quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Encarceramento no Brasil: comparações internacionais

Outra tecla que o esquerdismo brasileiro anda batendo é a alta quantidade de presos no Brasil.

Até o Livres, movimento libertário de PhDs, caiu na ladainha do Brasil ser o “terceiro país do mundo que mais encarcera pessoas”, ignorando que o Brasil é o 5º ou 6º país mais populoso do mundo e, óbvio, o número absoluto não significa nada.

A comparação mais imediata seria a “taxa de encarceramento por 100.000 habitantes”, como é exposta a maioria dos índices sobre criminalidade. Por essa métrica, segundo o prisonstudies.org, o Brasil está em 26º lugar, o que não impede, claro, de a intelectualidade brasileira continuar tentando sua marretada tradicional, selecionando países para apresentação.

Ainda assim, não considero que essa seja a melhor métrica. A taxa por 100.000 habitantes pressupõe que todos os países possuem a mesma ‘tendência ao crime’, o que obviamente não é verdade (sem querer entrar no mérito sobre o que levaria a essa diferenciação: cultura, genética, religião, raça,...). Um exemplo: considere 2 países de 100 habitantes; no país A, cometem-se 20 crimes e no país B, 10 crimes; o país A tem 12 presos e o B tem 9 presos; por 100.000 habitantes, o país A tem uma taxa de encarceramento maior, mas na realidade, a política prisional do país B é muito mais severa: 90% dos crimes levaram a uma prisão, enquanto no país A, apenas 60%.

Fui atrás, então, DAS TAXAS DE ENCARCERAMENTO vs TAXA DE HOMICÍDIOS (como proxy de crimes), ambos por 100.000 habitantes, de todos os países do mundo. O Wikipedia me bastou.
Mapeei 215 países. Pensei ser ok desprezar países muito pequenos, mais suscetíveis a outliers. Mas também não queria diminuir demais a base comparativa. Usando o corte de população acima de 2 milhões de pessoas, chegamos mais ou menos na metade: 114 países. Apresento-os abaixo:



O Brasil é o pontinho amarelo. Acima, é verdade, da linha de tendência mundial, mas nada absurdo. Vale lembrar que, por essa métrica, o Brasil tem quase 18% dos assassinatos do mundo.

Se assumirmos que a linha do gráfico é a política ‘ideal’ do mundo, o Brasil deveria estar com 232 presos por 100 mil habitantes ao invés dos atuais 324 por 100 mil, ou seja, 29% acima, o que o deixaria em 24º lugar no ranking mundial dessa métrica de desvio do ‘ideal’. Os EUA, 1º lugar nessa métrica, ‘deveria ter’ 154 ao invés de 655 por 100 mil habitantes, um ‘delta’ de 77%.
Tabela com os 15 países mais populosos:



Um outro modo de analisar e o que considero o melhor deles (pelo menos, o mais próximo daquele exemplo intuitivo dos países A e B) é a relação de presos por assassinatos/ano. Por essa métrica, o Brasil tem 10,97 presos por assassinatos/ano, o que o deixaria apenas na 93ª posição nesse ranking. Cingapura, 1º lugar nessa métrica, tem 628,13 presos por assassinatos/ano, muito mais rígido que o Brasil, portanto.

 

Um detalhe importante dessa última métrica é que os presos são ‘estoque’ e os homicídios são ‘fluxo’ (por ano). Ou seja, mais do que a simples entrada na prisão, a métrica acaba levando em conta também a permanência.

Ou seja, precisa forçar muito a barra pra dizer que a política de encarceramento no Brasil é rígida.

A crítica seguinte é a de que o Brasil prende mal. Esses ‘estudos’ me fizeram questionar uma das críticas que eu tinha às prisões no Brasil: a alta proporção de presos não julgados (35,4%). Só que esses números me mostraram que o Brasil é apenas o 46º nesse critério, ou seja, não parece ser tão absurdo como eu achava (e países como China e Cuba não apresentam esses dados). A média simples dos países que apresentam esse dado é de 34,6%; a média ponderada por presos é de 31,4%. Ou seja, nem mesmo no critério de presos não julgados, o Brasil pode ser considerado rígido. (e aqui não entro na questão humanitária e me mantenho apenas no aspecto meramente comparativo).



Pra finalizar, aceitei bovinamente os dados informados pelas autoridades brasileiras para montar essas comparações, mas esse promotor do RS questiona o fato do Brasil incluir não apenas os presos em regimes integralmente fechados, como os demais países o fazem. Isso faria a taxa de encarceramento do Brasil cair para 224 presos por 100 mil habitantes, ABAIXO do que seria a tal taxa ‘ideal’ segundo o primeiro gráfico.

Enfim: o Brasil não prende muito.
(E acho que isso não é bom, mas isso deixo pra outro post).

(Des)armamento

[Publicado em 15/04/2018; editado em 22/11/2018]

É uma marca da intelligentsia brasileira (provavelmente mundial – say Hi to Soros) o absoluto repúdio à contrariedade ao desarmamento. Ser desarmamentista virou uma virtude per se, ou mais ainda, uma importante SINALIZAÇÃO DE VIRTUDE.

Reparem como os desarmamentistas tratam os ‘armamentistas’ como bichos estranhos. “Onde vivem? Como se alimentam?”. “Queria tanto entendê-los...”.
Proponho-me aqui a colocar alguns argumentos ‘armamentistas’. Obviamente não sou um especialista no assunto e prometo vir aqui reeditar esse texto, diante de novos argumentos futuros.

