sexta-feira, 1 de março de 2019

Verdade


Esse texto do caderno Estado da Arte do Estadão me marcou profundamente. É belíssimo.
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Imagine-se o que seria uma pessoa considerar-se informada, mas desconhecer a diferença entre o peso e a massa, ou entre a velocidade e a aceleração, ou não fazer ideia da existência da segunda guerra mundial ou do Gulag. Contudo, com respeito a alguns dos mais fundamentais e estruturantes conceitos filosóficos, ocorre algo de semelhante ao que seria esse desconhecimento: uma confusão sistemática, que esconde ilusões cognitivas persistentes que urge elucidar. Não parece muito controverso afirmar que este é um dos papéis públicos da filosofia: esclarecer com rigor os contornos elementares de conceitos que são usados por qualquer pessoa, tanto na sua vida profissional como na pública e pessoal. A verdade é um desses conceitos, e talvez um dos mais maltratados e, simultaneamente, um dos mais fundamentais. O que há de fundamental nele é a imensa dificuldade em ter qualquer réstia de vida mental sem o usar implícita ou explicitamente: quando nos batemos pela igualdade das mulheres é porque pensamos que é falso que elas devem ser discriminadas, e não há qualquer maneira adequada de ter uma concepção promissora de falsidade sem pressupor o conceito de verdade.

A principal dificuldade com o conceito de verdade é a confusão persistente entre uma frase ser ou não verdadeira e o conhecimento ou a crença de que é verdadeira. Porque evidentemente podemos estar enganados sempre que pensamos que algo é verdadeiro, cai-se na confusão de pensar que é a própria verdade que muda, ou se altera, ou que depende de nós. Isto é curioso porque as coisas são exatamente ao contrário: é precisamente porque somos obviamente falíveis e tantas vezes nos enganamos que não há maneira alguma adequada de pensar que a verdade depende de nós, da nossa vontade, das nossas convicções, das nossas provas, ou seja do que for desse jaez. Se dependesse, nunca poderíamos estar enganados, pois bastaria pensar que algo é verdadeiro para o ser. Uma vez que é evidente que nos enganamos, e muito mais do que seria desejável, conclui-se validamente que a verdade não depende de nós. O que depende de nós, mas isso é banal e desinteressante, é o que pensamos que é verdadeiro, e o que pensa uma pessoa que é verdadeiro pensa outra que é falso, mas nenhuma delas tem o poder de tornar verdadeiro ou falso isso que pensam; só a realidade tem esse poder. Mas que quer isto dizer?

Considere-se uma frase simples, como “Existem extraterrestres inteligentes”. É de prever que não haja neste caso muitas pessoas com fortes convicções dogmáticas, seja para dizer que sim seja para dizer que não. As coisas já mudam de figura com respeito a muitas outras frases. Porém, quer essas fortes convicções existam quer não, e sejam elas mais ou menos dogmáticas, há uma só coisa que conta para tornar as frases falsas ou verdadeiras: a realidade. No caso da frase anterior, só a existência de extraterrestres inteligentes a torna verdadeira; e só a inexistência deles a torna falsa. Isto é o aspecto elementar da verdade que qualquer concepção filosófica elaborada terá de acomodar para ser promissora, e que infelizmente está longe de ser adequadamente compreendida pelo grande público. Como se vê, a verdade não é uma coisa mística, apesar de ser compreensível que as religiões lhe dêem muita importância devido ao papel crucial que desempenha nas nossas vidas — afinal, distinguir a verdade da ilusão é uma das nossas mais fundamentais tarefas, se queremos ter uma vida melhor e se almejamos a uma compreensão mais promissora da realidade. Longe de ser algo místico ou misterioso, a verdade é bastante banal e terra-a-terra. O que não é banal é encontrar processos fidedignos de prova e justificação, que nos ajudem a encontrar a verdade e a não cair no erro. Mas não valeria a pena o esforço para encontrar os melhores processos de prova e justificação caso a verdade fosse apenas o que cada qual pensa que é.

Há assim uma marcada diferença entre o que se consegue provar ou justificar adequadamente e a própria verdade. Precisamente porque somos falíveis, quase não existem processos de prova que sejam imunes ao erro. Alguns são muitíssimo melhores do que outros, porque oferecem garantias mais fortes, mas é preciso ter sempre cuidado porque podemos estar enganados. É algo como esta consciência da falibilidade humana que provoca a confusão de pensar que é a própria verdade que é instável, digamos, no sentido de ser relativa ao que pensamos. Porém, se a verdade fosse relativa neste sentido, não haveria instabilidade alguma porque seria sempre verdadeiro seja o que for que alguém pensa que é verdadeiro.

