quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Ao Dinho

Dinho não deveria andar de bicicleta, Dinho não deveria dirigir, Dinho não deveria beber cerveja, Dinho não deveria fazer tantas cirurgias. Dinho não deveria viver mais que alguns meses: Dinho viveu por mais de 40 anos.

"Não sabendo que era impossível, foi lá e fez." (Mark Twain)

Dinho se libertou... Pode cair... Pode beber... Não tem mais curativos pra fazer.

Às vezes, queremos ver levitações, mares se abrindo, milagrinhos inúteis, como se Deus fosse um curandeiro. E - cegos infieis - não percebemos o milagre que foi Deus permitir o Dinho por tanto tempo entre nós.

Impossível falar do Dinho sem falar de todos que o cercaram, especialmente a Cida. Lembro dela quando leio sobre o sentido da vida. "O propósito da vida é encontrar o maior fardo que você pode suportar - e suportá-lo”, diz Jordan Peterson. “O dever, por mais tedioso ou doloroso que pareça, é o único sentido da vida”, diz Olavo de Carvalho. Talvez esteja tudo resumido em uma das mensagens centrais do Evangelho: viver é servir. E a Cida serviu. Dia e noite. Incansável. Por mais de 40 anos. Guerreira. Santa.

A história do Dinho e da Cida também me fazem lembrar da passagem de Santo Antão no deserto. Após lutar por muito tempo contra o demônio, ele suplica: “Senhor, onde estavas? Por que não viestes antes para me salvar?”. Jesus responde: “Eu estava aqui o tempo todo, Antão. Mas eu queria te ver lutar”. Diante de uma luta cotidiana, inglória, sem possibilidade de regressão da doença, o Dinho e a Cida lutaram. Eles carregaram suas cruzes, ele choraram; mas serão consolados. (Mt 5;4)

Nesse momento difícil, rezo também por todos os acometidos por doenças raras. E também – talvez principalmente – pelos seus pais. Pais que, na gravidez ou no parto, tiveram uma notícia inesperada e tiveram que mudar todos seus projetos, seus sonhos. Que carregam suas cruzes, muitas vezes sozinhos, muitas vezes sem saber o caminho. Que eles encontrem luz e força. Deus quer vê-los lutar.

Rezo também pelo Rodrigo. Um cara especial que, desde criança, soube se colocar com muito amor como o “outro” filho. Uma tarefa muito difícil para todos nós, desejosos do carinho e da atenção de nossas mães. 

O melhor que podemos esperar dessa vida é conseguir trilhar algum caminho de santidade, sendo exemplos para outros. O Dinho, a Cida e o Rodrigo são exemplos pra nós. Que aprendamos com eles.

Termino com um trecho de Shakespeare:

"Seria odiá-lo mantê-lo mais tempo na roda de tortura que é este mundo. (...) E é espantoso que tenha resistido assim; VIVEU MUITO ALÉM DA PRÓPRIA VIDA." (Rei Lear, Shakespeare, na tradução de Millor) 

Um brinde ao Dinho!


sábado, 18 de maio de 2019

Essa quadra



Essa quadra definiu minha vida.

24 anos depois de ter pisado aqui pela primeira vez, volto para assistir a meu sobrinho. Dessa vez, na arquibancada ‘do lado de lá’.

Essa quadra definiu minha vida. Aprendi a ganhar e perder. Aprendi a ser protagonista (de vez em quando) e ser coadjuvante (quase sempre).

Impossível não lembrar daquele 2x1 contra o Corinthians, em que o goleiro Rubinho, irmão do Zé Elias, por pouco não quebrou minha coluna. Joguei demais aquele dia. Daquele 4x0 no Ypiranga, com a rivalidade contra o Cacá, moleque bom de bola, que eu soube depois que morreu cedo. Enfrentei o irmão dele – Neto ou Junior, algo assim – mais tarde, pela Poli contra a Paulista. Ele nem deve saber quem sou eu, mas eu tenho esse mau hábito de ter boa memória. Daquele 5x1 na Portuguesa. Aquela vitória contra a GM, provavelmente o meu melhor jogo da vida. Aquela pancadaria contra o Rolamentos... Cheguei a treinar mais de 20 horas por semana nessa quadra...