...
Iniciando de um ponto de partida empático, pressuponho que tanto armamentistas quanto desarmamentistas tenham um mesmo objetivo: reduzir a criminalidade e mortes. Sei que pode não ser o caso de todas as pessoas – say Hi to Soros – mas acho que é um bom ponto de partida.
(Parêntesis rápido: um jeito fácil e prático de decidir se é bom ou não ter armas nas mãos de ‘cidadãos do bem’ seria perguntar para os ‘cidadãos do mal’, isto é, o que os bandidos prefeririam; e aí, claro, fazer o contrário. Nós sabemos a resposta...)
(Outro parêntesis: sei que a expressão ‘cidadãos do bem’ pode gerar certos preconceitos; não acho relevante entrar nessa discussão; aqui, uso-a apenas como contraste a bandidos). Mas voltando...

O grande argumento desarmamentista é simples e robusto: (A1) a (in)eficiência na (auto)proteção com uma arma e o ciclo que isso alimenta (um ladrão rouba uma pessoa armada e leva mais uma arma).
A real eficiência ou a validade dessas políticas civis/sociais é de difícil mensuração por ser impossível fazer um experimento controlado, com grupo de controle, por exemplo. Comparações entre países podem ser proveitosas e devem ser feitas (com cuidado), mas as diferenças entre as nações serão sempre uma ‘saída honrosa’ pra não se aceitar um determinado resultado que se pretendia. No Brasil, no entanto, tivemos uma mudança brusca de política pública a partir de 2003, quando a posse das armas de fogo passou a ser muito mais restritiva (contrariada, depois, pelo Plebiscito do Desarmamento de 2005, no qual a grande maioria da população votou a favor do armamento civil e que foi solenemente ignorada pelo governo).
É PRECISO CUIDADO PARA NÃO INFERIR CAUSALIDADE ONDE TEMOS APENAS CORRELAÇÃO (ou pelo menos onde ainda não podemos provar tal causalidade), mas as eventuais tendências a partir dessa relevante mudança de política pública podem sugerir um ou outro caminho (ainda que, como falarei mais tarde, não necessariamente eficiência de política pública seja o único driver pra se decidir).
Enfim, aos dados.
(todos daqui: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/)

Os números oficias do Atlas da Violência do IPEA mostram a seguinte evolução da taxa de homicídios por armas de fogo no Brasil:


Gráf 1 - Taxa de Homicídios por Armas de Fogo – BR – arte IPEA

À primeira vista, o Desarmamento de 2003 parece, sim, ter reduzido a taxa de homicídios com armas de fogo no país. Ou melhor (para não inferir causalidade): parece haver correlação entre o desarmamento e a queda na taxa de homicídios. Ainda que se argumente que, apenas 9 anos depois (2012), a taxa já esteja maior que em 2003 (uma difícil realidade para os desarmamentistas enfrentarem...), é inegável a melhora na tendência.

Entrando mais nos detalhes dos gráficos, algumas observações são importantes.
Primeiro: o gráfico 1 mostra apenas os homicídios POR ARMA DE FOGO. Se pegarmos os homicídios SEM arma de fogo, perceberemos uma mudança na tendência de queda, sugerindo que se o sujeito quer matar, ele arranja um jeito:



Gráf 2 - Taxa de Homicídios SEM Armas de Fogo – BR – arte minha

Segundo: dinâmica semelhante acontece com suicídios. Embora a taxa de suicídios por armas de fogo tenha caído após 2003, a taxa total de suicídios subiu. Se o sujeito quer SE matar, ele arranja um jeito:

Gráf 3 - Taxa de Suicídios – BR – arte minha

Terceiro: a qualidade dos dados melhorou com o tempo. Reparem que a proporção de mortes com causa indeterminada (a infame piada de Trope de Elite sobre a morte na praia por afogamento com 2 perfurações) caiu bem com o tempo:


Gráf 4 – Proporção de Mortes Violentas por Causa Indeterminada ao Total de Homicídios – BR – arte IPEA

Um quarto detalhe é a escala dos gráficos. O modo como o IPEA apresenta seus gráficos sugere mudanças muito mais drásticas do que olhando a big picture. Eu também fiz isso nos gráficos 2 e 3, reforçando a tese sobre essa 'indução'. Colocando tudo até aqui com escala a partir do zero, as mudanças já não parecem tão grandes:


Gráf 5 – Colocando em escala – arte minha

Mas até agora, foram detalhes. A conclusão do gráfico 1 já não é tão robusta como à primeira vista, mas é forte: a taxa de homicídios por armas de fogo caiu após 2003!

Vamos agora debulhar esses dados, abrindo por alguns estados. Doravante, mesmo sabendo que existe a consequência indesejada na taxa de homicídios SEM armas de fogo e 1 morte é 1 morte, vou ‘conceder’ e usar apenas taxa de homicídios POR ARMAS DE FOGO e sempre com a mesma escala (que englobe o estado mais violento):


Gráf 6 - Taxa de Homicídios por Armas de Fogo – AL – arte minha


Gráf 7 - Taxa de Homicídios por Armas de Fogo – SE – arte minha

 
Gráf 8 - Taxa de Homicídios por Armas de Fogo – RN – arte minha


Gráf 9 - Taxa de Homicídios por Armas de Fogo – BA – arte minha

Peguei apenas alguns estados cujo aumento após 2003 se mostrou notável (mesmo com a escala indo até 60), mas podem conferir lá no site do IPEA: a grande maioria dos estados teve AUMENTO nesse índice após 2003.

