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Imagine-se o que seria uma pessoa considerar-se informada, mas desconhecer a
diferença entre o peso e a massa, ou entre a velocidade e a aceleração, ou não
fazer ideia da existência da segunda guerra mundial ou do Gulag. Contudo, com
respeito a alguns dos mais fundamentais e estruturantes conceitos filosóficos,
ocorre algo de semelhante ao que seria esse desconhecimento: uma confusão
sistemática, que esconde ilusões cognitivas persistentes que urge elucidar. Não
parece muito controverso afirmar que este é um dos papéis públicos da
filosofia: esclarecer com rigor os contornos elementares de conceitos que são
usados por qualquer pessoa, tanto na sua vida profissional como na pública e
pessoal. A verdade é um desses conceitos, e talvez um dos mais
maltratados e, simultaneamente, um dos mais fundamentais. O que há de
fundamental nele é a imensa dificuldade em ter qualquer réstia de vida mental
sem o usar implícita ou explicitamente: quando nos batemos pela igualdade das
mulheres é porque pensamos que é falso que elas devem ser discriminadas, e não
há qualquer maneira adequada de ter uma concepção promissora de falsidade sem
pressupor o conceito de verdade.
A principal dificuldade com o conceito de verdade é a confusão persistente
entre uma frase ser ou não verdadeira e o conhecimento ou a crença de que é
verdadeira. Porque evidentemente podemos estar enganados sempre que pensamos
que algo é verdadeiro, cai-se na confusão de pensar que é a própria
verdade que muda, ou se altera, ou que depende de nós. Isto é curioso
porque as coisas são exatamente
ao contrário: é precisamente porque somos obviamente falíveis e tantas vezes
nos enganamos que não há maneira alguma adequada de pensar que a verdade
depende de nós, da nossa vontade, das nossas convicções, das
nossas provas, ou seja do que for desse jaez. Se dependesse, nunca
poderíamos estar enganados, pois bastaria pensar que algo é verdadeiro para o
ser. Uma vez que é evidente que nos enganamos, e muito mais do que
seria desejável, conclui-se validamente que a verdade não depende de
nós. O que depende de nós, mas isso é banal e desinteressante, é o
que pensamos que é verdadeiro, e o que pensa uma pessoa que é verdadeiro pensa
outra que é falso, mas nenhuma delas tem o poder de tornar
verdadeiro ou falso isso que pensam; só a realidade tem esse poder. Mas
que quer isto dizer?
Considere-se uma frase simples, como “Existem extraterrestres inteligentes”. É
de prever que não haja neste caso muitas pessoas com fortes convicções
dogmáticas, seja para dizer que sim seja para dizer que não. As coisas já mudam
de figura com respeito a muitas outras frases. Porém, quer essas fortes
convicções existam quer não, e sejam elas mais ou menos dogmáticas, há uma só
coisa que conta para tornar as frases falsas ou verdadeiras: a realidade. No
caso da frase anterior, só a existência de extraterrestres inteligentes a torna
verdadeira; e só a inexistência deles a torna falsa. Isto é o aspecto elementar
da verdade que qualquer concepção filosófica elaborada terá de acomodar para
ser promissora, e que infelizmente está longe de ser adequadamente compreendida
pelo grande público. Como se vê, a verdade não é uma coisa mística, apesar de
ser compreensível que as religiões lhe dêem muita importância devido ao papel
crucial que desempenha nas nossas vidas — afinal, distinguir a verdade da
ilusão é uma das nossas mais fundamentais tarefas, se queremos ter uma vida
melhor e se almejamos a uma compreensão mais promissora da realidade. Longe de
ser algo místico ou misterioso, a verdade é bastante banal e terra-a-terra. O
que não é banal é encontrar processos fidedignos de prova e justificação, que
nos ajudem a encontrar a verdade e a não cair no erro. Mas não valeria a pena o
esforço para encontrar os melhores processos de prova e justificação caso a
verdade fosse apenas o que cada qual pensa que é.
Há assim uma marcada diferença entre o que se consegue provar ou
justificar adequadamente e a própria verdade. Precisamente porque
somos falíveis, quase não existem processos de prova que sejam imunes ao erro.
Alguns são muitíssimo melhores do que outros, porque oferecem garantias mais
fortes, mas é preciso ter sempre cuidado porque podemos estar enganados. É algo
como esta consciência da falibilidade humana que provoca a confusão de pensar
que é a própria verdade que é instável, digamos, no sentido de ser relativa ao
que pensamos. Porém, se a verdade fosse relativa neste sentido, não
haveria instabilidade alguma porque seria sempre verdadeiro seja o que for que
alguém pensa que é verdadeiro.