Algumas maneiras comuns de falar são muitíssimo enganadoras precisamente porque confundem de maneira sistemática o conceito de pensar ou acreditar ou ter a convicção de que é verdadeiro com o conceito de ser verdadeiro. São dois conceitos muitíssimo diferentes, mas ficam confundidos quando se diz que antes de Galileu era verdadeiro que a Terra estava imóvel, e que depois se tornou falso. O que se quer dizer é que antes de Galileu as pessoas pensavam que isso era verdadeiro — mas pensar que é verdadeiro não o torna realmente verdadeiro porque as pessoas não são oniscientes. Diz-se também por vezes que é verdadeiro para Galileu que a Terra se move, e sugere-se que isso não é verdadeiro para outras pessoas. Porém, “verdadeiro para” é apenas uma maneira enganadora de dizer que essa pessoa considera que isso é verdadeiro — mas, uma vez mais, porque ninguém é onisciente, o que ela toma como verdadeiro talvez seja falso, e esta banalidade é incompatível com a ideia de que a verdade depende das convicções das pessoas.

Nenhuma destas reflexões põe em questão aspectos mais profundos do conceito de verdade, que talvez seja relativo numa acepção qualquer sofisticada e filosoficamente interessante. Mas seja qual for essa concepção, terá de acomodar estas ideias elementares — ou de ter razões muitíssimo convincentes para as pôr em dúvida, e não é de prever que existam essas razões, depois de se esclarecer o básico. Por vezes, tempestades tonitruantes de filosofia não passam de confusões num copo de água, e isso não é surpreendente porque acontece o mesmo em muitas outras áreas de investigação.

Menos comum, talvez porque mais obviamente indefensável, é a ideia de que não há verdades. Quando se junta a consciência saudável de que somos falíveis com a confusão conceptual acerca da verdade, fica-se a um passo de concluir que não há verdades porque afinal podemos sempre estar enganados. Porém, como se conseguiria realmente saber tal coisa? Não é certamente o gênero de afirmação que se possa saber como quem sabe que está chovendo olhando pela janela; não se consegue olhar e ver que não há verdades. Tal como não se consegue olhar e ver que os dinossauros se extinguiram há sessenta milhões de anos, mas antes se conclui essa hipótese científica raciocinando, só desta mesma maneira se conseguirá saber que não há verdades: raciocinando. Ora, a dificuldade mortal é que os raciocínios só permitem saber seja o que for quando reúnem pelo menos duas condições: serem válidos e todas as suas premissas serem verdadeiras. A validade é um conceito da lógica, e garante que caso as premissas do raciocínio sejam verdadeiras, não há maneira alguma de a conclusão ser falsa. Mas caso as premissas não sejam verdadeiras, a mera validade é irrelevante. Daí que se tenha encontrado em filosofia uma designação semitécnica para os raciocínios que são simultaneamente válidos e cujas premissas são todas verdadeiras: diz-se que são sólidos. Ora, como é bom de ver, é impossível que um raciocínio seja simultaneamente sólido e tenha como conclusão que não há verdades. Isto porque para ser sólido é preciso que todas as suas premissas sejam verdadeiras; mas caso não existam verdades, como assevera a sua conclusão, as suas premissas não são verdadeiras e por isso o raciocínio não é sólido. Dado que não há raciocínios sólidos que nos permitam saber que não há verdades, e dado que não é o tipo de coisa que se possa saber olhando pela janela como quem vê que está chovendo, como sabe alguém que não há verdades? Talvez tenha um contacto místico com os deuses, que lho sussurraram ao ouvido, mas o comum dos mortais fica certamente perplexo com essa extravagante hipótese e não tem razões minimamente promissoras para levá-la a sério.

Estas confusões com o conceito de verdade incluem por vezes uma suposta dificuldade com o carácter dinâmico da realidade. Como escreveu Camões,