Mas então como o consolidado nacional cai? Matematicamente, a resposta é simples: alguns estados mais populosos tiveram queda: o Rio e, destacadamente, São Paulo. E aí, o pulo do gato é que a queda de São Paulo (caindo de 28,24 pra incríveis 6,08) COMEÇOU ANTES de 2003:


Gráf 10 - Taxa de Homicídios por Armas de Fogo – SP – arte minha
(se eu deixasse escala livre, o efeito visual seria ainda mais incrível... 😉)

Não é possível atribuir A CAUSA da redução de homicídios a algo que aconteceu DEPOIS do início de tal redução.
Assim, podemos entender que lá no gráfico 1 não temos causalidade entre desarmamento e queda da taxa de homicídios por arma de fogo e, sim, mera correlação e, talvez, apenas uma correlação espúria. Pra saber o que fazer para reduzir a taxa de homicídios, devemos tentar ver o que aconteceu em São Paulo que não aconteceu no resto do Brasil. (CA1) Desarmamento não está nesse rol.

...
Voltando a outros argumentos dos desarmamentistas, tem-se o (A2) risco que uma reação armada a um crime piore a situação. No entanto, (CA2) o U.S. Justice Department’s National Crime Victimization Study mostra que a utilização de armas de fogo na defesa contra crimes de estupro, roubo ou agressão é exitosa em 65% dos casos e piora a situação em apenas 9% das vezes. Nos Estados Unidos, armas de fogo são utilizadas mais de meio milhão de vezes por ano para evitar arrombamento a residências; na maioria das vezes, sem que tenha sido efetuado um único disparo. [Bandidolatria e Democídicio, Diego Pessi]. O efeito persuasivo nas cabeças do criminosos é exponencial.

Uma variação desse argumento é o (A3) risco de acidente doméstico, canalhamente usado por Haddad em sua campanha presidencial. Não sei a confiabilidade dessas estatísticas, pela dificuldade de categorizá-las, mas (CA3) o que temos mapeado sugere que esses acidentes são irrelevantes. Afogamentos em piscinas são 7 vezes mais numerosos. Alguém quer proibir piscina? Acidentes com estrangulamento e intoxicação são muito maiores.

Vale frisar que, embora muitos desarmamentistas utilizem essa falácia, a posse de arma não seria obrigatória. (hehe). Você continuará podendo escolher não ter arma em casa. (Eu mesmo, embora a favor da posse, não quero ter; mas prefiro que o bandido tenha a dúvida). Cuidado com o salto indutivo: não necessariamente quem apoia o armamento quer ter arma; não necessariamente quem quer arma, vai usá-la.

...
No caso em questão, acho que a discussão numérica realizada até agora – especialmente sobre o argumento 1 – poderia ser suficiente, mas pra finalizar, gostaria de uma discussão moral. Como já disse outras vezes, não sou fanboy da eficiência estatal como única métrica para definir uma política pública. O exemplo que sempre cito é a pena de morte: supereficiente mas moralmente inadmissível pra mim. Uma sociedade são seus valores morais, não (apenas) seus números. Ainda que os números sugiram que o desarmamento não seja causa de melhora na taxa de homicídio, eu poderia ser convencido por um argumento moral a favor do desarmamento. O que costuma ser citado é o (A4) direito à vida de terceiros. Acho que é uma falácia, e das feias. (CA4) Arma deveria ser como um seguro: você pode ter, mas torce pra nunca precisar usar. A simples posse de uma arma não fere o direito à vida de nenhum terceiro. 'Com maior poder vem maior responsabilidade'. O portador de armas tem que responder por seus atos. Isso não é uma novidade, com armas legais ou não, 'cidadão do bem' ou 'bandido' (ou pelo menos deveria ser assim). Precisamos fugir da estúpida lógica de que o potencial 'cidadão do mal' está apenas esperando a liberação das armas para poder usá-las indiscriminadamente. Por definição, o 'cidadão do mal' não está nem aí pra lei. O bandido já tem arma hoje. O que se argumenta aqui é liberação de armas para quem hoje não tem arma e, via de regra, só vai usá-la se absolutamente necessário. No fundo, a posse de arma se trata de (CA4b) direito de propriedade, um direito não tão fundamental quanto o da vida, mas também bastante estruturante para uma civilização decente. Grande parte da população não pode contar com a segurança pública, seja por confiança seja por distância mesmo (muitas pessoas moram a muitos quilômetros da delegacia mais perto). É um absurdo que o Estado, além de sua inoperância para defender o cidadão, também queira proibir que o cidadão tente defender a si mesmo.

Pra finalizar, um contrargumento histórico: a quase totalidade das variações de ditaduras modernas foram precedidas pelo desarmamento da população civil. [DPessi:] O armamento civil é peça fundamental na definição do equilíbrio das relações de poder entre o povo e o Estado. 

O fingimento é o mal do século


Considero o fingimento um dos maiores males do mundo moderno e o “virtue signaling” é um dos seus mais fortes braços.
O fingimento não é uma mentira em si.
Talvez seja até pior: o fingimento está simplesmente cagando pra verdade.
A verdade é irrelevante pro fingido. Acho que prefiro um mentiroso convicto de sua mentira a um fingidor.
E o sujeito que sinaliza virtude não está preocupado com o bem de sua virtude (ou, analogamente, com o mal do seu vício) e sim com a mera impressão que deixa nos outros.
“Pega bem”.

sábado, 18 de agosto de 2018

Aborto

[Texto inicial de 25fev2015, atualizado em 18ago2018]

Inicio a discussão com uma proposta empática: colocar-se no lugar do outro.
Pessoas pró-aborto, quais são as razões que vocês acham que leva um não-abortista a ter essa outra opinião? São um bando de filhadaputa que quer ver pobre morrer? São os vingadores do tipo 'trepou-agora-aguenta'? São religiosos fundamentalistas irracionais?
Claro que não. Essa simples pergunta talvez estabeleça uma ponte pra conversa. Vamos ponto por ponto.
  
