domingo, 26 de dezembro de 2021

Da Incerteza | por Lucas Lujan | em Aglomerados


Na maioria das vezes em que acreditei ter certeza, eu estava enganado. Senão todas. A cada diferente tomada de consciência do meu engano, a mesma tranca se abria para me libertar da cela. E, quase sempre, meu equívoco nem está na opinião em si, mas no pressuposto. A opinião é uma gota no oceano da proposição. Não raramente, meu tropeço está em assumir que todos estão dentro do mesmo oceano.

A certeza tem aparência libertadora porque tenta se passar por verdade. [...] e acaba escravizando os que estão mais inclinados ao princípio da autoridade. Na filosofia, grosso modo, existem dois princípios fundamentais: o da autoridade e o da autonomia. O princípio da autoridade estabelece que você deve confiar naquilo que um interlocutor com autoridade lhe diz para acreditar: pais e família, em geral, tradição, sacerdotes religiosos, livros sagrados. O princípio da autonomia estabelece que você deve confiar em si e em sua capacidade crítica e que, portanto, você deve reunir conhecimento suficiente para aprender a interpretar, julgar e escolher o que considera melhor. Os dois sempre me pareceram necessários, mas, com o tempo, entendi que só são necessários quando andam juntos, repartindo seus caminhos. Quando o princípio da autoridade tenta se sobrepor à autonomia, ele não se torna apenas desnecessário, mas abjeto. Geralmente, assume formas totalitárias, cheias de vigor, apenas para mascarar a covardia de sentir medo diante do desconhecido. Logo, essa versão doente do princípio da autoridade conquista os corações mais medrosos que precisam de uma resposta definitiva para as suas dúvidas. Esses são as presas fáceis e dóceis da verdade, que nem precisa de esforço para capturá-los: eles se entregam para a morte sem suar uma só gota de sangue. A certeza, de uma forma ou de outra, logo descamba para um autoritarismo perigoso, daqueles que sempre precisam dar a última palavra. Por sinal, é assim que se reconhece uma pessoa assenhorada pela certeza: ela sempre precisa encerrar a dúvida.

O prisioneiro não se dá conta da prisão até que seu equívoco o leva para um beco sem saída da racionalidade, uma vez que as grades que o cercam não são concretas, mas intelectuais. Sua cela só ganha contornos objetivos quando a certeza já não é mais capaz de imitar a verdade - o que sempre acontece, porque, convenhamos, a verdade não é coisa tão assimilável. Hora ou outra, a certeza falhará.

Essa falha é a falha fundamental, porque pode desfazer a ilusão que a todos nós já enfeitiçou. Quando tomo consciência de que, algemado pela certeza, falhei ao sustentar um equívoco como verdade, descubro que não sou perfeito. Percebo que minha inteligência é mediana e que não tenho qualquer privilégio na compreensão sobre a realidade. Sou como a maioria das pessoas, todos já fomos encarcerados por alguma certeza sedutora e, provavelmente, estamos enjaulados por outra, neste exato momento. [...] O método que a certeza usa para aprisionar é esse: dizer que você é mais inteligente do que a média, até te convencer. Não seja convencido. Qualquer palavra que inflame o seu ego é suspeita e pode te matar.

[...]
Mas nem toda admiração é válida. Sujeitar-se ao cárcere da vaidade para ganhar aplausos tornará você alguém duplamente escravizado, pela certeza e pelo ego. Nada restará de sua autonomia, estará subjugado pela certeza de que a aprovação da multidão é suficiente para alimentar a necessidade de aprovação que seu ego lhe impõe. Agora você estará acorrentado por todos os lados.

A verdade tem um jeito mais elegante de se apresentar. Ela revela que não sou capaz de compreender todas as coisas, e esta é a única constatação que preciso para ser livre.

[...]. A minha projeção otimista se revelou suspeita. É provável que eu tenha escolhido o otimismo porque ele é bem aceito pela maioria. Parece-me que as pessoas preferem as palavras alegres, que contornem expectativas felizes, onde tudo ficará bem. Frases como "vai passar". Isso vai passar. Vai? A mim, parece que nem tudo passa. A ideia de superação me soa mais como propaganda do que como realidade. Enfim, talvez eu tenha escolhido o lado otimista para não ser o cavaleiro do apocalipse. Ou para agradar à minha mãe. Ou para forjar confiança no espírito da minha esposa. Ou para ganhar likes. Não sei. Hoje vou dormir abraçado com a incerteza.

