terça-feira, 24 de abril de 2012

Segundas intenções

Acabo de ler 'Segundas intenções' de Nilton Bonder. Foi-me apresentando como a resposta do Corpo à 'Alma Imoral', um outro excelente livro do autor-filósofo-rabino (aliás, percebo só agora que não fiz um texto sobre o que esse livro provocou em mim...; um erro).
'Segundas intenções' não é uma leitura fácil. Acho que é do tipo de livro que cada nova leitura acrescentará um ponto não percebido nas anteriores. Não sou capaz de fazer uma resenha. Por isso, apelo para a simples transcrição de alguns pontos que achei interessantes.


Sobre o confronto de corpo e alma
A imoralidade da alma se confunde então com o próprio impulso-mau, com uma segunda intenção; da mesma forma, o corpo, através da moral, produz hipocrisias que são também segundas intenções. O impulso-ao-mau abocanhará dos dois lados sempre que estes não conseguirem preservar a tensão entre si e abandonarem o diálogo direto.

Mas enquanto a tática da alma é propor o desmascaramento do impulso-mau pela transgressão de suas morais hipócritas, a tática do corpo será o de vesti-lo ainda mais, revelando assim que não há honestidade plena e que expor esta condição proporciona a melhor forma de retidão e franqueza disponíveis a um ser humano.

A alma denuncia a presença do impulso-mau na hipocrisia e na moral e as combate com imoralidade, transgressão, relativização e tolerância. O corpo denuncia a presença do impulso-mau na malícia e a combate com a moral, a obediência, a verdade e a intransigência.


Sobre a verdade per se
Dois rivais no mundo dos negócios se encontram numa estação de trem. O primeiro pergunta: “Para onde você está viajando?”. E o segundo responde: “Para Minsk”. “Para Minsk? Que cara de pau! Você está me dizendo que vai para Minsk só para que eu pense que está indo para Pinsk. Mas acontece que eu não sou bobo e sei que você vai mesmo é para Minsk. Então por que você está mentindo pra mim?”. A anedota traz uma questão profunda: a verdade existiria per se ou dependeria do entendimento de quem a escuta? (...) As falas partem sempre do lugar das intenções e atingem o lugar das intenções dos outros.


Sobre a certeza e a verdade
O objeto da visão é a certeza; o objeto da confiança é a verdade. A certeza está associada à função da presença, do material. A verdade está associada à existência, à essência.
“Ah, mas eu vi você fazendo!” é sempre uma prova material, e assim vamos pautando a vida por este preceito maior. O que é visto pelos outros parece determinar o que é verdadeiro. No entanto, isso funciona basicamente de maneira inversa. O que não é visto sempre terá maior materialidade para nossa identidade do que aquilo que se apresenta diante de nós. Distante de olhares, ou na intimidade da consciência, é produzido o material que nos faz sujeito. Nesse lugar, o ser que é visualizado pelos outros com certeza surpreenderia por ser bem mais ou bem menos do que a vestimenta leva os olhos a enxergar.


Sobre a mentira que não fere a verdade
Todo ser humano vestido é como o membro de um grupo de Alcoólicos Anônimos, expondo uma civilidade que é falsa, mas declarando-a abertamente como uma demonstração de honestidade humana. Nossa maior verdade está em nos caracterizarmos como potenciais mentirosos. E se isso parece uma resignação inaceitável, um conformismo à imperfeição, saiba que pode ser também uma manifestação de maturidade própria de uma consciência que se fiscaliza.

[Comentando a paródia do rabino que troca a galinha da mulher pobre para que fique dentro das normas dietéticas da tradição:] Quando o rabino mente – já que entrega outra galinha – só está mentindo para si e com consciência de que é uma mentira. Mentir apenas para si, tendo consciência disso, não fere a verdade. Essa é a inventividade do corpo, diferente da inventividade da alma, que se projeta para fora do mundo e quer modificá-lo (...)


Sobre o não visto
Lembro do caso de um psicanalista socorrendo uma mãe desesperada porque o filho a ameaçara com uma faca. Estavam discutindo acaloradamente na cozinha quando, colérico, o filho ergueu uma faca para a própria mãe. A mulher estava inconsolável: como poderia olhar de novo para aquele filho com amor? Não lhe saía da cabeça a cena da faca levantada, pronta para feri-la. O terapeuta então perguntou: “Mas o que foi que fez que ele não a esfaqueasse?”. A mulher, a princípio, pareceu não entender o que era perguntado. O terapeuta então completou: “Você diz que não consegue tirar de sua mente a cena em que aquele ódio tomou a forma de uma faca. Mas o que foi que deteve a mão de cumprir com o desígnio do ódio?”. Ele mesmo respondeu: “O que a deteve foi o amor. Foi o amor de seu filho que impediu a mão de desferir qualquer agressão”. O que o psicanalista estava dizendo é que sempre vemos o ato, mas não conseguimos completá-lo com seu desdobramento, com a parcela não visível.


Sobre o avesso do avesso do avesso do avesso
A estratégia de revelar um camaleão não é retirando sua roupa. Por baixo de uma estarão outra e mais outra e mais outra e assim infinitivamente. A estratégia correta não é tentar despir, mas acrescentar nova vestimenta. É no contrassenso que está a sapiência.