O principal argumento do pró-aborto (ou o mais utilizado) é numérico: (A1) as (supostas altas quantidades de) mortes de mulheres pobres que fazem aborto clandestino. Discutir quantos abortos são realizados ou quantas mulheres morrem com aborto clandestino é aceitar o jogo da turma pró-aborto. Porque por trás dessa discussão numérica, está a noção de "eficiência estatal", "testes econométricos". Russel Kirk disse que a Política começou a se apequenar quando deixou que a Economia se sobrepusesse à Moral (simbolizada pelo clássico "It´s the economy, stupid", do assessor do Clinton). E com isso, não estou menosprezando a questão econômica, mas, sim, aceitando que existem questões anteriores à razão econômica. Um exemplo clássico dessa potencial "eficiência administrativo-econômica" seria a pena de morte para bandido: reincidência zero, custo mensal com prisões menor. Mas sou contrário; por princípios, não por números. O mesmo vale para abortos.
(Independentemente disso, a utilização dos números mostra a intenção ou a honestidade das pessoas envolvidas na discussão. Dentre várias marretadas numéricas, os grupos pró-aborto misturam abortos naturais com abortos induzidos, incluem mortes por outras complicações naturais do parto com as de fato provocadas por aborto clandestino,... Mas para não ficar pendente no texto, o número oficial do DATASUS é: em 2016 (último ano disponível na publicação desse texto), 57 brasileiras morreram por variações de aborto. Cinquenta e sete.) Mas, voltando, o ponto é mais conceitual. A refutação desse argumento pode se dar pelo menos de duas maneiras. Primeiro, (CA1a) o fato de uma parte da população (ricos) conseguir cometer o crime de forma bem sucedida (enquanto outra - pobre - não consegue) não pode ser motivo para mudar a definição do crime (Estratagema de Schopenhauer: tomar a prova pela tese). A rigor, há uma série de crimes que são majoritariamente praticados por ricos (de bate-pronto: corrupção, estelionato, dirigir bêbado e matar,...) e que, nem por isso, devem deixar de ser crimes. Outro problema no argumento é (CA1b) pressupor que a rede pública resolveria a questão das mortes em cirurgias abortivas. Pobres morrem mais que ricos em cirurgias de aborto (todas clandestinas), assim como morrem mais em cirurgias de apendicite, de retirada de amígdala, de parto normal... embora todas essas últimas sejam legais. Ou seja, se a mobilização pró-aborto desejasse apenas evitar mortes de pobres, seria mais eficiente começar exigindo "morte zero" no atendimento da rede pública em todas as cirurgias já legais - que, com certeza, são em número significativamente maior que mortes por aborto. Ou seja, a simples empatia pelo risco do pobre não é o mote central dos pró-aborto. (Veja bem: não quero ser sommelier de campanha. Lógico que um grupo pode se juntar para defender uma causa que não seja O grande problema. Mas meu ponto é deixar as coisas com as devidas dimensões.) Ou seja, o pró-aborto comete um erro cognitivo que Daniel Kahneman chama de "substituição da pergunta": responde-se uma pergunta próxima e mais fácil, e não a questão principal. Last but not least nesse argumento: todas as pesquisas - de Datafolha a Roberto DaMatta - mostram uma profunda REPROVAÇÃO da ideia do aborto nas camadas de renda mais baixa da população. Quem deu a procuração para os ricos defenderem os pobres? Lembro da frase: "Hoje há um (pseudo)conflito entre ricos e pobres, e os ricos querem assumir os dois papeis".

