquirida. Atuar com as antigas atitudes e estratégias já não é mais eficaz.

‘Não sei mais quem sou.’

A pessoa que o indivíduo foi está para ser substituída pela pessoa que será. A primeira deve morrer. Não um fim em si mesmo, mas uma transição. Aproximarmo-nos mais do potencial, vitalidade e sabedoria de um envelhecimento maduro. 

Do falso eu para a autenticidade.


O ADVENTO DA PASSAGEM DO MEIO

Repentina extensão da duração média da vida. Antes era ‘desagradável, selvagem e curta’.

Seja para o bem, seja para o mal, a gravidade psíquica deslocou-se da instituição para a escolha individual.

Do ponto de vista terapêutico, sintomas devem ser bem recebidos pois eles servem de flecha que apontam para ferida e também exibem uma psique saudável e auto-reguladora.

Neurose precisa ser compreendida como o sofrimento de uma alma que não descobriu seu significado.

Não sugere que possamos consumar uma vida sem sofrimento e sim que ele já está sobre nós e portanto somos obrigados a descobrir seu significado. [ou tentar]

Poderemos não descobrir o supremo propósito da vida mas [pelo menos] o significado do conflito, o choque entre os eu’s.

Ocorre quando somos radicalmente arremessados em direção à consciência; quando enfrentamos questões até então evitadas; quando nos vemos encarando nossa vida como algo mais que mera sucessão linear de anos.

Quem sou eu e para onde estou indo?

Essas grandes perguntas conferem valor e dignidade à nossa vida. Se as esquecermos, estaremos destinados ao condicionamento social, à banalidade e ao desespero.

Rever a vida a partir da posição privilegiada da segunda metade requer a compreensão e o perdão do inevitável crime da inconsciência. Mas deixar de ficar consciente na segunda metade da vida significa cometer um crime imperdoável.

Confusão entre mundo externo/objetivo vs mundo interno/faz-de-conta.

Narcisismo da criança: acreditar que é o centro do cosmo; pensamento inflacionado e ilusório mas inteiramente saudável e maravilhoso numa criança.

O pensamento mágico da criança é desgastado pela dor e confusão da adolescência. 

Pensamento heróico: maior realismo, mas ainda permeado de considerável capacidade de esperança. Útil pois, se desconfiássemos das provações e desapontamentos que nos esperam, quem avançaria à idade adulta?

Podemos dizer que a pessoa se encontra na passagem do meio quando o pensamento mágico da infância e o pensamento heróico da adolescência não mais coincidem com a vida que ela vivenciou.

Boa dose de desapontamentos, testemunhado o colapso de projeções, esperanças e expectativas; experimentado as limitações do talento, da inteligência e da própria coragem.

Restabelecimento do equilíbrio, restauração de uma relação humilde porém digna da pessoa com o universo.

Infância -> pensamento mágico

Adolescência -> pensamento heróico

[Primeira fase] Adulta -> pensamento realista

Projeto natural do ego administrar a ansiedade existencial, estabilizando o mais possível a vida. Embora ao longo de um continuum, temos transições a fazer. 

Reconhecer a inevitabilidade da mudança e seguir seu fluxo é sabedoria sutil e necessária, mas nossa tendência é resistir à destruição do que realizamos até então.

Indivíduos de hoje estão à deriva e sem modelos. Não existem ritos de passagem.

Quatro fases principais

Primeira identidade: infância. Dependência do ego com relação ao mundo objetivo dos pais.

Sem ritos de passagem, muitos prolongam essa dependência.

Eixo atuante: entre pais e a criança.

Segunda identidade: puberdade. Confusão espiritual e instabilidade do ego. Ego incipiente, maleável e vítima da influência dos companheiros, também confusos.

Universidades serviam como ‘tanque de retenção’, enquanto os jovens procuravam solidificar suficientemente o ego visando rompimento mais permanente e maduro com a dependência dos pais.

Solidificação do ego para o jovem reunir forças suficientes para deixar os pais, ingressar no mundo maior e lutar pela sobrevivência e pela realização dos desejos. “Contrate-me”. “Case comigo”.

Primeira fase adulta: Uma existência provisória, tentando agir como outros adultos. 

As projeções se desgastam e a pessoa não mais consegue evitar a revolta do Si-mesmo. Admitir sua impotência e perda de controle.

Enquanto os papéis tiverem função normativa, enquanto as projeções funcionarem, o indivíduo conseguirá evitar o encontro com o Si-mesmo inerente.

Dependência da infância foi levada para o inconsciente ou projetada sobre outros papéis.

Eixo atuante: entre o ego e o mundo.

Terceira identidade: CRISE DA MEIA IDADE: sensação de traição, fracasso das expectativas, vazio, perda de significado.

Segunda fase adulta: as projeções se dissolvem. Oportunidade para se tornar um Indivíduo, além do determinismo dos pais, complexos e condicionamento cultural.

Identidades provisórias são abandonadas e o falso eu é destruído. A dor dessa perda é recompensada pela nova vida. 

Os que experimentam a morte da primeira idade adulta e aceitaram maior responsabilidade pela própria vida passam seus últimos anos vivendo de modo mais consciente. Os que evitaram a primeira morte são perseguidos pela segunda - a definitiva - com medo de que sua vida não tenha sido significativa.

Quando sua hegemonia é derrubada, o ego humilhado começa então a dialogar com o Si-mesmo.

Eixo atuante: entre o ego e o Si-mesmo.

Quarta identidade: mortalidade. Aprender a viver com o mistério da morte.

O Ser-em-direção-à-morte. Objetivos teleológicos.

Eixo atuante: entre o Si-mesmo e Deus (ou o Cosmos)

Aquilo que é inconsciente é projetado.

As projeções personificam o que não é reclamado ou é desconhecido dentro de nós.

As projeções mais comuns: casamento, paternidade/maternidade e carreira.

Casamento: Transferiram as necessidades da alma para o amor romântico.

A maioria dos casamentos que chegam ao fim são rompidos pelos pesos das expectativas.

A pessoa acaba demonstrando ser apenas mero mortal como nós, temerosa, necessitada e que também projeta intensas expectativas. 

Relacionamentos íntimos carregam mais peso pela probabilidade de repetir o Outro Íntimo que outrora foi o pai ou a mãe, e que gastamos muita energia para nos afastar.

A discrepância entre a esperança silenciosa e a realidade cotidiana provoca uma dor considerável durante a passagem do meio.

Paternidade/Maternidade: Inevitavelmente todos somos culpados de projetar a vida que não vivemos sobre nossos filhos. O maior fardo que uma criança precisa carregar é a vida não vivida de seus pais.

Podemos inconscientemente esperar que a criança preencha nossa vida e nos conduza a um local mais elevado.

Adolescentes estão certos ao resistir à exigência de que sejam extensões dos seus pais. 

Ambivalência.

Carreira: trabalho e amor são requisitos fundamentais da sanidade.

Veículo fundamental para: 1. identidade; 2. proteção; 3. transcendência.

Quando essas projeções se dissolvem, há insatisfação com a maneira com que estamos usando nossa energia vital. 

Uma projeção só pode ser trocada por outra; mas a pessoa se aproxima mais daquele encontro com o Si-mesmo.

Pais: amortecedores psíquicos contra desconhecido e perigoso universo. Quando removidos, a pessoa sente o sopro da ansiedade existencial.

A erosão das projeções, o retraimento das esperanças e expectativas que elas personificam é dolorosa mas pré-requisito necessário para o autoconhecimento.

A perda da esperança de que os elementos externos venham a nos salvar dá origem à possibilidade de que tenhamos que nos salvar a nós mesmos. Emancipação da infância.