Algumas maneiras comuns de falar são muitíssimo enganadoras precisamente porque
confundem de maneira sistemática o conceito de pensar ou acreditar ou ter a
convicção de que é verdadeiro com o conceito de ser verdadeiro. São dois
conceitos muitíssimo diferentes, mas ficam confundidos quando se diz que antes
de Galileu era verdadeiro que a Terra estava imóvel, e que depois se tornou
falso. O que se quer dizer é que antes de Galileu as pessoas pensavam que isso
era verdadeiro — mas pensar que é verdadeiro não o torna realmente verdadeiro
porque as pessoas não são oniscientes. Diz-se também por vezes que é verdadeiro
para Galileu que a Terra se move, e sugere-se que isso não é verdadeiro para
outras pessoas. Porém, “verdadeiro para” é apenas uma maneira enganadora de
dizer que essa pessoa considera que isso é verdadeiro — mas, uma vez mais,
porque ninguém é onisciente, o que ela toma como verdadeiro talvez seja falso,
e esta banalidade é incompatível com a ideia de que a verdade depende das
convicções das pessoas.
Nenhuma destas reflexões põe em questão aspectos mais profundos do conceito de
verdade, que talvez seja relativo numa acepção qualquer sofisticada e
filosoficamente interessante. Mas seja qual for essa concepção, terá de
acomodar estas ideias elementares — ou de ter razões muitíssimo convincentes
para as pôr em dúvida, e não é de prever que existam essas razões, depois de se
esclarecer o básico. Por vezes, tempestades tonitruantes de filosofia não
passam de confusões num copo de água, e isso não é surpreendente porque acontece
o mesmo em muitas outras áreas de investigação.
Menos comum, talvez porque mais obviamente indefensável, é a ideia de que
não há verdades. Quando se junta a consciência saudável de que somos
falíveis com a confusão conceptual acerca da verdade, fica-se a um passo de
concluir que não há verdades porque afinal podemos sempre estar enganados.
Porém, como se conseguiria realmente saber tal coisa? Não é certamente o gênero
de afirmação que se possa saber como quem sabe que está chovendo olhando pela
janela; não se consegue olhar e ver que não há verdades. Tal como não se
consegue olhar e ver que os dinossauros se extinguiram há sessenta milhões de
anos, mas antes se conclui essa hipótese científica raciocinando, só desta
mesma maneira se conseguirá saber que não há verdades: raciocinando. Ora, a
dificuldade mortal é que os raciocínios só permitem saber seja o que for quando
reúnem pelo menos duas condições: serem válidos e todas as suas premissas serem
verdadeiras. A validade é um conceito da lógica, e garante que caso as
premissas do raciocínio sejam verdadeiras, não há maneira alguma de a conclusão
ser falsa. Mas caso as premissas não sejam verdadeiras, a mera validade é
irrelevante. Daí que se tenha encontrado em filosofia uma designação
semitécnica para os raciocínios que são simultaneamente válidos e cujas
premissas são todas verdadeiras: diz-se que são sólidos. Ora, como é bom de
ver, é impossível que um raciocínio seja simultaneamente sólido e tenha como
conclusão que não há verdades. Isto porque para ser sólido é preciso que todas
as suas premissas sejam verdadeiras; mas caso não existam verdades, como
assevera a sua conclusão, as suas premissas não são verdadeiras e por isso o
raciocínio não é sólido. Dado que não há raciocínios sólidos que nos permitam saber
que não há verdades, e dado que não é o tipo de coisa que se possa saber
olhando pela janela como quem vê que está chovendo, como sabe alguém que não há
verdades? Talvez tenha um contacto místico com os deuses, que lho sussurraram
ao ouvido, mas o comum dos mortais fica certamente perplexo com essa
extravagante hipótese e não tem razões minimamente promissoras para levá-la a
sério.
Estas confusões com o conceito de verdade incluem por vezes uma suposta
dificuldade com o carácter dinâmico da realidade. Como escreveu Camões,
Mudam-se
os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se
o ser, muda-se a confiança;
Todo
o mundo é composto de mudança,
Tomando
sempre novas qualidades.