Outro argumento utilizado pelos pró-aborto - e disparado o mais fraco, embora presente em todo textão - é o (A2) "estrago" que um filho não desejado pode causar na vida dos pais. Há várias variações, desde o "E se a gravidez é descoberta em um momento de dificuldade financeira, com um dos pais desempregado?" até o feminismo pelo abandono do pai. A resposta é que se (CA2) se trata de uma geração não acostumada a frustrações ou eventos não-planejados. Divorcia-se, é-se demitido de um bom emprego (ou do único emprego), acaba-se com uma família por um vício ou um chifre, perde-se um pai cedo demais, tem-se câncer ... e engravida-se sem querer. Tentamos evitar, às vezes dá pra evitar, às vezes não. E a solução não é esconder a cabeça debaixo da terra. A geração Ctrl+Z quer uma maneira de tentar 'dar um jeito' em pelo menos um desses 'problemas': o aborto. Sobre a 'indesejabilidade' de um filho, cito uma questão que já preocupa os EUA e que li pela 1ª vez n'O que o dinheiro não compra' de Michael Sandel: (CA2a) os contratos de barriga de aluguel. Muitos americanos com dificuldades para engravidar começaram a alugar barriga de indianas. O problema é que, mesmo com contrato assinado (que entregariam o filho assim que nascesse), muitas indianas criaram relação afetiva com o bebê (na barriga!) e simplesmente não quiseram devolver. (Há toda uma discussão moral e jurídica por trás disso). Não é difícil entender esse 'amor de mãe'. Ou seja: mães que não transaram, não tinham parceiro, nem pensavam em ter filho ... e que criaram vínculo com o bebê. (Na verdade, acho que toda grávida tem uma relação de amor e ódio (enjôos, dores) com seu bebê, mesmo os 'planejados'.) (CA2b) 'Mas e as condições econômicas?' Fico pensando o que essas pessoas fariam se perdessem o emprego com uma criança de, sei lá, 5 anos em casa. Abandonariam? Matariam? Isso não pode ser um argumento sério. Há frustrações. Há eventos não planejados. Ponto. Por trás desse argumento, existe uma lógica abjeta de considerar que é melhor morrer do que ser pobre. E eventualmente disfarçado de econometria freakonomics na associação da legalização do aborto à redução de crime em n anos futuros. Isso é mero elitismo. (CA2c) Esse argumento pró-aborto ("ter apenas filhos desejados") é raso, mas é o mais perigoso. Levado a cabo, as consequências são catastróficas. Não haveria limite para o que está acontecendo na Índia: aborto de bebês femininos (aqui e aqui). Ou o que é mais comum ainda em vários países: aborto de portadores de Down. Queria evitar a Lei de Godwin, mas impossível não lembrar da busca pela "raça ariana perfeita", apenas com descendentes "desejáveis". A vida não é assim. Isso é eugenia, pura e simples. (CA2d) Quanto ao abandono do pai, não se corrige um erro com outro. Acho que é bastante claro que o fato da mãe ter uma relação biologicamente mais ligada ao filho (ventre, amamentação) faz com que historicamente a mulher seja quem mais "controla" - e consequentemente mais nega - as relações sexuais. Afinal, é ela quem "corre o risco" (BIOLÓGICO e não meramente social!) de ter que cuidar da criança sozinha. Não é questão de machismo, não é uma questão contemporânea. Não é algo que será mudado por ideais (os bebês continuarão nascendo do ventre materno...) A CANALHICE DO PAI não pode levar à pena de morte do filho. É óbvio que por trás desse ponto, existe uma cultura de libertinagem, que é onde deveríamos atuar para evitar ideias de aborto. Theodore Dalrymple observa que os futuros historiadores sociais encontrarão contradição entre nossa preocupação, de um lado, com algumas problemas sexuais (aborto, abuso,..), e de outro, nossa conivência e indiferença (e quase incentivo, acrescento eu) com a atividade sexual precoce.

Uma terceira estratégia dos grupos pró-aborto é (A3) tentar limitar a discussão apenas àqueles que concordam com eles, desqualificando todos os demais. Ou por serem homens, ou por serem conservadores, ou por serem menos estudados, ou... por serem os avós. É o famoso: "aborto tem que ser discutido apenas por mulheres". Essa estratégia é equivalente à sugestão de que a escravidão deveria ser um problema só de escravos e, eventualmente, donos de escravos. Ou, menos apelativo, achar que a discussão de juros no Brasil só deveria ser feita por quem tem dinheiro aplicado. (CA3) Uma sociedade é civilizada na exata medida em que protege seus cidadãos mais vulneráveis. Idosos, crianças, pobres, pessoas com deficiência, doentes,... fetos. É perfeitamente razoável, é caridoso, é demasiadamente humano defender os mais vulneráveis, ainda mais quando não podem nem falar por si. (Não se trata de "falar por eles" como quando critiquei (lá no CA1b) os ricos pró-aborto tentando falar pelos pobres, justamente porque a maioria dos pobres se manifesta contrariamente ao que os ricos querem falar por eles).
Uma variação dessa estratégia pró-aborto é "se não concorda com o aborto, basta não fazê-lo; mas não proíba os outros". Tem a mesma baixeza da proposição inicial. Se não concorda com estupro, basta não estuprar, mas não proíba o outro? Se não concorda com corrupção, basta não corromper? Se não concorda com escravidão, basta não escravizar? A lógica abortista aplicada a outros crimes evidencia a má intenção de certos argumentos.
E justamente porque os mais jovens, naturalmente inseguros, são os mais propensos a pensar em abortar que a sociedade deve, com a sua sabedoria dos mortos, com suas ideias validadas pelo teste do tempo, mostrar o melhor caminho. Ou pelo menos o caminho menos ruim. Não é interferência na liberdade da mãe, e sim defesa da vida do filho (como detalho no argumento 4 logo abaixo), defesa do bem comum.
The love of liberty is the love of others;
the love of power is the love of ourselves.
William Hazlitt