O corpo se torna um inimigo. As esperanças do coração persistem mas o corpo não mais responderá como antigamente. Essa ideia de limitação e imperfeição que faz com que a primeira idade adulta chegue ao fim. Reconhecer não apenas que somos mortais, que existe um fim, mas também que não há como algum dia realizarmos tudo que o coração persegue e anseia.

Diminuição da esperança: ilusão de grandeza do pensamento mágico infantil, ilusão do relacionamento perfeito, fama,...

Tropeçar na mediocridade é o fermento amargo da meia-idade.

A amargura e a depressão da meia-idade estão relacionadas com a quantidade de energia investida nos desejos fantásticos de infância. 

O Outro Íntimo é finalmente visto como uma pessoa comum, como nós mesmos.

Em meio ao desapontamento e ao desconsolo, começar a assumir a responsabilidade pela nossa satisfação. Não há ninguém lá fora para nos salvar, tomar conta de nós ou curar nossas feridas. Quando assumimos a responsabilidade direta de encontrar por nós mesmos o significado, a segunda idade adulta pode começar.

A turbulência da passagem do meio pode assemelhar-se a crise psicótica, como ‘louco’, ou se afastar dos outros. Perfeitamente compreensível considerando que as suposições nas quais a pessoa se apoiou a vida toda estão desmoronando, a personalidade provisória está se desequilibrando.

Nós não escolhemos as emoções; são elas que nos escolhem.

Todos nos sentimos separados de nós mesmos: lacuna cada vez maior entre a noção adquirida do eu e as exigências do Si-mesmo.

Neurose: divisão intrapsíquica, protesto da psique; experimentar a separação entre o somos e o que fomos destinados a ser. Manifesta-se na depressão, no abuso de substâncias, no comportamento destrutivo. 

Os sintomas são indícios úteis que conduzem ao local da injúria ou da negligência, apontando o caminho para cura subsequente; representam uma abertura à transformação.

O sofrimento resulta de um grau considerável de dissociação: durante o processo de socialização da infância e da pressão das realidades exteriores, nós nos afastamos de nós mesmos. Na meia-idade, porém, a injúria e a negligência da alma se manifestam.

Não existe cura pois a vida não é uma doença nem a morte uma punição. Mas existe um caminho que conduz a uma vida mais abundante e significativa.

O sofrimento parece ser um pré-requisito para a transformação da consciência. O sofrimento autêntico requer encontros com dragões. O sofrimento não-autêntico implica fugir deles.


VOLTANDO-SE PARA O INTERIOR

Todos nós já tivemos momentos em que tivemos vontade de nos afastar da loucura do mundo. Mas fugir para sempre significa evitar o desenvolvimento da identidade.

A indiferença daqueles que deveriam nos apoiar, a perda de entusiasmo pela ascensão profissional: erosão das projeções do ego. Confusão, frustração e perda de identidade.

Questões não concluídas da primeira metade da vida tornam-se dolorosamente visíveis.

Colapso do nosso contrato tácito com o universo: a suposição de que, se agirmos corretamente, se formos bons e sinceros, as coisas darão certas. Não existe tal contrato e quem passa pela passagem do meio toma consciência disso.

Erosão da ilusão da supremacia do ego: [consciência de que] não estamos mais realmente no controle da vida. [nunca estivemos]

Resultado fundamental da passagem do meio é sermos humilhados. Mas, a partir dessa experiência, uma nova vida pode surgir.

Enfrentar nossas dependências, complexos e temores sem mediação de terceiros. Deixar de culpar os outros pelo nosso destino e assumir total responsabilidade pelo nosso bem-estar físico, emocional e espiritual.

Ainda temos obrigações com nossos filhos, com a realidade econômica e as exigências do dever. Não obstante o mundo continua a reclamar nossos esforços, precisamos nos voltar para dentro.

Embate entre persona e sombra.

Persona: adaptação mais ou menos consciente do ego às condições da vida social. Papéis que são ficções necessárias.

Tendência a confundir a persona dos outros com a verdade interior delas e também achar que nós somos os nossos papeis. Quando nossos papeis mudam, vivenciamos uma perda do eu.

Como grande parte da primeira metade da vida envolve a formação e manutenção da persona, negligenciamos nossa realidade interior.

O preço da civilização é a neurose.

Toda socialização representa uma constrição dos impulsos naturais.

A raiva, por exemplo, frequentemente explode durante a passagem do meio porque fomos encorajados a reprimi-la. Quando reconhecida e canalizada, o indivíduo simplesmente se recusa a viver de forma não-autêntica a partir daí. Liberdade de sentir a própria realidade, permissão para viver a própria realidade.

Na meia-idade, a capacidade de enganarmos a nós mesmos foi esgotada. Olhamos no espelho e vemos nosso inimigo: nós mesmos. Somos mais sinceros com nós mesmos.

Embora o encontro com as nossas qualidades inferiores seja doloroso, o fato de a reconhecermos faz com que a projeção sobre os outros comece a se retrair. [GKC: o problema do mundo sou eu.]

Mas nesses momentos de humildade, começamos a melhor o mundo que habitamos.

Recuar e recolher o que foi deixado pra trás: o talento não aproveitado.

A verdade sobre nossos relacionamentos íntimos é que eles nunca podem ser melhores do que nosso relacionamento com nós mesmos.

A questão deve deixar de se concentrar na expectativa de que o Outro mágico nos salve, passando a focar no papel que o relacionamento em si pode desempenhar na conquista de maior significado para ambos, individualmente. [Quem vai ajudar na busca de sentido é o Relacionamento, não o Outro]. Tirar do parceiro a obrigatoriedade de encarnar o significado da nossa vida.

Apoiam e estimulam um ao outro através do relacionamento, mas não podem executar o desenvolvimento/individuação para o outro.

Antes queríamos confirmações, precisamos agora aceitar diferenças. Queríamos o amor simples da igualdade, agora aprendemos a difícil tarefa de amar a alteridade.

Um mais um não é igual a Um - como no modelo de fusão - e sim igual a Três, os dois como seres separados cujo relacionamento forma um terceiro.

Ninguém tem o direito de impedir o desenvolvimento do outro: este é um crime espiritual.

O verdadeiro fator aglutinante é saber o que é viver dentro da pele do outro. [“”empatia””?]

Pois tudo que temos no final é a nossa solitude.

Desejo consciente de compartilharmos a jornada com outra pessoa: conversação, sexualidade e compaixão.

O amor é encontrar o mistério cujo nome e natureza nunca podemos compreender, mas sem cuja presença somos aprisionados no superficial.

Mude ou murche no ressentimento. Cresça ou morra interiormente.

Fome de afeto: falta de maturidade quando a dimensão básica do valor e da segurança pessoais está voltada para o Outro.

Temos um companheiro sempre a postos dentro de nós mesmos.

Condicionado a esquivar-se do sentimento, a evitar a sabedoria instintiva e a não fazer caso da sua verdade interior, o homem comum é um estranho para si mesmo e para os outros, um escravo do dinheiro, do poder e da posição social.

Existem poucos modelos em nossa cultura que convidam ou permitem que o homem seja sincero consigo mesmo.

Só conhecem a presença ou ausência do poder como sinal de sua masculinidade. [...] Enfrentar o medo mascarado pelo poder.

A personalidade não nos é dada pelo Senhor; ela é alcançada na luta diária contra os demônios da dúvida e da desaprovação.

Hoje lutam valentemente para equilibrar a vida profissional e a família, pouco sobra para os sonhos do passado.

Um pai que disse à filha: “Considerando a média dos divórcios e o fato de que os homens morrem mais cedo, você tem uma probabilidade de 80% de ter que viver sozinha, com ou sem crianças para sustentar. Por conseguinte, é melhor que você tenha uma profissão e suficiente autoestima para que seu senso de valor não dependa de um “homem da sua vida”.

Quando cai seu manto de protetora, a mulher se vê obrigada a perguntar quem ela é o que deseja fazer da sua vida.