Quem olha esse gordo, careca, estressado, nem imagina que fui um capitão equilibrado. Nem imagina que já fui bom nisso. Nem imagina que já fui bom em alguma coisa...

Essa quadra me deu amigos até hoje. (Outros malquistos, é verdade.)

Essa quadra me deu professores. Professor Buzina, Professor Wagnão. Pqp, que saudades. Marcinho, Claudinho,... Edson Negão, melhor massagista (“““fisio”””) desse mundo. Pqp, que saudades.

Nessa quadra, Vô, o roupeiro, jogou a 13 pra mim pela primeira vez, número com o qual joguei pelo resto da vida e até hoje está na minha assinatura.

Essa quadra me permitiu abandonar a Olimpíada Brasileira de Matemática, da qual era ‘obrigado’ a participar pela bolsa escolar.

E ele sempre lá, me assistindo. Seja aqui no CMSP, seja na AABB, seja aqui no CMSP, seja no Portuários de Santos, seja aqui no CMSP, seja no Ceret, seja aqui no CMSP, seja na Federação... Meu pai estava sempre lá, na arquibancada. Nem sempre fui titular, nem sempre joguei bem, nem sempre dei orgulho pra ele – a rigor, poucas vezes – mas ele sempre lá. Isso definiu minha infância e adolescência. Minha família não podia viajar, não podia fazer outra coisa; não podíamos nada além de jogar futsal todo final de semana.

Cheguei tantas vezes com meu pai. Hoje chego com meu filho. Ele não tem ideia que essa quadra definiu minha vida.

Essa quadra me impôs uma decisão: ‘e aí, vai continuar comigo ou vai estudar?’. E eu a abandonei...
(Na verdade, a princípio, só a troquei por outras. Essa quadra me permitiu ter momentos inesquecíveis lá no CEPEUSP, lá na FUPE, lá em Santa Bárbara do Oeste, Pindamonhangaba ... É verdade que vesti mais a camisa azul-e-amarela da Poli do que essa aqui do CMSP, mas a origem está aqui. )

Sim, foi um abandono. Foi aqui que larguei o sonho de todo moleque – ser um jogador de futebol – para ser alguma outra coisa. Não sei ainda o que me tornei, o que sou ou o que serei, mas alguma coisa não-jogador-de-futebol.

Tudo que existiu jamais deixa de existir.
Essa quadra sorri pra mim e eu sorrio de volta.
Essa quadra definiu minha vida.

terça-feira, 26 de março de 2019

O que há de errado com o mundo?







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A resposta de Chesterton pode ser considerada arrogante – como se acha tão importante? – mas dadas sua história e sua mensagem, acredito que se trata da humildade de autorresponsalização e busca da verdade.

Num mundo perdido, a pergunta volta a nos atormentar. Onde foi que erramos? Não tendo a evolução espiritual de um Chesterton, sugiro 3 possibilidades.

1. NOBLESSE (SANS) OBLIGE
Historicamente, à classe dominante era permitida alguma espécie de ‘vida boa’ COM A CONTRAPARTIDA de algum tipo de sacrifício: ‘a nobreza obriga’. (Ir para guerra, por exemplo). Com o materialismo das últimas décadas (e o consequente distanciamento de qualquer tipo de espiritualidade), as obrigações (morais) das elites deixaram de ser necessárias ou, talvez, ‘exigidas’. A ruptura da tensão entre o prazer e o sacrifício rompe também o sentido de vida dessa nobreza, que passa a se sentir culpada. (Um bom teste é perceber a diferença de acepção de mundo entre ricos que nasceram ricos – ‘sem sacrifícios’ – e de ricos que se tornaram ricos ao longo da vida). Acredito que todo esse discurso vazio de “qualquer coisa--social" é mera tentativa de expiar a culpa, aquela consciência de ter uma vida boa sem ter feito nada para isso, uma "muleta para autoestima".