Platão
e outros filósofos da antiguidade pareciam pensar, pelo menos em alguns
momentos, que a mutabilidade ou dinamismo da realidade seria um desafio à
existência de verdades, ou talvez até fosse incompatível com elas. Deste ponto
de vista, parte-se de verdades intemporais como as da geometria, toma-se esse
tipo de verdades como paradigmáticas, e depois pensa-se que o fluxo contínuo de
acontecimentos do mundo sublunar é de algum modo incompatível com a existência
de verdades. Quando se afirma que um triângulo é o resultado da intersecção de
três linhas rectas, o verbo ser é aqui intemporal — não se quer dizer
que isso é agora assim, mas não o era, e talvez não venha a sê-lo, mas antes
que o é sem considerar as humilhações da passagem do tempo. É-o,
poder-se-ia dizer, com a mesma pureza celestial que assiste aos deuses. Em
contraste, quando se diz que uma árvore é verde, o verbo ser é aqui acometido
das dúvidas temporais da existência, e certamente não se quer dizer que sempre
o foi e que sempre o será. Pelo contrário, sabemos que a árvore deixará de ser
verde a seu tempo. Daqui salta-se então para a conclusão de que a verdade,
mesmo que exista em áreas divinas como a geometria, foge-nos decididamente por
entre os fluxos e dinamismos da realidade física, onde não é senão uma ilusão
sublunar dos ingênuos. Tudo muda, nada fica, e só os tolos pensam que há
verdades imutáveis.
Esta família genérica de posições acerca da verdade encerra uma curiosidade
histórica e outra conceptual. A primeira é continuar a reproduzir inquietações
filosóficas que talvez fossem razoáveis no tempo de Platão, mas que estão longe
de o ser depois de termos tantas ciências tão bem-sucedidas que lidam,
precisamente, com o dinamismo do mundo físico. Física, química, biologia,
astronomia, astrofísica, dinâmica de fluidos — estas são apenas algumas das
áreas científicas que certamente nos proporcionam um conhecimento aprofundado
da realidade, sem que o seu carácter dinâmico constitua um obstáculo
intransponível. É por isso historicamente curioso como conseguirá uma pessoa no
século XXI manter a preocupação platônica do séc. V a.C com a possibilidade da
verdade acerca de realidades dinâmicas, se não ignorar completamente os feitos
cognitivos da humanidade dos últimos quatrocentos anos. Mais irônico ainda é
esta pessoa obviamente evidenciar pelo menos um conhecimento histórico — pelo
menos da história da filosofia — quando a história é precisamente uma das áreas
da investigação humana que lida com aspectos inequivocamente dinâmicos da
realidade.
O aspecto conceptual curioso da inquietação platônica com a mutabilidade é que
uma breve reflexão é suficiente para ver a confusão subjacente a esta maneira
de pensar. Considere-se a frase “Está chovendo”; que quer ela dizer exatamente?
Apesar de não incluir explicitamente qualquer deítico (termos como “aqui”,
“hoje”, etc.), subentende dois: que é no lugar onde a frase é proferida que
está chovendo, e não em todo o universo, e que é naquele momento, e não antes
nem depois. Caso seja completamente explicitada, e imaginando que é proferida
em Paris no dia 12 de maio de 1755, não quer certamente dizer que está chovendo
em Ouro Preto, MG, no dia 12 de maio de 2018. De modo que por mais
mutável que seja a realidade isso não é de modo algum um obstáculo à verdade: se
for verdadeiro que naquele dia em Paris estava chovendo, isso é verdadeiro
ainda hoje, e mesmo que não seja verdadeiro que está chovendo hoje em Paris ou
noutro lugar. Uma vez mais, temos aqui uma mistura com as
convicções humanas, ou com o que os seres humanos podem estabelecer, descobrir
ou provar. É claro que se não houver registos históricos apropriados, não
haverá como saber se choveu em Paris naquele dia do século XVIII; e não há
certamente maneira de saber se a frase “Chove em Paris no dia 12 de maio de
2020” será verdadeira ou falsa. Contudo, para pensar que o fluxo
universal da realidade física é um obstáculo à existência de verdades é preciso
confundir a própria verdade com estes aspectos banais acerca da falibilidade
humana e da dificuldade ou impossibilidade de saber algumas coisas.
Um bom antídoto para confusões filosóficas deste teor é não começar a discutir
conceitos difíceis sem antes usar alguns pares de exemplos humildes que
ilustrem apropriadamente o que se pretende. Mal se usa exemplos como “Existem
extraterrestres inteligentes”, a veleidade de pensar que a verdade desta frase
depende do que os seres humanos são capazes de saber, estabelecer, provar ou
verificar torna-se manifesta, porque fica óbvio que se confundiu o que se
consegue ou não saber que é verdadeiro com a própria verdade. Os
seres humanos não são donos da verdade; são donos apenas dos métodos para
tentar descobri-la, e é bom que nos esforcemos para encontrar os melhores. Só a
realidade é dona da verdade — no sentido de ser ela, e só ela, a responsável
pela verdade das frases que são verdadeiras, mesmo que ninguém saiba ou sequer
possa saber que o são.
Desidério Murcho é filósofo, escritor e professor de Filosofia na Universidade
Federal de Ouro Preto. É autor, entre outros, de Filosofia Diretamente e
O Lugar da Lógica na Filosofia. Edita o site Crítica na Rede