Encontrar coragem para arriscar uma nova definição de si mesma, que valorize o relacionamento mas que não seja limitada nem definida por ele.

É surpreendente que algum relacionamento dê certo.

O caso amoroso na meia-idade é o portador fundamental da projeção renovada [...] quando o parceiro conjugal demonstrar ser apenas humano.

Os indivíduos possuídos pelos conteúdos do inconsciente são incapazes de ser realistas.

Encerra a emotividade perdida na pessoa. Apesar de tudo, os casos amorosos na meia-idade frequentemente geram mais perda e tristeza. “O prazer que você obtém não vale a confusão em que você se mete.”

O significado do caso amoroso é recolher o que foi deixado para trás no desenvolvimento da pessoa. Algo ainda desconhecido. O que continua inconsciente é projetado sobre outra pessoa.

Os casos amorosos sempre continuarão a existir porque a imensidão do desconhecido persiste.

Assim como o caso amoroso promete unir o indivíduo às necessidades não satisfeitas pelo casamento, também o casamento é sobrecarregado pelo ressentimento e pela raiva resultantes das necessidades insatisfeitas.

A conversa conjugal tornou-se de tal modo impregnada de inibição, repetição e desapontamento que o indivíduo perdeu a esperança de verdadeiramente encontrar o Outro na mediocridade do cônjuge. 

Com frequência, vejo o compartilhar de sentimentos, aspirações e antigas mágoas somente na terapia ou no processo de divórcio. Não é tanto que o casamento tenha fracassado. Ele não foi nem mesmo tentado. 

É preciso reconhecer o paradoxo de que para que o casamento se aglutine é preciso que haja inicialmente maior separação. 

O casamento só pode ser tão bom quanto, ou se situar no mesmo nível que, as duas pessoas que dele participam.

Amar a diversidade do parceiro é um evento transcendente, pois penetramos no verdadeiro mistério do relacionamento no qual somos levados ao terceiro local - não você mais eu, porém, nós, que somos mais do que nós mesmos um com o outro.

Uma das características da passagem do meio é a alteração do relacionamento com nossos pais, [...] num novo contexto de poder, [...] observamos o declínio deles, [...] aprendemos a nos diferenciar. 

A primeira idade adulta é enformada não através do verdadeiro conhecimento do mundo (interior e exterior), mas sim, através da confusão e da dependência das instruções e dos modelos dos pais e das instituições.

A necessidade de encontrar a própria autoridade é essencial na meia-idade; de outro modo, a segunda metade da vida permanece dominada pelas fantasias da infância. 

Como é humilhante reconhecer a dependência interior na autoridade externa projetada sobre o cônjuge, patrão, igreja ou estado. [...] Parece assustador escolher o próprio caminho.

O quanto de nossa identidade é passada para as crianças. Muitos pais projetam sobre o filho a vida que não viveram.

Desse modo, o filho vivencia o amor dos pais como sentimento condicional. 

A linha de separação entre proteger e amar carinhosamente uma criança ou viver inadequadamente através dela pode parecer muito tênue. [...]

Criança poderá ficar presa a uma lealdade inconsciente ao nível de desenvolvimento dos pais.[filme Uma Lição de Amor]

Quanto mais individuado o pai ou a mãe, mais livre pode ser o filho.

Atrito entre pais e adolescentes é a maneira que a natureza encontrou de romper o vínculo da dependência mútua. 

Desapontamento com o filho é diretamente proporcional à intensidade com que encaram o filho como extensão de si mesmos e não como ser diferente.

É assim que deveríamos tratar nossos filhos: dando-lhes o direito de serem diferentes e não tendo nenhuma obrigação para conosco. 

Como no casamento, a tarefa é amar a diversidade do Outro. Sentirmo-nos culpados por não termos sido o pai ou a mãe perfeitos, ou tentar proteger nossos filhos das provações da vida, não é bom pra eles.

Libertar nossos filhos não é apenas útil pra eles mas também necessário para nós, uma vez que libera energia para o nosso próprio desenvolvimento. 

O modelo de intimidade ao qual a criança é exposta é formativo. 

As duas maiores necessidades da criança são de proteção e de fortalecimento. [...] A proteção está arquetipicamente associada ao princípio feminino e o fortalecimento ao masculino.

Nostalgia: dor pelo lar.

No final, só podemos julgar os outros pela qualidade do seu coração, o que não significa que eles não tenham causado danos a si mesmos e aos outros nesse ínterim.

O complexo é inevitável porque a história é inevitável. A parte inconsciente do nosso passado se infiltrará em nosso presente e determinará nosso futuro. 

O grau no qual nos sentimos protegidos e queridos afeta diretamente a nossa capacidade de dar carinho para os outros. 

Já ouvi comentários que psicoterapia nada mais é do que culparmos nossos pais pelas nossas desgraças. Muito pelo contrário. Quanto mais sensíveis formos diante da fragilidade da psique humana, mais provável é que perdoemos nossos pais por se deixarem ferir e por serem capazes de nos ferir. 

O principal crime é permanecermos inconscientes. 

Se eu tiver sido traído por um dos pais, terei muita dificuldade para confiar nos outros e por conseguinte arriscar envolver-me num relacionamento. 

Se eu não tiver tido meu valor confirmado, terei medo de fracassar, fugirei do sucesso, num ciclo repetitivo no qual evitarei as tarefas da vida.

Assim, cada um de nós tem sua tarefa econômica e uma ferida econômica. Muitas mulheres que cuidaram da família, a liberdade econômica constitui um poder que lhes foi negado. Para muitos homens, oprimidos pelas contas dos ortodontistas e pelas anuidades universitárias, as finanças constituem uma camisa de força, uma interminável repressão.

Há uma enorme diferença entre o trabalho e a vocação. O trabalho é (...) para ganhar dinheiro e satisfazer nossas necessidades econômicas. A vocação é o que somos chamados a fazer com a energia da nossa vida. Sentir que somos produtivos é uma parte fundamental da nossa individuação e deixar de responder à nossa vocação pode causar dano à alma.

40% dos americanos mudam de profissão; não empregos, e sim, profissão.

Jung diz que a adequada imitatio Christi não é viver como o Nazareno da antiguidade, e sim viver a própria individuação, a própria vocação, tão plenamente quando Jesus viveu o Cristo.

O que estou sendo chamado a fazer?

Quando alcançamos certo grau de estabilidade, podemos ter as nossas bases abaladas e ser chamados numa nova direção.

Somos julgados não apenas pela bondade do nosso coração, mas também pela opulência da nossa coragem.

A alma tem suas necessidades que não são bem atendidas por contracheques e privilégios.

Neurose: desunião consigo mesmo.

Jung, 1921: oito tipologias da personalidade.

Todos possuímos, em proporções diferentes, as quatro funções: pensamento, sentimento, sensação e intuição.

A ideia da função dominante não implica algo melhor, mas apenas mais desenvolvido e mais utilizado. 

Durante a passagem do meio, as partes menos desenvolvidas da psique exigem nossa atenção. (...)

Tentando trazer a função inferior à consciência.

Na meia-idade, sentimos muita aflição. (...) Parte dessa aflição se origina por termos sido coniventes ao negligenciarmos a pessoa total. Navegamos no sentido que era mais fácil pra nós. Fomos recompensados pela nossa produtividade e não pela totalidade. 

A função inferior é o alçapão do inconsciente.

Recuperar as partes de nós mesmos que foram deixadas pra trás durante a especialização, a ignorância ou a proibição.

Reconhecer que o parceiro pode pertencer a outro tipo aumenta a boa-vontade e pode conseguir reduzir a tensão e os mal-entendidos.

A persona representa uma face necessária a ser apresentada ao mundo exterior e ela também protege nossa vida interior. A persona é um fragmento de Si-mesmo.