Olavo de Carvalho faz essa análise de forma brilhante no seu texto ‘Fórmula para enlouquecer o mundo’, do qual separo alguns trechos aqui.

2. CONTROLE DOS IMPULSOS
Certa vez, numa homilia, o padre desafiou: precisamos decidir se vamos seguir Cristo – desafiando as tentações do Diabo – ou se vamos seguir Freud – para quem, todo desejo reprimido volta na forma de algum trauma ou coisa do tipo. Achei interessantíssimo, mesmo para não religiosos e não psicanalistas. Não tenho certeza se o culpado é Freud mesmo, mas sem dúvida alguma, o mundo moderno (e suas ‘ressignificações’) mudou o conceito de liberdade para uma mera ‘ausência de restrições’, uma coisa bem tribal, como Roger Scruton detalha em seu ‘As vantagens do pessimismo’. A civilização é JUSTAMENTE controlar os impulsos para o bem do todo. A ideia vigente de fazer o que der na telha é um convite à barbárie, um passo pra trás na história. É evoluído controlar os impulsos; seu oposto é uma tribo ou uma  geração frustrada e mimizenta.
3. DIREITOS E CARIDADE
É óbvio, mas obviedades precisam ser ditas: quando alguém ganha um direito, alguém ganhou um dever (normalmente a ‘sociedade’). Um mundo com excesso de direitos é um mundo com excesso de deveres. Mas o problema aqui é que, como Richard Weaver mostra em seu ‘Ideias tem consequências’, a noção de direitos invadiu a noção de caridade. Relações saudáveis através da caridade passam a ser negativas com a obrigatoriedade do dever/direito.




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O que talvez essas características tenham em comum é o FINGIMENTO, quase que uma busca pelo auto-engano. Dostoevsky já nos ensinou isso em Irmãos Karamazov:

“Above all, don't lie to yourself. The man who lies to himself and listens to his own lie comes to a point that he cannot distinguish the truth within him, or around him, and so loses all respect for himself and for others. And having no respect, he ceases to love.”


Quero fechar, voltando à resposta de GK Chesterton: cada um precisa lutar consigo para não virar um filho da puta. O resto é mentira e ilusão. (Lucas Mafaldo)
Roger Scruton também concorda com isso:


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Fé e Razão

Uma dificuldade central nas discussões do mundo contemporâneo é a simples definição de onde o jogo é jogado. Explicando melhor: as palavras têm sido deturpadas e gasta-se muita energia com a mera tentativa de traduzir o que os oponentes querem dizer uns aos outros. Obviamente, isso não é acaso. Muitos estudiosos já falaram sobre o papel do ‘controle da linguagem’ para o exercício do poder.

Um exemplo corrente é o conceito de ‘razão’. Por tantos e tantos séculos, razão – ratio, proporção, fração – foi entendido como parte – proporção, fração – do conhecimento, ou um dos instrumentos para se chegar a algum conhecimento. Em algum momento da História – acredito que no Iluminismo –, razão passou a ser praticamente sinônimo, totalidade do conhecimento, ou seja, tudo aquilo que os Antigos encaravam como conhecimento além da razão (o complementar daquela proporção, fração) passou a ser entendido como não-conhecimento para os iluministas. Por extensão (e controle de linguagem), razão foi virando cientificismo e, logo, cientificismo sensível, isto é, apenas aquele que pode ser visto, tocado, sentido. Essa ‘nova definição’ chega a ser engraçada porque é relativamente simples entender que o nosso saber é necessariamente limitado e o nosso não-saber é necessariamente ilimitado, por mais que expandamos aquele. Sem perceber (ou não), essa ‘razão’ joga fora toda metafísica (e o pensamento de tanta gente brilhante). O transcendente deixa de existir e o único jogador em campo passa a ser o imanente. Não espanta que tenhamos chegado ao materialismo moderno.