O último principal argumento utilizado - e pelo qual os pró-aborto ganham o apoio de alguns libertários - é (A4) a "liberdade" do corpo da mulher, simbolizado pelo "meu corpo, minhas regras". Aí, o problema também são pelo menos dois. O primeiro é (CA4a) entender "liberdade" apenas como "ausência de restrição", uma definição animalesca, tribal. Intrínsecas à "liberdade" estão as ideias de "reciprocidade" e "responsabilidade". O exemplo clássico que ilustra não existir "liberdade" como conceito absoluto é o da escravidão: um homem é ou pode ser "livre" para assinar um contrato com outro homem aceitando ser escravo desse? (Ou um mais besta: posso andar pelado por aí?) Já passamos dessa fase; já entendemos que não, não pode. Destaco abaixo em nota* um trecho de Roger Scruton que considero brilhante acerca da "definição de liberdade". O "faço o que quiser" independentemente dos outros é um passo de volta à barbárie. A liberdade tem que ser civilizacional. O 2º erro nesse argumento é (CA4b) assumir que o feto é apenas uma extensão do corpo da mãe. Não é. (Vejam: ainda que fosse, teria toda uma questão ética presente nas discussões sobre suicídio e eutanásia. Mas não é). Trata-se de um OUTRO ser, um outro código genético, tanto que a mulher não consegue produzir sozinha, como uma unha que cresce. (Aliás, grande parte dos abortos espontâneos acontece justamente quando o corpo da mulher - a natureza - não reconhece o feto como um outro ser e o expulsa como se fosse parte do endométrio. (Perdoem-me a 'explicação' simplificadamente tosca)). A relação de dependência do feto ao corpo da mãe não pode ser confundida com uma relação de identidade. Extrapolando, a criança continua dependente dos pais após o nascimento (conheço adultos dependentes dos pais.... ;) ) e não podemos considerar o mesmo corpo, certo?

Reparem: até aqui, não usei absolutamente nenhum argumento religioso. E não precisa usá-lo. A proibição legal de matar é ANTERIOR a subida de Moisés ao Sinai para proclamar o 5º Mandamento: 'Não matarás'.
O princípio de Hipócrates - Primum Non Nocere / First do no harm - é base para a maioria dos profissionais da saúde e não é religioso. Primeiramente, não façamos mal ao feto.
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O não-abortista, em geral, também é contra a pena de morte, pelo mesmo princípio: o Estado não deve matar um criminoso, mesmo confesso. Se devemos poupar até o culpado, como não poupar um feto?

É claro que por trás desse contrargumento está o entendimento da vida como algo "transcendental", "metafísico". Esse é o grande ponto. E não precisa ser religioso para aceitar isso. Não precisamos falar de Deus pra isso. Basta olhar a lágrima de um ateu ao ver seu filho nascer ou o choro de um agnóstico ao ver seu pai morrer. (Perdoem-me o sentimentalismo barato, mas faço meu ponto). Não, a vida não é algo que se brinca de tirar ou colocar.

Com tudo isso, entendo que toda conversa decente sobre aborto vai recair na questão 'Quando começa a vida?'. E, claro, não é uma resposta óbvia. Uma proposta é tentar responder por analogia (menos ideologizada): quando ACABA a vida? Enterramos alguém com morte cerebral, em 'estado vegetativo', mas com coração batendo? É difícil alguém olhar um ultrassom de 5~6 semanas de gravidez, com "um amontoado de células" fazendo barulho e dizer que aquilo ali não é vida. (A rigor, continuamos sendo "amontoados de células"...) Reparem a vulnerabilidade que assumimos se começarmos a conceituar vida de acordo com pressões de época, e não como algo absoluto. (Nesse momento, você está pensando como o pensamento pró-aborto pode se aproximar do que já foi feito na História com judeus, negros, gays...)
Outra analogia para tentar tirar a ideologização da resposta é pensar na proteção a ovos de tartaruga ou na suspeita de vida (bactérias) em Marte. Triste a geração que se preocupa mais com golfinhos do que com fetos humanos.
Por fim, nesse ponto, um amigo [Din] colocou uma observação interessante: se a comunidade pró-abortista se diz tão "científica", como existe tanta variação entre eles mesmos na definição do início da vida e, portanto, até quanto se poderia abortar (40 ou 22 ou 16 ou 14 ou 12 semanas ou...0?)?

Os pró-aborto me fazem lembrar de um trecho de Nassim Taleb:
If you have more than one reason to do something (choose a doctor or veterinarian, hire a gardener or an employee, marry a person, go on a trip), just don’t do it. It does not mean that one reason is better than two, just that by invoking more than one reason you are trying to convince yourself to do something. Obvious decisions (ROBUST TO ERROR) require no more than a single reason.

Tentei passar por cada ponto dos pró-aborto. Mas como contrargumento final, também entendo que basta uma única resposta para não se legalizar aborto: Não se mata.


Aprendi uma verdade que está cravada na minha carne e na minha alma, para sempre:
"Não se mata”. Mesmo o culpado, não se mata. Um homem não mata outro homem.
Nelson Rodrigues

Termino com o reverso da pergunta do início. Então, afinal, o que eu acho que o pró-aborto deseja? Ou: o que eu, não-abortista, acho que são os motivos pelos quais os pró-aborto defendem a liberação do aborto? Um amigo [Conrado] definiu com precisão: 'é uma demanda de uma certa classe abastada, hedonista e falsamente libertária, pois egoísta e narcisista'. As palavras parecem fortes mas cada uma delas é necessária. Parece-me muito mais uma questão psicológica, uma carta branca do superego pra tranqüilizar a consciência e descarregar a culpa.

É claro que mesmo os pró-aborto não se sentem bem com a ideia de fazer de fato um aborto. Deve ser uma questão que fica cutucando pra sempre (já há uma extensa literatura sobre depressão pós aborto), ou seja, 'não é bom'. Em Alma Imoral, Nilton Bonder fala sobre a tensão entre o 'bom' e o 'correto'. Infelizmente nem sempre os dois andam juntos. Muitas vezes, o bom é errado e o correto é ruim.
A questão do aborto não entra nesse dilema: o não-bom deve continuar não-correto.

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PS: Minha opinião sobre as liberações da legislação atual:

(a) Situações de risco para vida da mãe: acho bastante razoável e tranquilo de aceitar. A analogia é o médico do PS que precisa escolher entre 2 pacientes graves que chegam simultaneamente. No caso, a escolha é pela vida de um, não pela morte do outro.