A sombra se refere a tudo aquilo que foi reprimido no indivíduo. Quanto mais investimos numa autoimagem particular, mais desenvolvemos uma adaptação unilateral à realidade. [by me: quando a personagem fica maior que a pessoa?]

A sombra se manifestará, seja através de atos inconscientes, projeções sobre outras pessoas, depressões, doenças somáticas. 

Não deve ser igualada ao mal, mas apenas à vida que foi reprimida. Seu bloqueio conduz a uma redução da vitalidade.

O encontro consciente com a sombra na meia-idade é fundamental, pois ela estará atuando sorrateiramente de qualquer modo. Ajuda a evitar que culpemos ou invejemos outras pessoas pelo que nós mesmos deixamos de fazer.

Sombra, como parte do todo, negligenciada e reprimida, porém necessária à dialética que, por fim, promove a totalidade.

O que é inconsciente é sofrido internamente ou projetado externamente.

Como é difícil para qualquer um de nós reconhecer que o que é exigido é a cura interior. É tão mais fácil procurar consolo ou satisfação no mundo exterior.

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Na literatura

A arte pode ser algumas vezes mais clara que a vida, por abraçar o universal.

Podemos aprender algo a respeito de nós a partir das limitações, insights e ações da personagem.

A meio caminho na jornada da vida

Dei comigo numa floresta escura,

Tendo perdido o caminho

– A Divina Comédia, Dante

Há momentos em que sabemos que deveríamos fazer uma coisa, mas somos incapazes de fazê-la. Mas, ao contrário de Hamlet de Shakespeare, temos a oportunidade, através da consciência, de mudar o roteiro. Hamlet, por exemplo, sempre terá que pronunciar as linhas escritas para Hamlet.

O erudito Fausto de Goethe dominava todas as profissões da época - direito, filosofia, teologia, medicina - e “aqui estou eu, apesar de todo meu conhecimento, o desgraçado tolo que eu era antes”. Seguiu sua função dominante, o pensamento, alcançou o ápice do aprendizado humano e, em vez de doçura, experimenta cinzas.

Compreende que duas almas se enfrentam dentro do seu peito: uma que anseia por criar uma música capaz de derreter as estrelas e a outra ligada à mediocridade cotidiana.

Memórias do Subsolo, Dostoievski: denúncia ao culto do progresso, do meliorismo, do otimismo ingênuo a respeito da capacidade da razão de erradicar as desgraças do mundo.

Torna consciente aquilo que todos nós fazemos na primeira idade adulta: reagir às feridas da vida. Construímos um conjunto de comportamentos baseados em feridas e vivemos nossa visão desvantajosa com racionalizações e autojustificativas.

Humanidade como um bípede ingrato: Como pode um homem com minha lucidez de percepção respeitar a si mesmo?

Recusa-se a se tornar digno de ser amado ou perdoado.

Sua honestidade obriga o leitor a fazer um inventário semelhante.

Por mais doloroso que possa ser o encontro com nossa sombra, ele restabelece a nossa ligação com a nossa qualidade humana.

Forças arquetípicas da proteção e do poder: quando os pais são capazes de carregar essas grandes forças e passá-las adiante, elas se tornam ativas dentro da criança. Quando são conseguem encontrar essas forças nos pais, a criança as procura em substitutos.

A solidão da jornada. 

Nos dias mais sombrios, ainda retorna ao seu lugar de partida para obter alguma indicação de quem ele é e do que a vida representa. 

Os amigos e os animais têm sua própria jornada e só podem percorrer conosco parte do caminho. O poeta se vê obrigado a carregar os fragmentos de memória como alimento para a alma.

Hillman: todos os casos clínicos são ficção. Os fatos da vida da pessoa são bem menos importantes do que a maneira como nos lembramos deles, o modo como os interiorizamos e somos impulsionados por eles.

Voltar ao cenário de infância, seja literalmente, seja na imaginação, nos ajuda a estabelecer um relacionamento adulto com essa pretensa realidade. Como as carteiras de sala terão sua proporção reduzida, do mesmo modo, dores ou prazeres da memória são reelaborados através da força e do conhecimento do adulto.

Destino, contudo, não é sinônimo de sina. O destino representa o nosso potencial, as nossas possibilidades inerentes, que podem ou não vir a se realizar. O destino convida à escolha.

Autoexame: necessário ato de consciência e responsabilidade pessoal que torna possível o destino.

Enquanto permanecermos identificados com a ferida, odiaremos o rosto no espelho.

Sentiremos ódio por nós mesmos por causa da nossa incapacidade de nos libertamos do passado.

Nossas biografias são armadilhas, seduções enganadoras que nos congelam na aparente facticidade do passado.

Precisamos nos voltar mais conscientemente para a elaboração dos nossos mitos; caso contrário, jamais seremos mais do que a mera somatória do que nos aconteceu.

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A experiência da passagem do meio não é diferente de acordar e descobrir que estamos sozinhos. Nossas únicas opções são: voltar a dormir, pular do navio ou agarrar o leme e seguir viagem.

Por mais solitária ou injusta que possa parecer.

Em nenhum ponto vivemos mais honestamente ou com mais integridade do que quando, rodeados pelos outros, sabemos que estamos sozinhos.

A premissa implícita da nossa cultura, qual seja, que seríamos felizes através do materialismo, do narcisismo ou do hedonismo, foi claramente à falência.

Os sintomas que caracterizam a transição de meia-idade: tédio, repetidas mudanças de emprego ou parceiro, uso de drogas ou álcool, pensamentos ou atos autodestrutivos, infidelidade, depressão, ansiedade, crescente compulsividade.

Os antigos padrões [...] se repetem com crescente ansiedade porém com cada vez menos eficácia. Uma crise de individualidade explode. Não sabemos quem somos além dos papéis sociais e dos reflexos psíquicos.

A tarefa é assustadora pois primeiro precisamos reconhecer que não existe salvação, nem pais que fazem tudo melhor e nenhuma maneira de voltar a uma época anterior. 

A verdade é simplesmente que aquilo que devemos saber virá de dentro de nós. 

A individuação é a imposição evolutiva de cada um de nós de nos tornarmos a nós mesmos o mais completamente que formos capazes, dentro dos limites que nos são impostos pela nossa sina. “Eu não sou o que me aconteceu; eu sou o que escolhi tornar-me.”

Nunca saberemos com certeza quão livres ou determinados realmente somos, mas somos obrigados a agir como se fôssemos livres. Esse ato restaura a dignidade e o propósito para a pessoa que de outro modo continuaria a sofrer apenas como vítima.

Trazer a individualidade à consciência. 

É claro que somos sempre seres sociais, mas somos também seres espirituais com um telos ou um misterioso propósito individual. 

Como o indivíduo, através da sua própria existência, pressupõe um relacionamento coletivo, segue-se que o processo de individuação precisa conduzir a relacionamentos coletivos mais intensos e mais amplos, não ao isolamento.

O paradoxo da individuação: não precisarmos nos alimentar dos outros.

Individuação não é narcisista

A tarefa da primeira metade da vida é fortalecermos suficientemente o ego para deixarmos nossos pais e ingressarmos no mundo. [quem perde os pais cedo, tem sua 2ª metade antecipada?]

Se não zelarmos pelo nosso processo individual, estaremos nos arriscando a perder o nosso senso de significado.

Argumentou Pascal que toda a cultura moderna é um vasto ~divertissement~ destinado a nos manter afastados da solidão e de pensarmos em nós mesmos. 

Nietzsche escreveu: quando estamos sozinhos e quietos, temos medo de que algo vá ser sussurrado ao nosso ouvido e, portanto, odiamos o silêncio e nos entorpecemos com a vida social.

Solitude: o estado psíquico no qual nos encontramos totalmente presentes a nós mesmos. Arriscar sentirmos solidão para alcançar a sensação de união com nós mesmos.