Olavo de Carvalho em 'Filosofia e Seu Inverso' argumenta que a filosofia é justamente quem alimenta a ciência. Um exemplo que cita é a física quântica. Quando a ciência entendeu, por exemplo, a particularidade detalhada dos menores movimentos de elétrons (e outros subatômicos que nem sei o nome), a exatidão perfeita e achou que tinha chegado ao seu fim, a filosofia questiona: Quid? Por que isso? PARA QUE é assim? E todo um novo leque de perguntas se abre. (E acho que por isso temos tantos filósofos com pezinho em Exatas).

Nesse percurso de crescimento (ou deturpação) do conceito de razão, natural que a fé – parte daquele conhecimento além-razão – tenha perdido espaço. A oposição entre fé e razão, que nunca tinha sido um grande dilema, passou a ser o principal ataque dos não-religiosos aos religiosos. (O papa João Paulo II chegou a escrever a Encíclica Fides et Ratio).
O que pra mim é claro é que, se há um Deus, trata-se - por definição - de algo superior aos seres humanos. Sendo superior, - por definição - tem uma 'lógica' que o ser humano pode simplesmente não compreender ou não estar preparado para compreender, tendo apenas lampejos coerentes e verossímeis (as 'revelações'). Ou seja, o homem tem fé ainda que a razão não a alcance. Como um feto que, embora com algum nível de consciência, não tem ideia de como será o mundo após o nascimento.
Repare que não estou dizendo que a fé é exterior à razão, mas sim, que se constrói a partir da razão e vai além dela. Não como algo superior, como se o religioso fosse melhor ou mais inteligente que o ateu; o religioso foi agraciado pelo dom da fé para conseguir ir além-razão. (Tampouco o racionalismo ateu é 'mais inteligente', como gostam sempre de colocar).

Voltando à questão de fundo, a fé tem um aspecto cosmológico e outro psicológico.
Do ponto de vista cosmológico, os ateus/agnósticos e 'cientistas' divergem sobre o início e fim do mundo, mas concordam em questionar o entendimento religioso que Deus teria o criado. Argumentam que, por recorrência, a justificativa causal implicaria que algo ou alguém também teria que ter criado Deus, e assim sucessivamente. Ou seja, eles acham mais viável que tudo tenha se criado do nada do que que tudo tenha sido criado por Alguém, como diz Santo Tomás de Aquino aqui:






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A ironia é que muitos desses ateus/agnósticos se referem eventualmente a uma Força Maior, algo como: 'Os estragos causados pelas chuvas/ciclones/tsunamis são um recado da Natureza...'
Como diz GK Chesterton: "É típico deles usarem às vezes, muito timidamente, a palavra Propósito; mas coram a cada menção da palavra Pessoa."

Normalmente, essa discussão de ciência versus fé acaba caindo na questão (cosmológica) do criacionismo versus evolucionismo. Eu até acredito que tenha havido uma Revelação para um casal de seres humanos – Adão e Eva – depois que todos os animais já estavam criados – Adão os nomeia – ou seja, completamente verossímil com a evolução a partir de um macaco. Mas o ponto principal nem é esse. Isso não precisaria ter acontecido exatamente desse modo para que os fundamentos da fé sejam válidos. Caminhando para o aspecto psicológico, todos os dilemas do ser humano estão presentes no diálogo do Jardim do Eden: orgulho, inveja, responsabilização, expiação, culpa, poder... Um psicólogo tem material farto para estudar a mente humana apenas com Adão, Eva e a cobra, mesmo que não seja religioso. Um exemplo análogo não religioso: também não sei se sereias chegaram a existir, mas tampouco é necessário para que a história de Homero (se amarrando aos mastros do barco para não cair em tentação com o canto) seja estruturante para entender a mente humana, desde o controle dos impulsos de fidelidade, até – mais recentemente – qualquer área de compliance nas empresas.