[...]. Projetar as diversas possibilidades me afasta da ilusão pueril de que vivemos em um mundo bom, de pessoas boas. Eu, pelo menos, não vivo. Até aqui, o mundo tem se mostrado hostil para mim [...] Poderia argumentar que, então, resta confiar, se não na bondade, na decência. Parece-me, contudo, que o equívoco seria semelhante, porque, no fundo, o equívoco está em confiar. Se estou em uma realidade onde a verdade não se manifesta de maneira clara, o melhor é suspeitar. [...]

Duvido. A dúvida é espaço vazio. O vazio pode até soar triste, mas não é. O vazio tem a virtude de não esgotar. O que está vazio permanece aberto para as possibilidades. No vazio cabem as hipóteses e é melhor lidar com elas do que com as convicções. Na convicção nada de novo nasce. O vazio é a parte do meu quadro de referências que permanece em branco. Não há nada anotado ainda, mas há espaço para novas anotações. Quanto universo ainda tenho para descobrir!

Dúvida é o bolo levado ao forno. O cozinheiro lida com a hipótese de que se todos os ingredientes tiverem sido corretamente acrescentados e o modo de preparação tiver sido bem observado, o bolo crescerá. Uma hipótese que será testada pelo tempo. Pelos minutos que o bolo aquece no forno, tudo o que há é a incerteza.

Dúvida é o pescador que sai para trabalhar. Ele lida com a hipótese de que se estiver no horário correto, com as iscas bem preparadas e se tiver observado com atenção as condições do tempo, conseguirá peixes. Uma hipótese que será testada pelo tempo. Entre o barco vencer a arrebentação e chegar em alto mar, tudo o que há é a incerteza.

Se ambos estiverem assenhorados pela certeza, convencidos de que são melhores do que os demais, é muito provável que não cuidarão bem das condições e fracassarão, e sobrará apenas o lamento dos prisioneiros. Se seus quadros de referências estiverem terminados, nada poderão aprender de novo, nem mesmo com a frustração.

A vida é a incerteza do bolo; é a hesitação do mar.

[...]
Dúvida é uma relação amorosa, como um casamento. Duas pessoas repartem o tempo e a morte porque lidam com a hipótese de que se amam. Oferecem ao outro o que têm de melhor, cuidado, afeto, e cultivam o terreno para terem frutos. Uma hipótese que será testada pelo tempo. E nem mesmo o primeiro enterro desfará a incerteza.

[...]
Há, entretanto, as hipóteses pelas quais vale a pena morrer. Todas elas oferecem a bonita proposta de viver em plena insegurança. Essa é a melhor forma de reconhecê-las. [...] Antes, desconfiam das próprias impressões e suspeitam de si o tempo todo, permanecendo em constante revisão, evitando, a todo custo, o encantamento da certeza.

A dúvida do viver não pode ser paralisante. Isso daria mais espaço ao medo do que ele merece. Uma dose de medo é boa, mas duas podem te embriagar, anestesiar e confundir a sua percepção da realidade. A incerteza não impede o cozinheiro de se arriscar no forno; não impede o pescador de se arriscar no mar; não impede que pessoas se arrisquem em casamentos. Nelas, há uma força ativa, potente o suficiente para enfrentarem o desconhecido, não sem medo, mas com coragem. Essa coragem é obtida não pela ausência do medo, mas em resposta a ele. É um grito da autonomia que não aceita o encurtamento de sua liberdade. É um assimilar do tempo e da morte. E perceber que, dada a brevidade da vida, a única urgência é que não seja em vão.

Aqueles que não se deixam encarcerar, nem pela certeza, nem pelo ego e nem pelo medo, são os que fazem apostas. Não o fazem movidos pela certeza da proposta, mas pela beleza que enxergam nela.