Quanto mais benéfico o relacionamento entre pais e filho, mais a pessoa será autossuficiente e se sentirá à vontade com a solitude. Paradoxalmente, quanto mais problemático o relacionamento com os pais, mais dependente será a pessoa nos seus relacionamentos de modo geral. 

Cito esse comentário não para instilar a culpa nos pais, e sim nos lembrarmos de quanto fomos definidos por eles e pelos seus substitutos, como as instituições sociais.

Grandes perdas frequentemente acontecem na meia-idade: as crianças vão embora, amigos morrem, divórcio.

O fundamental é honrar o relacionamento sentindo sua perda, porém reconhecendo ao mesmo tempo que tivemos o tempo todo um compromisso maior do que qualquer relacionamento isolado.

“Que parte do meu eu desconhecido estava amarrado àquela pessoa ou àquele papel?”

As pessoas têm tanto medo da solidão que se agarram a terríveis relacionamentos e profissões colhedoras em vez de arriscar sofrer as consequências de renunciar ao Outro.

No final, não existe nenhum substituto para a coragem necessária para enfrentarmos a solidão. Ouvir o silêncio.

Quando não nos sentirmos solitários por estarmos sozinhos, é porque alcançamos a solitude.

A meta é paralisar o tráfego da mente.

A autoalienação é em grande parte a condição do mundo moderno e só pode ser mudada pela ação individual.

Entrando em contato com a criança perdida: essa primeira experiência como fonte potencial de cura durante a passagem do meio. 

Uma das experiências mais corrosivas da meia-idade é a sensação de futilidade e falta de alegria que chega com a rotina.

Quando estamos imobilizados, somos salvos pelo que está dentro de nós.

O talento deixado para trás tem poder curativo quando trazido à tona e utilizado. Esse aspecto incompleto faz parte da tragédia existencial.

O fluxo do sentimento é frequentemente bloqueado pelo tédio ou pela depressão na meia-idade. 

Onde existe divertimento, existe a força vital.

A paixão é o que nos alimenta e, como a vocação, é mais uma convocação do que uma escolha.

Descobrir e seguir nossa paixão não significa [largar tudo] pois temos compromissos com a honra, com as pessoas cuja vida é afetada pelas nossas decisões e [...] uma responsabilidade moral.

[...] Como se algum dia tudo fosse se esclarecer e as escolhas fossem se tornar fáceis. A vida raramente é clara e fácil; contudo, a escolha é o que define e confirma a vida.

Se vivermos muito, todos aqueles a quem amamos nos deixarão. O corolário é que se não vivermos muito, somos nós que os deixaremos.

[Reação a essa obviedade] é um protesto, não da mente cognitiva, mas da criança interior que precisa que o Outro sempre esteja presente.

A necessidade foi chamada de mãe da invenção, mas a dúvida é que na verdade o é.

É preciso coragem para enfrentar diretamente nossos estados emocionais e dialogar com eles. Mas é aí que repousa a chave da integridade pessoal. 

O terror é compensado pelo significado, pela dignidade, pelo propósito.

Auseinandersetzung: diálogo necessário com nós mesmos.

Aprendemos novamente o que nossos antepassados sabiam: que a escuridão é luminosa, que o silêncio fala. 

Quando temos coragem e disciplina de nos voltarmos para dentro, de vivenciar a grande dialética com a alma, recuperamos o nosso apoio no eterno.

Memento mori: com a erosão das bases míticas, com a transferência do valor pessoal para a aquisição material e a posição social, a cultura moderna passou a considerar a morte como inimiga.

Por que queremos permanecer jovens? Porque não queremos assumir a vida como um desenvolvimento e sim como uma fixação, porque não estamos preparados para encará-la como uma série de mortes e renascimentos, porque não estamos realmente à altura da plenitude da jornada e preferiríamos nos demorar um pouco no que é conhecido e confortável.

Mito de Titono: um homem que era imortal, mas que continuava a envelhecer fisicamente. Enquanto seu corpo murchava, ele implorou aos deuses que lhe concedessem a mortalidade. [o guarda velhinho de Green Mile]

É perfeitamente natural que nos sintamos angustiados com a diminuição da energia e a ruína de tudo aquilo que nos esforçamos para assegurar.

Se fôssemos imortais, nada realmente teria importância, nada realmente contaria. Mas não somos imortais, de modo que cada escolha importa. É através das escolhas que fazemos que nos tornamos humanos e descobrimos nosso senso pessoal de significado. O paradoxo, então, é que o valor e a dignidade, o terror e a promessa da existência humana dependem da mortalidade.

“A morte é a mãe da beleza”.

Sabemos que sobrevivemos à passagem do meio quando não mais nos agarramos a quem éramos antes, não mais buscamos a fama, a fortuna ou a aparência da juventude.

Jesus: para ganhar a vida, precisamos aprender a perdê-la.

Deslocamo-nos do conhecimento da mente para a sabedoria do coração.

“A vida é uma pausa luminosa entre dois grandes mistérios que, contudo, são um”.

Nunca chegaremos ao dia em que finalmente conseguiremos explicar, com certeza, toda a jornada. Somos apenas chamados a vivê-la o mais conscientemente possível.

Talvez a meta da jornada seja a própria jornada.

A perda dos papéis coletivos é uma espécie de morte, mas a renúncia consciente também pode dar início a um processo de transformação.

Nossa tarefa na meia-idade é sermos suficientemente fortes para renunciar às urgências do ego.

Aprendemos que ninguém realmente sabe o que a vida significa ou o que são os mistérios.

A dor que sentimos é o sofrimento anímico daqueles que tentaram “se contentar com respostas erradas ou inadequadas às questões da vida”.

Com relação àqueles que se preocupam com o impacto da sua jornada sobre os outros, precisamos lembrar que a melhor maneira de ajudá-los é vivermos a nossa própria vida tão claramente para que eles fiquem livres para viver a deles.

É esta ênfase na verdade interior em vez de na exterior que distingue a segunda idade adulta da primeira.

Podemos nos transformar em estranhos para aqueles que julgavam nos conhecer, mas pelo menos não mais seremos estranhos para nós mesmos.

Que separemos quem nós realmente somos da soma das experiências que interiorizamos. Nosso pensamento se desloca do mágico para o heróico e finalmente para o humano.

Nossas relações com as outras pessoas tornam-se menos dependentes, exigindo menos delas e mais de nós mesmos. Nosso ego sai perdendo e temos de nos reposicionar em relação ao mundo exterior - carreira, relacionamentos, fontes de fortalecimento e satisfação.

Ao exigir mais de nós mesmos, evitamos que os outros fiquem desapontados por não fornecerem o que jamais poderiam fornecer; reconhecemos que a responsabilidade básica deles, assim como a nossa, é sua própria jornada.

A passagem do meio nos trará de volta à vida depois de sermos separados dela. É estranho que apesar de toda ansiedade também haja uma impressionante sensação de liberdade.

Estamos ou não ligados a algo infinito? Sejamos, portanto, afáveis anfitriões e aquiesçamos conscientemente à pausa luminosa.

domingo, 2 de julho de 2023

A exceção como política de Estado

Textaço do Fernando Schüler na Veja.
Destaco alguns trechos.

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Muita gente diz que o Brasil se tornou uma democracia pela metade. Um sistema que respeita a regra majoritária, alternância de poder, mas fragiliza garantias do estado de direito. De um lado, se diz que era preciso aceitar certos “excessos” do Judiciário, admitir a “experimentação regulatória”, na linguagem elegante do ministro Fachin, ou a censura em situação “excepcionalíssima”, como naquela decisão da ministra Cármen Lúcia. Tudo por um bom motivo. De outro, se diz que isto não passa de um exercício de autoengano. [...]