Os ‘racionalistas’ do mundo moderno se encantaram com a descoberta de Dan Ariely, excelente economista comportamental de Duke, exposta em seu livro 'A Mais Pura Verdade sobre Desonestidade', de que evocar alguns valores morais no topo de provas e fazer com que o aluno fale sobre algumas ‘colas’ passadas cria uma espécie de reset na culpa do sujeito e o faz colar menos. Os cristãos sabem disso há algum tempo e chamam de confissão.
Os ‘racionalistas’ do mundo moderno se encantaram recentemente com a descoberta da yoga (em si, também muito antiga), que faz baixar as ‘ondas cerebrais’ e provoca um silêncio de autoconhecimento. Os cristãos sabem disso há algum tempo e chamam de oração (obviamente com outro tipo de silêncio e contato).
Os ‘racionalistas’ do mundo moderno dão voltas e voltas na ‘melhor pedagogia’ para crianças, mas acabam caindo na efetividade de rotinas, rituais e parábolas. Os cristãos sabem disso há algum tempo...
É um pouco triste que as pessoas passem a ‘reconhecer’ essas coisas apenas quando a ciência mostra, quando a ‘razão’ passa a incorporá-las, sendo que elas estavam lá o tempo todo, conhecidas antes de ciência, razão ou seja lá como queiram chamar.

Como coloca Desidério Murcho nesse brilhante texto:
"Os seres humanos não são donos da verdade; são donos apenas de [alguns] métodos para tentar descobri-la, e é bom que nos esforcemos para encontrar os melhores. Só a realidade é dona da verdade  (...) mesmo que ninguém saiba ou sequer possa saber que o são."

A Verdade não deixa de ser Verdade porque a gente não consegue explicá-la com a nossa razão.

sexta-feira, 1 de março de 2019

Verdade


Esse texto do caderno Estado da Arte do Estadão me marcou profundamente. É belíssimo.
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Imagine-se o que seria uma pessoa considerar-se informada, mas desconhecer a diferença entre o peso e a massa, ou entre a velocidade e a aceleração, ou não fazer ideia da existência da segunda guerra mundial ou do Gulag. Contudo, com respeito a alguns dos mais fundamentais e estruturantes conceitos filosóficos, ocorre algo de semelhante ao que seria esse desconhecimento: uma confusão sistemática, que esconde ilusões cognitivas persistentes que urge elucidar. Não parece muito controverso afirmar que este é um dos papéis públicos da filosofia: esclarecer com rigor os contornos elementares de conceitos que são usados por qualquer pessoa, tanto na sua vida profissional como na pública e pessoal. A verdade é um desses conceitos, e talvez um dos mais maltratados e, simultaneamente, um dos mais fundamentais. O que há de fundamental nele é a imensa dificuldade em ter qualquer réstia de vida mental sem o usar implícita ou explicitamente: quando nos batemos pela igualdade das mulheres é porque pensamos que é falso que elas devem ser discriminadas, e não há qualquer maneira adequada de ter uma concepção promissora de falsidade sem pressupor o conceito de verdade.

A principal dificuldade com o conceito de verdade é a confusão persistente entre uma frase ser ou não verdadeira e o conhecimento ou a crença de que é verdadeira. Porque evidentemente podemos estar enganados sempre que pensamos que algo é verdadeiro, cai-se na confusão de pensar que é a própria verdade que muda, ou se altera, ou que depende de nós. Isto é curioso porque as coisas são exatamente ao contrário: é precisamente porque somos obviamente falíveis e tantas vezes nos enganamos que não há maneira alguma adequada de pensar que a verdade depende de nós, da nossa vontade, das nossas convicções, das nossas provas, ou seja do que for desse jaez. Se dependesse, nunca poderíamos estar enganados, pois bastaria pensar que algo é verdadeiro para o ser. Uma vez que é evidente que nos enganamos, e muito mais do que seria desejável, conclui-se validamente que a verdade não depende de nós. O que depende de nós, mas isso é banal e desinteressante, é o que pensamos que é verdadeiro, e o que pensa uma pessoa que é verdadeiro pensa outra que é falso, mas nenhuma delas tem o poder de tornar verdadeiro ou falso isso que pensam; só a realidade tem esse poder. Mas que quer isto dizer?