(b) Estupros: é difícil, consigo aceitar, mas acho que não deve ser incentivado. A melhor analogia é com a legítima defesa. Sou contra tirar a vida de alguém, mas abro exceção para legítima defesa. Nos dois casos (com o estupro e com a ameaça de morte que antecede a legítima defesa), o Estado falhou e é razoável que o cidadão tente se virar sozinho. No entanto, acho que não precisa ser automático: "estuprou, aborta". Como nos casos das barrigas de aluguel indianas, a criança não está condenada. Até acho razoável algum tipo de suporte estatal (como o projeto natimorto que, maliciosamente, foi chamado de Bolsa Estupro).

E, por favor, não sejamos cínicos para expandir o argumento dizendo que o "Estado também falhou" na falta de "educação sexual" (ou variações) que levaram à gravidez indesejada...
"Entre o estímulo e a resposta, existe uma liberdade de escolha" - Viktor Frankl.

(c) Anencéfalos: sou radicalmente contra a liberação do aborto. Se essa lógica fosse adotada há alguns séculos, hoje não teríamos pessoas com Síndrome de Down. E deixaríamos de conhecer pessoas maravilhosas que vivem com isso. Se algum dia, pretendemos fazer com que um anencéfalo viva um pouco mais do que algumas horas (isto é, ter conhecimento médico para conseguir isso), nossa única alternativa é não matá-los na origem. E devemos sempre lutar pela vida. O contrário é eugenia.

_____   
* Trecho de 'As vantagens do pessimismo' de Roger Scruton:
(...)O Contrato Social de Rousseau (...) apresenta um novo conceito de liberdade humana, de acordo com a qual liberdade é o que nos resta quando afastamos todas as instituições, todas as restrições, todas as leis e todas as hierarquias. E seus seguidores acreditavam que essa liberdade, uma vez obtida, exprimir-se-ia na felicidade e na fraternidade da espécie humana, e não naquela 'guerra de todos contra todos', que Hobbes descreveu como o verdade 'estado natural'. (...) a defesa apaixonada [desse conceito] da liberdade foi mais tarde utilizada para desculpar a tirania dos revolucionários.
As instituições, as leis, as restrições e a disciplina moral fazem parte da liberdade e não dos seus inimigos, e a libertação dessas coisas leva rapidamente ao fim da liberdade.
A 'liberdade' disponível num estado natural é uma ilusão - uma mera 'falta de restrição', mas sem a segurança e o reconhecimento que dota a liberdade com os seus atributos distintivamente humanos. A liberdade genuína só aparece quando (...) o conflito se resolve num estado de reconhecimento mútuo. (...)
O preço dessa liberdade é o preço da reciprocidade.
A liberdade é algo que adquirimos. E adquirimo-lo através da obediência. Só a criança que aprendeu a respeitar e acatar os outros pode respeitar-se a si mesma.
A liberdade não é um dom da natureza mas o resultado de um processo educativo, algo que temos que trabalhar para adquirir através de disciplina e sacrifício.
(...) O reconhecimento de que a liberdade não é um dom natural mas um artefato que construímos em conjunto através da nossa pertença social partilhada.




terça-feira, 22 de maio de 2018

Eu e o outro

"Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil… Parafraseio o Alberto Caeiro: 'Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma'. Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer… Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade. (...) Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: 'Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.' Segunda: 'Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.' Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: 'Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.'" - Rubens Alves

Há alguns anos, recebi o trecho acima num desses vídeos de whatsapp. E, cada vez mais frequentemente, me lembro dele.

Acrescento duas variações que são ainda mais crueis e, também, cada vez mais frequentes.

A primeira é a "competição" no assunto em questão. O "e eu, então?". A contraparte fala de uma dor no joelho, o sujeito retruca: "e eu, então?, que já operei 3 vezes o cruzado posterior". A contraparte desabafa sobre a angústia no emprego, o sujeito responde: "e eu, então?, que já fiquei 6 meses desempregado". A contraparte está triste por estar brigado com a esposa e o sujeito: "e eu, então?, que já estou no 3º casamento". A contraparte diz que não anda bem com os pais, o sujeito: "e eu, então?, que fui abusado pelo pai na infância". (Nem sei se é pior se os contraexemplos são de fato mais graves...) O sujeito não quer ouvir, quer apenas competir. É o orgulho da pior espécie. A dor da contraparte não o atinge de modo algum. É um fingimento. "Engole o choro, porra."

A segunda variação é o que se brincou na internet como sendo o ad corintianus. Aquele argumento "só eu sei como é". Aquela pegada que os corintianos tinham de que só eles sabiam o que era sofrer, o que era torcer, o que era vestir a camisa. (Spoiler: não são únicos). Uma categoria que faz isso com frequência é pai/mãe: "só quem é pai sabe". Já ouvi isso até em velório... Nada afasta alguém mais do que o "só quem é _____ sabe" (assumindo que o alguém não é ________). Além de tudo, acho até meio infantil. Meu filho de 4 anos que está nessa pegada de "e eu?" quando brincamos com a bebê menor.

Outro dia, li sobre a diferença entre empatia e identificação. Empatia era algo como acolher/entender o outro MESMO SEM ter a tal identificação. Não existe aquela coisa de "eu sei o que você está sentindo...". Não, eu não tenho ideia do que você está sentindo, mas MESMO ASSIM, quero estar aqui ao seu lado.