É precisamente aí que as coisas começam a mudar. Escrevi sobre tudo isso à época das eleições de 2018.[...] Para saber se nossos autoproclamados “democratas” estariam dispostos a reconhecer a legitimidade de um tipo de pensamento, valores e mesmo de uma estética diametralmente opostos a sua visão de mundo. Por óbvio, não estavam. 

[...] 


O inquérito das fake news foi aberto já em março de 2019. [...] Houve um solitário voto contrário do ex-ministro Marco Aurélio, dizendo que o “Supremo não é sinônimo de absoluto”. Suas palavras se perderam na poeira. A partir dali, assistimos a tudo que estamos cansados de saber. [...]. Depois disso, tivemos a virtual edição do debate eleitoral, a partir da tese elitista sobre a incapacidade do “eleitor ordinário” para lidar com a “desordem informacional”


Foi ao que assistimos. Acusar um candidato de corrupção? Só com decisão judicial. Lançar um filme? Só se passar pelo teste algo metafísico de “presunção de veracidade”, visto que nem sequer seu conteúdo era conhecido. No debate do PL das Fake News, as plataformas digitais foram duramente censuradas e impedidas de expor sua visão; um youtuber é banido, sem menção a lei alguma; um humorista é preso por meses, sob a mesma lógica da fraseologia seguida de pontos de exclamação, posta no lugar do direito. Muita gente acreditou na urgência de cada uma dessas atitudes, o que é em si mesmo um dado para nossa reflexão. Por que cargas d’água proibir a menção do sabido vínculo de Lula com ditadores latinos, como Maduro e Ortega, seria essencial à democracia? Qual a “grave ameaça” contida na discurseira do Monark, naquele tuíte do PCO ou das indagações do professor Marcos Cintra? O fato simples de que sempre foi perfeitamente falsa a oposição entre “respeitar direitos individuais” e “defender a democracia”.


Tudo isso vai muito além do tema da liberdade de expressão ou dos direitos individuais. A questão diz respeito ao próprio “equilíbrio na diversidade” [...]. O ponto é que a “exceção” se tornou política de Estado, no Brasil, e a questão é saber o impacto disso precisamente sobre a ideia de uma democracia inclusiva e aberta à expressão de nosso pluralismo político. E mais: se o que temos presenciado não é exatamente o que tantos temiam: nosso deslizamento para uma democracia de traços não liberais. Tipo difuso de autoritarismo fragilizando prerrogativas e direitos republicanos


[...] mesmo podendo-se identificar excessos por parte do Judiciário, “a maioria da sociedade parece estar relativamente satisfeita com o desenho atual” que concede ao Judiciário uma “macrodelegação” de poderes. Sua análise é realista: “o custo marginal da mudança tem sido maior do que o do status quo”. De fato, o Senado vem se recusando a exercer controle sobre a ação do Supremo, boa parte do sistema político parece satisfeita com o modelo de tutela, e há apoio da sociedade civil. Somos um estranho país em que “garantistas” apoiam prisões de ofício e todo jogo interpretativo do direito, desde que a seu gosto. E onde [ …] boa parte da mídia apoia a censura.


Processos de “autocratização” e fragilização de garantias individuais não raro ocorrem assim: com suporte majoritário e cálculo, que vai do apoio à passividade, na elite política. É o caso brasileiro. Censura e quebra de prerrogativas são aplicadas homeopaticamente, e a cada vez produzem mais recuo e medo. Quanto se produz de autocensura, no jornalismo, quando um jornalista tem seu passaporte retido? Quanto se “disciplina” um parlamentar, quando um colega é banido? E quanto aquilo que é inaceitável, em um primeiro momento, vai ganhando ares de normalidade? Um blogueiro censurado em 2019? Grave. Um humorista preso em 2023? Indiferença. 


[...] muita gente imaginou que havíamos enterrado o passado autoritário [...]. O fato é que não. [...] Andamos em um labirinto, cuja saída parece distante.


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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper


domingo, 26 de dezembro de 2021

Da Incerteza | por Lucas Lujan | em Aglomerados


Na maioria das vezes em que acreditei ter certeza, eu estava enganado. Senão todas. A cada diferente tomada de consciência do meu engano, a mesma tranca se abria para me libertar da cela. E, quase sempre, meu equívoco nem está na opinião em si, mas no pressuposto. A opinião é uma gota no oceano da proposição. Não raramente, meu tropeço está em assumir que todos estão dentro do mesmo oceano.

A certeza tem aparência libertadora porque tenta se passar por verdade. [...] e acaba escravizando os que estão mais inclinados ao princípio da autoridade. Na filosofia, grosso modo, existem dois princípios fundamentais: o da autoridade e o da autonomia. O princípio da autoridade estabelece que você deve confiar naquilo que um interlocutor com autoridade lhe diz para acreditar: pais e família, em geral, tradição, sacerdotes religiosos, livros sagrados. O princípio da autonomia estabelece que você deve confiar em si e em sua capacidade crítica e que, portanto, você deve reunir conhecimento suficiente para aprender a interpretar, julgar e escolher o que considera melhor. Os dois sempre me pareceram necessários, mas, com o tempo, entendi que só são necessários quando andam juntos, repartindo seus caminhos. Quando o princípio da autoridade tenta se sobrepor à autonomia, ele não se torna apenas desnecessário, mas abjeto. Geralmente, assume formas totalitárias, cheias de vigor, apenas para mascarar a covardia de sentir medo diante do desconhecido. Logo, essa versão doente do princípio da autoridade conquista os corações mais medrosos que precisam de uma resposta definitiva para as suas dúvidas. Esses são as presas fáceis e dóceis da verdade, que nem precisa de esforço para capturá-los: eles se entregam para a morte sem suar uma só gota de sangue. A certeza, de uma forma ou de outra, logo descamba para um autoritarismo perigoso, daqueles que sempre precisam dar a última palavra. Por sinal, é assim que se reconhece uma pessoa assenhorada pela certeza: ela sempre precisa encerrar a dúvida.

O prisioneiro não se dá conta da prisão até que seu equívoco o leva para um beco sem saída da racionalidade, uma vez que as grades que o cercam não são concretas, mas intelectuais. Sua cela só ganha contornos objetivos quando a certeza já não é mais capaz de imitar a verdade - o que sempre acontece, porque, convenhamos, a verdade não é coisa tão assimilável. Hora ou outra, a certeza falhará.

Essa falha é a falha fundamental, porque pode desfazer a ilusão que a todos nós já enfeitiçou. Quando tomo consciência de que, algemado pela certeza, falhei ao sustentar um equívoco como verdade, descubro que não sou perfeito. Percebo que minha inteligência é mediana e que não tenho qualquer privilégio na compreensão sobre a realidade. Sou como a maioria das pessoas, todos já fomos encarcerados por alguma certeza sedutora e, provavelmente, estamos enjaulados por outra, neste exato momento. [...] O método que a certeza usa para aprisionar é esse: dizer que você é mais inteligente do que a média, até te convencer. Não seja convencido. Qualquer palavra que inflame o seu ego é suspeita e pode te matar.

[...]
Mas nem toda admiração é válida. Sujeitar-se ao cárcere da vaidade para ganhar aplausos tornará você alguém duplamente escravizado, pela certeza e pelo ego. Nada restará de sua autonomia, estará subjugado pela certeza de que a aprovação da multidão é suficiente para alimentar a necessidade de aprovação que seu ego lhe impõe. Agora você estará acorrentado por todos os lados.

A verdade tem um jeito mais elegante de se apresentar. Ela revela que não sou capaz de compreender todas as coisas, e esta é a única constatação que preciso para ser livre.