Considere-se uma frase simples, como “Existem extraterrestres inteligentes”. É de prever que não haja neste caso muitas pessoas com fortes convicções dogmáticas, seja para dizer que sim seja para dizer que não. As coisas já mudam de figura com respeito a muitas outras frases. Porém, quer essas fortes convicções existam quer não, e sejam elas mais ou menos dogmáticas, há uma só coisa que conta para tornar as frases falsas ou verdadeiras: a realidade. No caso da frase anterior, só a existência de extraterrestres inteligentes a torna verdadeira; e só a inexistência deles a torna falsa. Isto é o aspecto elementar da verdade que qualquer concepção filosófica elaborada terá de acomodar para ser promissora, e que infelizmente está longe de ser adequadamente compreendida pelo grande público. Como se vê, a verdade não é uma coisa mística, apesar de ser compreensível que as religiões lhe dêem muita importância devido ao papel crucial que desempenha nas nossas vidas — afinal, distinguir a verdade da ilusão é uma das nossas mais fundamentais tarefas, se queremos ter uma vida melhor e se almejamos a uma compreensão mais promissora da realidade. Longe de ser algo místico ou misterioso, a verdade é bastante banal e terra-a-terra. O que não é banal é encontrar processos fidedignos de prova e justificação, que nos ajudem a encontrar a verdade e a não cair no erro. Mas não valeria a pena o esforço para encontrar os melhores processos de prova e justificação caso a verdade fosse apenas o que cada qual pensa que é.

Há assim uma marcada diferença entre o que se consegue provar ou justificar adequadamente e a própria verdade. Precisamente porque somos falíveis, quase não existem processos de prova que sejam imunes ao erro. Alguns são muitíssimo melhores do que outros, porque oferecem garantias mais fortes, mas é preciso ter sempre cuidado porque podemos estar enganados. É algo como esta consciência da falibilidade humana que provoca a confusão de pensar que é a própria verdade que é instável, digamos, no sentido de ser relativa ao que pensamos. Porém, se a verdade fosse relativa neste sentido, não haveria instabilidade alguma porque seria sempre verdadeiro seja o que for que alguém pensa que é verdadeiro.

Algumas maneiras comuns de falar são muitíssimo enganadoras precisamente porque confundem de maneira sistemática o conceito de pensar ou acreditar ou ter a convicção de que é verdadeiro com o conceito de ser verdadeiro. São dois conceitos muitíssimo diferentes, mas ficam confundidos quando se diz que antes de Galileu era verdadeiro que a Terra estava imóvel, e que depois se tornou falso. O que se quer dizer é que antes de Galileu as pessoas pensavam que isso era verdadeiro — mas pensar que é verdadeiro não o torna realmente verdadeiro porque as pessoas não são oniscientes. Diz-se também por vezes que é verdadeiro para Galileu que a Terra se move, e sugere-se que isso não é verdadeiro para outras pessoas. Porém, “verdadeiro para” é apenas uma maneira enganadora de dizer que essa pessoa considera que isso é verdadeiro — mas, uma vez mais, porque ninguém é onisciente, o que ela toma como verdadeiro talvez seja falso, e esta banalidade é incompatível com a ideia de que a verdade depende das convicções das pessoas.

