terça-feira, 26 de março de 2019

Fé e Razão

Uma dificuldade central nas discussões do mundo contemporâneo é a simples definição de onde o jogo é jogado. Explicando melhor: as palavras têm sido deturpadas e gasta-se muita energia com a mera tentativa de traduzir o que os oponentes querem dizer uns aos outros. Obviamente, isso não é acaso. Muitos estudiosos já falaram sobre o papel do ‘controle da linguagem’ para o exercício do poder.

Um exemplo corrente é o conceito de ‘razão’. Por tantos e tantos séculos, razão – ratio, proporção, fração – foi entendido como parte – proporção, fração – do conhecimento, ou um dos instrumentos para se chegar a algum conhecimento. Em algum momento da História – acredito que no Iluminismo –, razão passou a ser praticamente sinônimo, totalidade do conhecimento, ou seja, tudo aquilo que os Antigos encaravam como conhecimento além da razão (o complementar daquela proporção, fração) passou a ser entendido como não-conhecimento para os iluministas. Por extensão (e controle de linguagem), razão foi virando cientificismo e, logo, cientificismo sensível, isto é, apenas aquele que pode ser visto, tocado, sentido. Essa ‘nova definição’ chega a ser engraçada porque é relativamente simples entender que o nosso saber é necessariamente limitado e o nosso não-saber é necessariamente ilimitado, por mais que expandamos aquele. Sem perceber (ou não), essa ‘razão’ joga fora toda metafísica (e o pensamento de tanta gente brilhante). O transcendente deixa de existir e o único jogador em campo passa a ser o imanente. Não espanta que tenhamos chegado ao materialismo moderno.

Olavo de Carvalho em 'Filosofia e Seu Inverso' argumenta que a filosofia é justamente quem alimenta a ciência. Um exemplo que cita é a física quântica. Quando a ciência entendeu, por exemplo, a particularidade detalhada dos menores movimentos de elétrons (e outros subatômicos que nem sei o nome), a exatidão perfeita e achou que tinha chegado ao seu fim, a filosofia questiona: Quid? Por que isso? PARA QUE é assim? E todo um novo leque de perguntas se abre. (E acho que por isso temos tantos filósofos com pezinho em Exatas).

Nesse percurso de crescimento (ou deturpação) do conceito de razão, natural que a fé – parte daquele conhecimento além-razão – tenha perdido espaço. A oposição entre fé e razão, que nunca tinha sido um grande dilema, passou a ser o principal ataque dos não-religiosos aos religiosos. (O papa João Paulo II chegou a escrever a Encíclica Fides et Ratio).
O que pra mim é claro é que, se há um Deus, trata-se - por definição - de algo superior aos seres humanos. Sendo superior, - por definição - tem uma 'lógica' que o ser humano pode simplesmente não compreender ou não estar preparado para compreender, tendo apenas lampejos coerentes e verossímeis (as 'revelações'). Ou seja, o homem tem fé ainda que a razão não a alcance. Como um feto que, embora com algum nível de consciência, não tem ideia de como será o mundo após o nascimento.
Repare que não estou dizendo que a fé é exterior à razão, mas sim, que se constrói a partir da razão e vai além dela. Não como algo superior, como se o religioso fosse melhor ou mais inteligente que o ateu; o religioso foi agraciado pelo dom da fé para conseguir ir além-razão. (Tampouco o racionalismo ateu é 'mais inteligente', como gostam sempre de colocar).

Voltando à questão de fundo, a fé tem um aspecto cosmológico e outro psicológico.
Do ponto de vista cosmológico, os ateus/agnósticos e 'cientistas' divergem sobre o início e fim do mundo, mas concordam em questionar o entendimento religioso que Deus teria o criado. Argumentam que, por recorrência, a justificativa causal implicaria que algo ou alguém também teria que ter criado Deus, e assim sucessivamente. Ou seja, eles acham mais viável que tudo tenha se criado do nada do que que tudo tenha sido criado por Alguém, como diz Santo Tomás de Aquino aqui:






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A ironia é que muitos desses ateus/agnósticos se referem eventualmente a uma Força Maior, algo como: 'Os estragos causados pelas chuvas/ciclones/tsunamis são um recado da Natureza...'
Como diz GK Chesterton: "É típico deles usarem às vezes, muito timidamente, a palavra Propósito; mas coram a cada menção da palavra Pessoa."

Normalmente, essa discussão de ciência versus fé acaba caindo na questão (cosmológica) do criacionismo versus evolucionismo. Eu até acredito que tenha havido uma Revelação para um casal de seres humanos – Adão e Eva – depois que todos os animais já estavam criados – Adão os nomeia – ou seja, completamente verossímil com a evolução a partir de um macaco. Mas o ponto principal nem é esse. Isso não precisaria ter acontecido exatamente desse modo para que os fundamentos da fé sejam válidos. Caminhando para o aspecto psicológico, todos os dilemas do ser humano estão presentes no diálogo do Jardim do Eden: orgulho, inveja, responsabilização, expiação, culpa, poder... Um psicólogo tem material farto para estudar a mente humana apenas com Adão, Eva e a cobra, mesmo que não seja religioso. Um exemplo análogo não religioso: também não sei se sereias chegaram a existir, mas tampouco é necessário para que a história de Homero (se amarrando aos mastros do barco para não cair em tentação com o canto) seja estruturante para entender a mente humana, desde o controle dos impulsos de fidelidade, até – mais recentemente – qualquer área de compliance nas empresas.

Os ‘racionalistas’ do mundo moderno se encantaram com a descoberta de Dan Ariely, excelente economista comportamental de Duke, exposta em seu livro 'A Mais Pura Verdade sobre Desonestidade', de que evocar alguns valores morais no topo de provas e fazer com que o aluno fale sobre algumas ‘colas’ passadas cria uma espécie de reset na culpa do sujeito e o faz colar menos. Os cristãos sabem disso há algum tempo e chamam de confissão.
Os ‘racionalistas’ do mundo moderno se encantaram recentemente com a descoberta da yoga (em si, também muito antiga), que faz baixar as ‘ondas cerebrais’ e provoca um silêncio de autoconhecimento. Os cristãos sabem disso há algum tempo e chamam de oração (obviamente com outro tipo de silêncio e contato).
Os ‘racionalistas’ do mundo moderno dão voltas e voltas na ‘melhor pedagogia’ para crianças, mas acabam caindo na efetividade de rotinas, rituais e parábolas. Os cristãos sabem disso há algum tempo...
É um pouco triste que as pessoas passem a ‘reconhecer’ essas coisas apenas quando a ciência mostra, quando a ‘razão’ passa a incorporá-las, sendo que elas estavam lá o tempo todo, conhecidas antes de ciência, razão ou seja lá como queiram chamar.

Como coloca Desidério Murcho nesse brilhante texto:
"Os seres humanos não são donos da verdade; são donos apenas de [alguns] métodos para tentar descobri-la, e é bom que nos esforcemos para encontrar os melhores. Só a realidade é dona da verdade  (...) mesmo que ninguém saiba ou sequer possa saber que o são."

A Verdade não deixa de ser Verdade porque a gente não consegue explicá-la com a nossa razão.

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