[...]. A minha projeção otimista se revelou suspeita. É provável que eu tenha escolhido o otimismo porque ele é bem aceito pela maioria. Parece-me que as pessoas preferem as palavras alegres, que contornem expectativas felizes, onde tudo ficará bem. Frases como "vai passar". Isso vai passar. Vai? A mim, parece que nem tudo passa. A ideia de superação me soa mais como propaganda do que como realidade. Enfim, talvez eu tenha escolhido o lado otimista para não ser o cavaleiro do apocalipse. Ou para agradar à minha mãe. Ou para forjar confiança no espírito da minha esposa. Ou para ganhar likes. Não sei. Hoje vou dormir abraçado com a incerteza.

[...]. Projetar as diversas possibilidades me afasta da ilusão pueril de que vivemos em um mundo bom, de pessoas boas. Eu, pelo menos, não vivo. Até aqui, o mundo tem se mostrado hostil para mim [...] Poderia argumentar que, então, resta confiar, se não na bondade, na decência. Parece-me, contudo, que o equívoco seria semelhante, porque, no fundo, o equívoco está em confiar. Se estou em uma realidade onde a verdade não se manifesta de maneira clara, o melhor é suspeitar. [...]

Duvido. A dúvida é espaço vazio. O vazio pode até soar triste, mas não é. O vazio tem a virtude de não esgotar. O que está vazio permanece aberto para as possibilidades. No vazio cabem as hipóteses e é melhor lidar com elas do que com as convicções. Na convicção nada de novo nasce. O vazio é a parte do meu quadro de referências que permanece em branco. Não há nada anotado ainda, mas há espaço para novas anotações. Quanto universo ainda tenho para descobrir!

Dúvida é o bolo levado ao forno. O cozinheiro lida com a hipótese de que se todos os ingredientes tiverem sido corretamente acrescentados e o modo de preparação tiver sido bem observado, o bolo crescerá. Uma hipótese que será testada pelo tempo. Pelos minutos que o bolo aquece no forno, tudo o que há é a incerteza.

Dúvida é o pescador que sai para trabalhar. Ele lida com a hipótese de que se estiver no horário correto, com as iscas bem preparadas e se tiver observado com atenção as condições do tempo, conseguirá peixes. Uma hipótese que será testada pelo tempo. Entre o barco vencer a arrebentação e chegar em alto mar, tudo o que há é a incerteza.

Se ambos estiverem assenhorados pela certeza, convencidos de que são melhores do que os demais, é muito provável que não cuidarão bem das condições e fracassarão, e sobrará apenas o lamento dos prisioneiros. Se seus quadros de referências estiverem terminados, nada poderão aprender de novo, nem mesmo com a frustração.

A vida é a incerteza do bolo; é a hesitação do mar.

[...]
Dúvida é uma relação amorosa, como um casamento. Duas pessoas repartem o tempo e a morte porque lidam com a hipótese de que se amam. Oferecem ao outro o que têm de melhor, cuidado, afeto, e cultivam o terreno para terem frutos. Uma hipótese que será testada pelo tempo. E nem mesmo o primeiro enterro desfará a incerteza.

[...]
Há, entretanto, as hipóteses pelas quais vale a pena morrer. Todas elas oferecem a bonita proposta de viver em plena insegurança. Essa é a melhor forma de reconhecê-las. [...] Antes, desconfiam das próprias impressões e suspeitam de si o tempo todo, permanecendo em constante revisão, evitando, a todo custo, o encantamento da certeza.

A dúvida do viver não pode ser paralisante. Isso daria mais espaço ao medo do que ele merece. Uma dose de medo é boa, mas duas podem te embriagar, anestesiar e confundir a sua percepção da realidade. A incerteza não impede o cozinheiro de se arriscar no forno; não impede o pescador de se arriscar no mar; não impede que pessoas se arrisquem em casamentos. Nelas, há uma força ativa, potente o suficiente para enfrentarem o desconhecido, não sem medo, mas com coragem. Essa coragem é obtida não pela ausência do medo, mas em resposta a ele. É um grito da autonomia que não aceita o encurtamento de sua liberdade. É um assimilar do tempo e da morte. E perceber que, dada a brevidade da vida, a única urgência é que não seja em vão.

Aqueles que não se deixam encarcerar, nem pela certeza, nem pelo ego e nem pelo medo, são os que fazem apostas. Não o fazem movidos pela certeza da proposta, mas pela beleza que enxergam nela.

Eu, que sou um medroso, mas não um covarde, tenho a minha aposta. Uma só. Eu aposto que só o amor pode dar sentido à vida, porque é só o amor que torna a vida amável. [...]

Amo, mas sem convicções. Meu amor está mais ocupado com amar até o fim do dia do que em amar eternamente. A eternidade é uma abstração, é lugar nenhum e, portanto, é quase uma covardia jurar amor eterno. Eu prefiro as juras de amor diário, daquelas que se renovam durante o jantar.

[...] O amor pressupõe liberdade porque ninguém pode amar por obrigação, só voluntariamente. E, onde há liberdade, há risco e insegurança, porque a porta está sempre aberta para o outro poder sair quando desejar e só retornar se quiser. Quem ama de portas fechadas não tem um afeto, tem um escravo. E quem ama com segurança inabalável está escravizado pela certeza romântica, tal qual está a princesa na torre de marfim, à espera de seu príncipe redentor, que a amará para todo o sempre, até o fim dos dias.

Amo, não com a certeza do para sempre, mas com a hesitação do mar, com a incerteza do bolo. Sei que pode dar muito errado, então saio para pescar com o zelo do pescador, porque preciso amar para sobreviver. Amo com o cuidado do cozinheiro, porque quero servir o amor e reparti-lo à mesa.

Amo, não para dar certo, mas porque é bonito. Tudo o que amei virou saudade e sentir saudade é a única garantia que tenho de que minha vida valeu a pena, porque, se pudesse, eu viveria todas as minhas saudades de novo. Nem sempre é possível reconhecer a felicidade quando a olhamos de frente, mas sempre sabemos quando e onde fomos felizes, por causa da saudade. Note que a felicidade do peixe não é um acidente, assim como não o é o bolo que cresceu. O pescador e o cozinheiro trabalharam e se dedicaram em criar as condições para a felicidade advir.

Amo, porque aprendi a aceitar a incerteza do amar. Não me sinto inseguro em sua insegurança, tendo em vista que a segurança é sempre uma miragem. Sinto-me vivo e isso me basta. Tenho a impressão de que, amando, todo dia que passa é um dia a mais. Mas não tenho certeza.

[...] Desconfio de todas as minhas hipóteses, que já não são muitas. Ainda que confinado, entretanto, me sinto mais livre. Desde que me deitei em minha cama, estou me libertando de precisar saber como será amanhã, eu não sei. Na medida em que me desfaço das previsões, sinto o peso da bola de ferro se esvair. Eu prefiro o amor e, no amar, sempre há imprevisibilidade. Não sei como será, mas sei como gostaria de ser. Talvez a pandemia mude o mundo. Talvez o melhore. Talvez o piore. Ou, talvez não mude nada. Isso não está no meu controle. O que posso fazer é apostar em mim: apostar que eu não serei o mesmo depois disso. E aposto em mim por amor.

Porque vivo com dúvidas, mergulhado em incertezas, imagino que muitos outros também vivam assim. Portanto, posso ser mais paciente. Posso ser mais compassivo. Posso me esforçar para ouvir mais as inseguranças alheias e posso falar menos sobre as minhas certezas - afinal, não é porque estou preso que preciso trazer o outro para dentro da minha jaula.

[...]
Não me julgo livre. Não abraço esse tipo de ilusão. Sei que estou cercado de grades que permanecem invisíveis, mas que se manifestarão com o tempo. Essa é a incerteza por excelência: desconhecer o número de celas que me restam para escapar.

Se eu estiver equivocado em absolutamente tudo, mas cheio de amor, não terá sido em vão, porque, amando, aposto que encontrarei a chave de cada prisão que sufoca a minha existência. E o que importa não é ter razão, é ser livre. Mas essa é só mais uma hipótese, que se confirmará com o tempo. Até o último dia viverei em dúvida, que cessará não pela descoberta da verdade, mas por meu estado de inconsciência. A morte é a última libertação do saber.