Nenhuma destas reflexões põe em questão aspectos mais profundos do conceito de verdade, que talvez seja relativo numa acepção qualquer sofisticada e filosoficamente interessante. Mas seja qual for essa concepção, terá de acomodar estas ideias elementares — ou de ter razões muitíssimo convincentes para as pôr em dúvida, e não é de prever que existam essas razões, depois de se esclarecer o básico. Por vezes, tempestades tonitruantes de filosofia não passam de confusões num copo de água, e isso não é surpreendente porque acontece o mesmo em muitas outras áreas de investigação.

Menos comum, talvez porque mais obviamente indefensável, é a ideia de que não há verdades. Quando se junta a consciência saudável de que somos falíveis com a confusão conceptual acerca da verdade, fica-se a um passo de concluir que não há verdades porque afinal podemos sempre estar enganados. Porém, como se conseguiria realmente saber tal coisa? Não é certamente o gênero de afirmação que se possa saber como quem sabe que está chovendo olhando pela janela; não se consegue olhar e ver que não há verdades. Tal como não se consegue olhar e ver que os dinossauros se extinguiram há sessenta milhões de anos, mas antes se conclui essa hipótese científica raciocinando, só desta mesma maneira se conseguirá saber que não há verdades: raciocinando. Ora, a dificuldade mortal é que os raciocínios só permitem saber seja o que for quando reúnem pelo menos duas condições: serem válidos e todas as suas premissas serem verdadeiras. A validade é um conceito da lógica, e garante que caso as premissas do raciocínio sejam verdadeiras, não há maneira alguma de a conclusão ser falsa. Mas caso as premissas não sejam verdadeiras, a mera validade é irrelevante. Daí que se tenha encontrado em filosofia uma designação semitécnica para os raciocínios que são simultaneamente válidos e cujas premissas são todas verdadeiras: diz-se que são sólidos. Ora, como é bom de ver, é impossível que um raciocínio seja simultaneamente sólido e tenha como conclusão que não há verdades. Isto porque para ser sólido é preciso que todas as suas premissas sejam verdadeiras; mas caso não existam verdades, como assevera a sua conclusão, as suas premissas não são verdadeiras e por isso o raciocínio não é sólido. Dado que não há raciocínios sólidos que nos permitam saber que não há verdades, e dado que não é o tipo de coisa que se possa saber olhando pela janela como quem vê que está chovendo, como sabe alguém que não há verdades? Talvez tenha um contacto místico com os deuses, que lho sussurraram ao ouvido, mas o comum dos mortais fica certamente perplexo com essa extravagante hipótese e não tem razões minimamente promissoras para levá-la a sério.

Estas confusões com o conceito de verdade incluem por vezes uma suposta dificuldade com o carácter dinâmico da realidade. Como escreveu Camões,

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Platão e outros filósofos da antiguidade pareciam pensar, pelo menos em alguns momentos, que a mutabilidade ou dinamismo da realidade seria um desafio à existência de verdades, ou talvez até fosse incompatível com elas. Deste ponto de vista, parte-se de verdades intemporais como as da geometria, toma-se esse tipo de verdades como paradigmáticas, e depois pensa-se que o fluxo contínuo de acontecimentos do mundo sublunar é de algum modo incompatível com a existência de verdades. Quando se afirma que um triângulo é o resultado da intersecção de três linhas rectas, o verbo ser é aqui intemporal — não se quer dizer que isso é agora assim, mas não o era, e talvez não venha a sê-lo, mas antes que o é sem considerar as humilhações da passagem do tempo. É-o, poder-se-ia dizer, com a mesma pureza celestial que assiste aos deuses. Em contraste, quando se diz que uma árvore é verde, o verbo ser é aqui acometido das dúvidas temporais da existência, e certamente não se quer dizer que sempre o foi e que sempre o será. Pelo contrário, sabemos que a árvore deixará de ser verde a seu tempo. Daqui salta-se então para a conclusão de que a verdade, mesmo que exista em áreas divinas como a geometria, foge-nos decididamente por entre os fluxos e dinamismos da realidade física, onde não é senão uma ilusão sublunar dos ingênuos. Tudo muda, nada fica, e só os tolos pensam que há verdades imutáveis.