Sobre a racionalização
A racionalização é fruto da decisão da consciência. Esta racionalização equivaleria ao somatório de impulsos, com os quais considerariam possíveis retaliações sociais e morais. Ela induziria à ação não por aderência a princípio e valores, mas como resultado do mecanismo animal de temores [e recompensas] por seus impulsos.
Melhor o errado que não se afasta da verdade do que o correto que dela prescinde. Por isso, a preferência da tradição pelo “perverso que se sabe perverso” mais do que pelo “justo que se sabe justo”. (...) Isso só é possível se entendemos que o primeiro tem a virtude de não se enganar a si mesmo; já o segundo, por não desconfiar de suas segundas intenções, se faz presa fácil de construções errôneas sobre si e sobre a realidade.


Sobre a falsa humildade
“O nada refletido expõe o tudo”.
Uma clássica anedota judaica conta que em pleno Dia do Perdão, num dos momentos mais fervorosos das orações, o presidente da sinagoga se levantou e, consternado, confessou: “Meu Deus, quem sou eu? Eu sou um nada”. Logo depois, seguindo seu exemplo, levantou-se o diretor de culto que admitiu também: “Meu Deus, o que sou eu? Eu sou um nada”, voltando a sentar-se com um ar constrito. Animado pela seqüência, o bedel, o contínuo da sinagoga, fica de pé e confessa: “Meu Deus, quem sou eu? Eu sou um nada”. De imediato, várias pessoas protestam na multidão: “E quem ele acha que é para se declarar um ‘nada’?”.


Sobre as individualides
Um discípulo leva um amigo para conhecer o rabino. O amigo vai e descreve que tem uma visão sobrenatural, um halo de santidade emanava do rabino. O discípulo ficou gratificado mas com uma espécie de inveja, pois nunca tinha vivenciado algo semelhante. Perturbado com esse sentimento, procurou o conselho do próprio rabino: “Há anos com assiduidade venho vê-lo e nunca presenciei fenômeno extraordinário de conteúdo místico e transcendental. No entanto, trago um amigo, uma pessoa cheia de resistências e na primeira visita que lhe faz já afirma ter visto fenômenos assombrosos. Isso não me parece razoável, não parece justo”. Então o rabino respondeu: “Não se trata de ser justo. Seu amigo é pessoa resistente e, portanto, precisa ver a verdade com seus olhos. Você, por sua vez, é um discípulo, e de você é esperado que confie e acredite”.


Sobre o choro e a dor
Todo choro contém uma fração que não é de dor, mas de uma segunda intenção que quer controlar a dor. Para realizar isso, o ‘Eu’ tem como artifício transformar a experiência do acidente que causa a dor numa ameaça constante. O choro passa a existir por preocupação e por controle, não mais pelas conseqüências dolorosas do ocorrido, mas pela possibilidade dessa dor se repetir. No choro está o truque de transformar nossa impotência, o fato de que somos vítimas, numa forma falsa de potência e controle. Reagimos assim não só à dor, mas à injustiça da dor e à perda do privilégio que ela representa.


Sobre o medo e a dor
“Não é tanto o que me dói que me assusta; mas o que pode doer.”
Os sábios reconheciam que o mais poderoso recurso da imaginação é o medo, que pode ser definido como uma mentira muito sofisticada. O medo não é a subversão de um fato ou evidência, mas uma mentira sobre o tempo. Ele não distorce a realidade em si, apenas o seu tempo. Em vez de olhar a realidade no presente, o medo faz com que a vejamos nas imagens projetadas sobre o futuro. Como o futuro ainda não existe, tudo aquilo pelo qual nos preocupamos está no território da mentira, produzido pela inventividade. O medo tenta neutralizar o elemento mais poderoso do corpo e que tanto o ameaça: a dor. Diferente do medo, a dor localiza-se no território da verdade, que é o agora.


Sobre liberais e fundamentalistas
Para os liberais, a mentira humana, o lugar onde o ser humano enganou a si próprio, está nas doutrinas e nos dogmas. Falas da tradição ou de uma forma superior é a maneira de ludibriar as massas e as mentes em relação a uma autoridade que tem interesses particulares, uma moral particular. Por sua vez, para os fundamentalistas, o lugar onde o ser humano engana a si é na anuência a tudo o que lhe demanda o ‘Eu’, quando este se eleva à autoridade suprema. O ‘Eu’ está para o fundamentalista como o clero ou uma casta privilegiada está para o revolucionário. (...)

E a escolha pelo lado que assumimos amadurece num indivíduo a partir da relação que ele estabelece com seus desejos. Se a força vital permite a alguém exercer controle de seus desejos com maior facilidade, esse indivíduo tenderá a encontrar sua coerência diante das cobranças externas. Se, ao contrário, a força dos desejos for um aspecto fundamental da força vital desse indivíduo, então ele terá que primeiro prestar contas à sua coerência interna, mesmo que em detrimento das expectativas externas.


Sobre desilusão e tristeza
Quem tem sua coerência na alma deve saber que terá que conviver com o impulso-mau em sua liberdade. Quem se pauta pela coerência do corpo terá que conviver com o impulso-mau em suas verdades. E a terapêutica de cada um estará no campo do outro. Para um fundamentalista triste recomenda-se mais liberdade. Para um liberal perdido em ilusões prescreve-se um pouco de verdade e de lei.


Sobre o sagrado e a qualidade humana
A percepção de sagrado deriva de outra perspectiva e acredita na diferença qualitativa da natureza humana. Essa diferença estaria na capacidade de fazer escolhas morais. Estas escolhas não seriam o mero evitar da gratificação dos impulsos por conta do temor de suas conseqüências [como qualquer outro animal o faz], mas a capacidade de conter um impulso justamente quando não há possibilidade de implicações desagradáveis. Quando estas decisões são praticadas a partir de valores e sensibilidades do que é certo ou errado, abandonamos a dimensão animal e nos elevamos à qualidade humana.

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