Estou confinado há meses, mas me libertando das certezas. [...] Não estou feliz, mas com uma mão eu preparo a massa do bolo e com a outra, onde se destaca a minha aliança de casamento, seguro as iscas e uma vara de pescar.

sábado, 14 de novembro de 2020

Quando tudo isso acabar...

De madrugada, minha filha vai à minha cama e deita abraçadinha, com medo de algum sonho. Sorrindo, abraçados, eu penso: quando a vida acabar, o Céu deve ser assim. Aí, sim, a vida vai ser leve.

Com os riscos no emprego anterior, dependências perigosas, eu pensava: quando eu sair, vou largar um peso. Aí, sim, a vida vai ser leve.

Estressado no trabalho atual, riscos em todas as frentes, eu penso: quando tudo isso acabar, vou pra roça. Ou pra Montevidéu, com a família da esposa. Aí, sim, a vida vai ser leve...

Emputecido com o ‘novo normal’ enjaulado, eu penso: quando o vírus acabar, aí sim, a vida vai ser leve...

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Foi comum em toda a minha vida, imaginar meu velório. A princípio, parece mórbido. Mas é apenas uma simbologia para ‘ver a própria vida de fora’, sair da pista e ir pro camarote, ver a ~big picture~. Raras as vezes que tive a auto-percepção de que não poderia morrer naquele momento porque ainda tinha algo a ser feito. Não. Acho que vivi de forma que, a qualquer momento que eu morresse, o caminho até aquele momento estava completo, bem traçado, sem pendências, sem necessidades de acertos de contas.

Acho que é uma boa definição de “felicidade” ou de “bom combate”. Mas não de “leveza”.

Assunto recorrente nas minhas auto-reflexões e terapia, esse fardo excessivo que carrego. E o ponto é que talvez eu não precisasse. Como mudar? O terapeuta diz que eu me estressaria na roça, porque a vaca deu 5 litros de leite ao invés dos 6 programados.

Impressão é que sempre estou na contagem regressiva para passar a fase em questão.

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Eu tenho um pouco de desprezo por algumas pessoas que vivem sabáticos constantes, viajando pelo mundo todo. Minha impressão é que estão apenas fugindo de si mesmos. Mas, numa auto-análise, eu não sou muito diferente. A diferença é que estou sempre fugindo do “agora”. Mas, embora a ansiedade seja pelos riscos do futuro, é lá, depois da arrebentação, que a vida vai ser leve.

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Eu acho que sofro de excesso de ‘memento mori’. Sei que vamos todos morrer e talvez eu queira chegar logo lá. É só lá que a vida é leve. 

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

O único problema filosófico realmente sério

Por questões pessoais (casos próximos, hesitações, esposa se especializando no tema) e por interesse filosófico (li alguns pensadores que falam sobre), o tema do suicídio me é próximo. 
No mês de alerta ao tema, resolvi mapear algumas frases. Se você não está se sentindo bem, converse com alguém. Você faz falta.
ACamus
“Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia.”

GKChersterton
“O homem que mata um homem, mata um homem. O homem que se mata, mata todos os homens; no que lhe diz respeito, ele elimina o mundo.
(...) “O ladrão se satisfaz com diamantes; mas o suicida não: esse é seu crime. (...) O suicida insulta a todos os objetos da terra ao não furtá-los. Ele conspurca cada flor ao recusar-se a viver por ela. (...) Obviamente pode haver patéticas desculpas emocionais para o ato. Geralmente as há para o estupro, e quase sempre para o atentado a bomba. (...) O crime desse homem é diferente de outros crimes — pois torna até os crimes impossíveis.”
Li uma solene bobagem de algum livre-pensador. Dizia ele que um suicida era simplesmente o mesmo que um mártir. A patente falácia desse texto ajudou-me a esclarecer a questão. Obviamente um suicida é o oposto de um mártir. Um mártir é um homem que se preocupa tanto com alguma coisa fora dele que se esquece de sua vida pessoal. Um suicida é um homem que se preocupa tão pouco com tudo o que está fora dele que ele quer ver o fim de tudo. Um quer que alguma coisa comece; o outro, que tudo acabe.
VFrankl
“A maioria se preocupava com a questão: 'será que vamos sobreviver ao campo de concentração? Pois caso contrário todo esse sofrimento não tem sentido'. Em contraste, a pergunta que me afligia era outra: 'Será que tem sentido todo esse sofrimento, essa morte ao nosso redor? Pois caso contrário, afinal de contas, não faz sentido sobreviver ao campo de concentração.' Uma vida cujo sentido depende exclusivamente de se escapar com ela ou não e, portanto, das boas graças de semelhante acaso – uma vida dessas nem valeria a pena ser vivida.


quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Ao Dinho

Dinho não deveria andar de bicicleta, Dinho não deveria dirigir, Dinho não deveria beber cerveja, Dinho não deveria fazer tantas cirurgias. Dinho não deveria viver mais que alguns meses: Dinho viveu por mais de 40 anos.

"Não sabendo que era impossível, foi lá e fez." (Mark Twain)

Dinho se libertou... Pode cair... Pode beber... Não tem mais curativos pra fazer.

Às vezes, queremos ver levitações, mares se abrindo, milagrinhos inúteis, como se Deus fosse um curandeiro. E - cegos infieis - não percebemos o milagre que foi Deus permitir o Dinho por tanto tempo entre nós.

Impossível falar do Dinho sem falar de todos que o cercaram, especialmente a Cida. Lembro dela quando leio sobre o sentido da vida. "O propósito da vida é encontrar o maior fardo que você pode suportar - e suportá-lo”, diz Jordan Peterson. “O dever, por mais tedioso ou doloroso que pareça, é o único sentido da vida”, diz Olavo de Carvalho. Talvez esteja tudo resumido em uma das mensagens centrais do Evangelho: viver é servir. E a Cida serviu. Dia e noite. Incansável. Por mais de 40 anos. Guerreira. Santa.

A história do Dinho e da Cida também me fazem lembrar da passagem de Santo Antão no deserto. Após lutar por muito tempo contra o demônio, ele suplica: “Senhor, onde estavas? Por que não viestes antes para me salvar?”. Jesus responde: “Eu estava aqui o tempo todo, Antão. Mas eu queria te ver lutar”. Diante de uma luta cotidiana, inglória, sem possibilidade de regressão da doença, o Dinho e a Cida lutaram. Eles carregaram suas cruzes, ele choraram; mas serão consolados. (Mt 5;4)

Nesse momento difícil, rezo também por todos os acometidos por doenças raras. E também – talvez principalmente – pelos seus pais. Pais que, na gravidez ou no parto, tiveram uma notícia inesperada e tiveram que mudar todos seus projetos, seus sonhos. Que carregam suas cruzes, muitas vezes sozinhos, muitas vezes sem saber o caminho. Que eles encontrem luz e força. Deus quer vê-los lutar.

Rezo também pelo Rodrigo. Um cara especial que, desde criança, soube se colocar com muito amor como o “outro” filho. Uma tarefa muito difícil para todos nós, desejosos do carinho e da atenção de nossas mães. 

O melhor que podemos esperar dessa vida é conseguir trilhar algum caminho de santidade, sendo exemplos para outros. O Dinho, a Cida e o Rodrigo são exemplos pra nós. Que aprendamos com eles.

Termino com um trecho de Shakespeare:

"Seria odiá-lo mantê-lo mais tempo na roda de tortura que é este mundo. (...) E é espantoso que tenha resistido assim; VIVEU MUITO ALÉM DA PRÓPRIA VIDA." (Rei Lear, Shakespeare, na tradução de Millor) 

Um brinde ao Dinho!