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Não estamos a lidar meramente com erros localizados de
raciocínio, mas sim com um molde mental, e um molde mental que de algum
modo misterioso é indiferente à verdade. (...)
A mente utópica é uma mente moldada por uma moral particular
e uma necessidade metafísica que leva à aceitação de absurdos não a despeito
da sua absurdidade mas por causa dela.
Esta 'imunidade à refutação' é o que quero dizer com falácia
da utopia, e vale a pena explorá-la como um dos curiosos caminhos secundários
do otimismo, que aponta o caminho para uma profunda explicação da razão pela
qual, no espírito humano, o irracional é tão interminavelmente renovável.
A falácia da melhor das hipóteses aparece quando a esperança
prevalece sobre a razão, na presença de uma escolha importante. Não é utópica
em si mesma. (...)
Em todas as suas versões, porém, a utopia é concebida como
uma unidade de ser, em que todos os conflitos não existem porque as condições
que os criam já não estarão presentes.
Basta o mais ligeiro discurso crítico para reconhecer que o
'comunismo' de Marx incorpora uma contradição: é um estado em que todas as
vantagens da ordem jurídica ainda estão presentes, ainda que não haja lei; em
que todos os produtos da cooperação social ainda existem, ainda que ninguém
desfrute dos direitos de propriedade que até aí forneceram o único motivo para
os produzir.
A crítica mais importante a fazer a esse modo de pensar não
é que é contraditório, embora o seja, mas que, ao prosseguir uma solução única
e completa para o conflito humano, uma solução que elimine o problema para
sempre, destrói as instituições que nos permitem resolver os nosso conflitos um
por um. (...)
A solução para os conflitos humanos descobre-se caso a caso
e incorpora-se depois em precedentes, costumes e leis.
A solução não existe enquanto plano, esquema ou utopia. É o
resíduo de uma miríade de acordos e negociações, preservada no costume e na
lei.
As soluções raramente são encaradas de antemão, mas
acumulam-se gradualmente através do diálogo e da negociação. (...)
E é precisamente esse depósito, nos costumes e nas
instituições, que o utópico se prepara para destruir.
A utopia é inteiramente construída pela negação [do mundo
tal como é]. O ideal constrói-se para destruir o real. (...)
[Utopia] é o desejo de vingança contra a realidade.
É a característica mais notável dos Estados totalitários: a
necessidade constante e implacável de uma classe de vítimas, a classe dos que
se colocam no caminho da utopia e impedem sua aplicação. (...)
Será um grupo marcado pelo seu êxito anterior, cujos frutos
lhe serão tirados e destruídos ou distribuídos entre os vencedores. (...)
'Você é judeu/burguês/cúlaque.' 'Bem, sim, confesso.' 'Então,
qual é sua defesa?'.
Na utopia, nunca se sentirá a vontade no mundo que cria.
(...) Suspeitará de que a refutação da utopia já está a ser descoberta.
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