Esta família genérica de posições acerca da verdade encerra uma curiosidade histórica e outra conceptual. A primeira é continuar a reproduzir inquietações filosóficas que talvez fossem razoáveis no tempo de Platão, mas que estão longe de o ser depois de termos tantas ciências tão bem-sucedidas que lidam, precisamente, com o dinamismo do mundo físico. Física, química, biologia, astronomia, astrofísica, dinâmica de fluidos — estas são apenas algumas das áreas científicas que certamente nos proporcionam um conhecimento aprofundado da realidade, sem que o seu carácter dinâmico constitua um obstáculo intransponível. É por isso historicamente curioso como conseguirá uma pessoa no século XXI manter a preocupação platônica do séc. V a.C com a possibilidade da verdade acerca de realidades dinâmicas, se não ignorar completamente os feitos cognitivos da humanidade dos últimos quatrocentos anos. Mais irônico ainda é esta pessoa obviamente evidenciar pelo menos um conhecimento histórico — pelo menos da história da filosofia — quando a história é precisamente uma das áreas da investigação humana que lida com aspectos inequivocamente dinâmicos da realidade.

O aspecto conceptual curioso da inquietação platônica com a mutabilidade é que uma breve reflexão é suficiente para ver a confusão subjacente a esta maneira de pensar. Considere-se a frase “Está chovendo”; que quer ela dizer exatamente? Apesar de não incluir explicitamente qualquer deítico (termos como “aqui”, “hoje”, etc.), subentende dois: que é no lugar onde a frase é proferida que está chovendo, e não em todo o universo, e que é naquele momento, e não antes nem depois. Caso seja completamente explicitada, e imaginando que é proferida em Paris no dia 12 de maio de 1755, não quer certamente dizer que está chovendo em Ouro Preto, MG, no dia 12 de maio de 2018. De modo que por mais mutável que seja a realidade isso não é de modo algum um obstáculo à verdade: se for verdadeiro que naquele dia em Paris estava chovendo, isso é verdadeiro ainda hoje, e mesmo que não seja verdadeiro que está chovendo hoje em Paris ou noutro lugar. Uma vez mais, temos aqui uma mistura com as convicções humanas, ou com o que os seres humanos podem estabelecer, descobrir ou provar. É claro que se não houver registos históricos apropriados, não haverá como saber se choveu em Paris naquele dia do século XVIII; e não há certamente maneira de saber se a frase “Chove em Paris no dia 12 de maio de 2020” será verdadeira ou falsa. Contudo, para pensar que o fluxo universal da realidade física é um obstáculo à existência de verdades é preciso confundir a própria verdade com estes aspectos banais acerca da falibilidade humana e da dificuldade ou impossibilidade de saber algumas coisas.

Um bom antídoto para confusões filosóficas deste teor é não começar a discutir conceitos difíceis sem antes usar alguns pares de exemplos humildes que ilustrem apropriadamente o que se pretende. Mal se usa exemplos como “Existem extraterrestres inteligentes”, a veleidade de pensar que a verdade desta frase depende do que os seres humanos são capazes de saber, estabelecer, provar ou verificar torna-se manifesta, porque fica óbvio que se confundiu o que se consegue ou não saber que é verdadeiro com a própria verdade. Os seres humanos não são donos da verdade; são donos apenas dos métodos para tentar descobri-la, e é bom que nos esforcemos para encontrar os melhores. Só a realidade é dona da verdade — no sentido de ser ela, e só ela, a responsável pela verdade das frases que são verdadeiras, mesmo que ninguém saiba ou sequer possa saber que o são.


Desidério Murcho é filósofo, escritor e professor de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto.  É autor, entre outros, de Filosofia Diretamente e O Lugar da Lógica na Filosofia. Edita o site Crítica na Rede