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Platão e outros filósofos da antiguidade pareciam pensar, pelo menos em alguns momentos, que a mutabilidade ou dinamismo da realidade seria um desafio à existência de verdades, ou talvez até fosse incompatível com elas. Deste ponto de vista, parte-se de verdades intemporais como as da geometria, toma-se esse tipo de verdades como paradigmáticas, e depois pensa-se que o fluxo contínuo de acontecimentos do mundo sublunar é de algum modo incompatível com a existência de verdades. Quando se afirma que um triângulo é o resultado da intersecção de três linhas rectas, o verbo ser é aqui intemporal — não se quer dizer que isso é agora assim, mas não o era, e talvez não venha a sê-lo, mas antes que o é sem considerar as humilhações da passagem do tempo. É-o, poder-se-ia dizer, com a mesma pureza celestial que assiste aos deuses. Em contraste, quando se diz que uma árvore é verde, o verbo ser é aqui acometido das dúvidas temporais da existência, e certamente não se quer dizer que sempre o foi e que sempre o será. Pelo contrário, sabemos que a árvore deixará de ser verde a seu tempo. Daqui salta-se então para a conclusão de que a verdade, mesmo que exista em áreas divinas como a geometria, foge-nos decididamente por entre os fluxos e dinamismos da realidade física, onde não é senão uma ilusão sublunar dos ingênuos. Tudo muda, nada fica, e só os tolos pensam que há verdades imutáveis.

Esta família genérica de posições acerca da verdade encerra uma curiosidade histórica e outra conceptual. A primeira é continuar a reproduzir inquietações filosóficas que talvez fossem razoáveis no tempo de Platão, mas que estão longe de o ser depois de termos tantas ciências tão bem-sucedidas que lidam, precisamente, com o dinamismo do mundo físico. Física, química, biologia, astronomia, astrofísica, dinâmica de fluidos — estas são apenas algumas das áreas científicas que certamente nos proporcionam um conhecimento aprofundado da realidade, sem que o seu carácter dinâmico constitua um obstáculo intransponível. É por isso historicamente curioso como conseguirá uma pessoa no século XXI manter a preocupação platônica do séc. V a.C com a possibilidade da verdade acerca de realidades dinâmicas, se não ignorar completamente os feitos cognitivos da humanidade dos últimos quatrocentos anos. Mais irônico ainda é esta pessoa obviamente evidenciar pelo menos um conhecimento histórico — pelo menos da história da filosofia — quando a história é precisamente uma das áreas da investigação humana que lida com aspectos inequivocamente dinâmicos da realidade.

O aspecto conceptual curioso da inquietação platônica com a mutabilidade é que uma breve reflexão é suficiente para ver a confusão subjacente a esta maneira de pensar. Considere-se a frase “Está chovendo”; que quer ela dizer exatamente? Apesar de não incluir explicitamente qualquer deítico (termos como “aqui”, “hoje”, etc.), subentende dois: que é no lugar onde a frase é proferida que está chovendo, e não em todo o universo, e que é naquele momento, e não antes nem depois. Caso seja completamente explicitada, e imaginando que é proferida em Paris no dia 12 de maio de 1755, não quer certamente dizer que está chovendo em Ouro Preto, MG, no dia 12 de maio de 2018. De modo que por mais mutável que seja a realidade isso não é de modo algum um obstáculo à verdade: se for verdadeiro que naquele dia em Paris estava chovendo, isso é verdadeiro ainda hoje, e mesmo que não seja verdadeiro que está chovendo hoje em Paris ou noutro lugar. Uma vez mais, temos aqui uma mistura com as convicções humanas, ou com o que os seres humanos podem estabelecer, descobrir ou provar. É claro que se não houver registos históricos apropriados, não haverá como saber se choveu em Paris naquele dia do século XVIII; e não há certamente maneira de saber se a frase “Chove em Paris no dia 12 de maio de 2020” será verdadeira ou falsa. Contudo, para pensar que o fluxo universal da realidade física é um obstáculo à existência de verdades é preciso confundir a própria verdade com estes aspectos banais acerca da falibilidade humana e da dificuldade ou impossibilidade de saber algumas coisas.

Um bom antídoto para confusões filosóficas deste teor é não começar a discutir conceitos difíceis sem antes usar alguns pares de exemplos humildes que ilustrem apropriadamente o que se pretende. Mal se usa exemplos como “Existem extraterrestres inteligentes”, a veleidade de pensar que a verdade desta frase depende do que os seres humanos são capazes de saber, estabelecer, provar ou verificar torna-se manifesta, porque fica óbvio que se confundiu o que se consegue ou não saber que é verdadeiro com a própria verdade. Os seres humanos não são donos da verdade; são donos apenas dos métodos para tentar descobri-la, e é bom que nos esforcemos para encontrar os melhores. Só a realidade é dona da verdade — no sentido de ser ela, e só ela, a responsável pela verdade das frases que são verdadeiras, mesmo que ninguém saiba ou sequer possa saber que o são.


Desidério Murcho é filósofo, escritor e professor de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto.  É autor, entre outros, de Filosofia Diretamente e O Lugar da Lógica na Filosofia. Edita o site Crítica na Rede

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