Eu, que sou um medroso, mas não um covarde, tenho a minha aposta. Uma só. Eu aposto que só o amor pode dar sentido à vida, porque é só o amor que torna a vida amável. [...]

Amo, mas sem convicções. Meu amor está mais ocupado com amar até o fim do dia do que em amar eternamente. A eternidade é uma abstração, é lugar nenhum e, portanto, é quase uma covardia jurar amor eterno. Eu prefiro as juras de amor diário, daquelas que se renovam durante o jantar.

[...] O amor pressupõe liberdade porque ninguém pode amar por obrigação, só voluntariamente. E, onde há liberdade, há risco e insegurança, porque a porta está sempre aberta para o outro poder sair quando desejar e só retornar se quiser. Quem ama de portas fechadas não tem um afeto, tem um escravo. E quem ama com segurança inabalável está escravizado pela certeza romântica, tal qual está a princesa na torre de marfim, à espera de seu príncipe redentor, que a amará para todo o sempre, até o fim dos dias.

Amo, não com a certeza do para sempre, mas com a hesitação do mar, com a incerteza do bolo. Sei que pode dar muito errado, então saio para pescar com o zelo do pescador, porque preciso amar para sobreviver. Amo com o cuidado do cozinheiro, porque quero servir o amor e reparti-lo à mesa.

Amo, não para dar certo, mas porque é bonito. Tudo o que amei virou saudade e sentir saudade é a única garantia que tenho de que minha vida valeu a pena, porque, se pudesse, eu viveria todas as minhas saudades de novo. Nem sempre é possível reconhecer a felicidade quando a olhamos de frente, mas sempre sabemos quando e onde fomos felizes, por causa da saudade. Note que a felicidade do peixe não é um acidente, assim como não o é o bolo que cresceu. O pescador e o cozinheiro trabalharam e se dedicaram em criar as condições para a felicidade advir.

Amo, porque aprendi a aceitar a incerteza do amar. Não me sinto inseguro em sua insegurança, tendo em vista que a segurança é sempre uma miragem. Sinto-me vivo e isso me basta. Tenho a impressão de que, amando, todo dia que passa é um dia a mais. Mas não tenho certeza.

[...] Desconfio de todas as minhas hipóteses, que já não são muitas. Ainda que confinado, entretanto, me sinto mais livre. Desde que me deitei em minha cama, estou me libertando de precisar saber como será amanhã, eu não sei. Na medida em que me desfaço das previsões, sinto o peso da bola de ferro se esvair. Eu prefiro o amor e, no amar, sempre há imprevisibilidade. Não sei como será, mas sei como gostaria de ser. Talvez a pandemia mude o mundo. Talvez o melhore. Talvez o piore. Ou, talvez não mude nada. Isso não está no meu controle. O que posso fazer é apostar em mim: apostar que eu não serei o mesmo depois disso. E aposto em mim por amor.

Porque vivo com dúvidas, mergulhado em incertezas, imagino que muitos outros também vivam assim. Portanto, posso ser mais paciente. Posso ser mais compassivo. Posso me esforçar para ouvir mais as inseguranças alheias e posso falar menos sobre as minhas certezas - afinal, não é porque estou preso que preciso trazer o outro para dentro da minha jaula.

[...]
Não me julgo livre. Não abraço esse tipo de ilusão. Sei que estou cercado de grades que permanecem invisíveis, mas que se manifestarão com o tempo. Essa é a incerteza por excelência: desconhecer o número de celas que me restam para escapar.

Se eu estiver equivocado em absolutamente tudo, mas cheio de amor, não terá sido em vão, porque, amando, aposto que encontrarei a chave de cada prisão que sufoca a minha existência. E o que importa não é ter razão, é ser livre. Mas essa é só mais uma hipótese, que se confirmará com o tempo. Até o último dia viverei em dúvida, que cessará não pela descoberta da verdade, mas por meu estado de inconsciência. A morte é a última libertação do saber.

Estou confinado há meses, mas me libertando das certezas. [...] Não estou feliz, mas com uma mão eu preparo a massa do bolo e com a outra, onde se destaca a minha aliança de casamento, seguro as iscas e uma vara de pescar.