Tenho me afastado dos  "e eu, então?" e dos "só eu sei como é". Eles não querem saber como eu sou, eles não querem saber como mais ninguém é. Suas bolhas lhes bastam.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

O homem medíocre


Até entendo a pegada "Seja Foda" em discursos de chegadas ou despedidas em massa (recepções em faculdades ou empresas, formaturas,...). Mas, se eu tivesse que passar uma mensagem para esses momentos, acho que não focaria no "1%" que está destinado a ser foda. O mundo já está bom de gente foda. O mundo está carente é de bons homens medíocres.

"Entre uns [superiores] e outros [inferiores] flutua uma grande massa, impossível de se caracterizar por inferioridades ou excelências. Os psicólogos evitam ocupar-se, a arte os despreza por incolores, a história não sabe seus nomes. São poucos interessantes, em vão se buscaria neles uma aresta definida, uma pincelada firme, um rasgo característico. De igual desdém os cobrem os moralistas; individualmente, não merecem o desprezo que fustiga os perversos nem a apologia que se reserva aos virtuosos. Sua existência é, contudo, natural e necessária".
Jose Ingenieros

Mais do que isso, acredito que o homem médio é quem define o caminho da sociedade. Família, valores, cultura, votos, trabalho. A coisa mais extraordinária do mundo é um homem comum, uma mulher comum e seus filhos comuns [GKChesterton]. Uma sociedade é boa na exata medida em que seu homem médio o é.

Não é fácil ser medíocre. É uma batalha constante com a esperança. (Como contraste, o homem-foda se alimenta diariamente dela. Não tem nada que o homem-foda sonhe que não seja possível pra ele; o sonhar é quase que já realizar). O homem-médio é uma constante adaptação ao 'possível', ao 'que dá', ao 'é isso que tem pra hoje'. O homem-médio apanhou um pouco do acaso. O homem-médio é muito mais acostumado com a frustração (isto é, a realidade em si).

"Uma certa bagagem de frustrações, desilusões, cicatrizes, enfim, daquilo que chamamos de vida. Só com esse repertório você é capaz de assimilar a grande questão (...) da música: Um sonho é uma mentira se não se torna realidade ou é algo pior?
(...)
Viver é aceitar a perda das alegrias e crescer é ver todos os nossos sonhos serem esmagados um após o outro. Sobreviver é encontrar um rio que possa nos dar esperança. Ou meras possibilidades de melhora. Algo a que você possa se agarrar. Quando Springsteen canta que vai até o rio mesmo sabendo que ele está seco, é porque o destino já não importa mais tanto assim. O importante é o ato, a ida. Uma demonstração de fé absurda." - Renato Thibes

O homem-médio precisa saber ser manso para lutar contra a inveja, transformá-la em admiração sincera. O homem médio precisa saber ser pacífico. O homem médio precisa saber esperar. O homem médio acaba conhecendo o que é realmente importante pra nós.

Não há sucesso mais difícil, mais "dolorido" do que o daqueles incrivelmente parecidos conosco. Daí, segue que, quanto maior o número de pessoas com as quais nos consideramos ‘iguais’, maior a possibilidade de sentirmos inveja. [Alain de Botton]. O homem medíocre luta com isso o tempo todo.

A primeira vez que isso me pareceu evidente foi quando saí de um grande banco para tocar uma pequena empresa de estacionamento. No banco, tive vários cursos sobre gestão de pessoas: "saber aproveitar potencial e expectativas". Na empresa, minha mensagem sincera para um manobrista recém-contratado seria: "Rapaz, se tudo der certo, daqui a 10 anos você estará na mesma posição; e provavelmente estará satisfeito com isso."
Com as devidas proporções, o mundo real é muito mais próximo da situação do manobrista do que do estagiário do banco.

A vida é um Grande Funilzão. Muita gente se percebe medíocre na primeira escolinha (ou no primeiro esporte ou na primeira aula de música ou no primeiro não da bonitinha, mas para esse texto, estou focando mais na parte acadêmico-profissional). Até chegar ao Ensino Médio, muita gente já fica pelo caminho e/ou vai cambaleando. O vestibular é outra grande peneira. Gente foda no colegial já se percebe medíocre na faculdade. Terminar a faculdade é outro desafio. E aí vem a carreira profissional. Muito difícil estar sempre no pelotão 'da frente'.

"(...) são os eternos beautiful losers que um dia saberão
que a arte da perda é a única na qual vale a pena se aperfeiçoar.
Porque, no fim, baby, you´re a rich man indeed, mas o que importa é que a única forma de escapar do ciclo de ressentimento é a resignação."
Martim Vasques
....

Pode parecer uma toada meio deprê, mas sinceramente não acho. (Ou pelo menos não deveria ser). (Claro: é mais fácil falar do que fazer). Ser medíocre não é um problema em si (a estúpida maioria o é!). Acho que se torna um problema só se ficar lutando contra os fatos, nadando contra maré, dando murro em ponta de faca.

Tem algumas vantagens mundanas também. Acho que os fodões precisam sempre de novas emoções. Não basta ter ido pra Barreira de Corais, agora tem que ir pra Ilha de Páscoa. Não basta ter ido pra Ilha de Páscoa, agora tem que ir pra Palau. Não basta ser o Head da America Latina, tem que ser o Head Mundial. E assim por diante. O homem medíocre provavelmente estará (realmente) satisfeito com o futebolzinho na TV no domingo e o salário na conta sem atraso. Na verdade, ele acha DO CARALHO o futebolzinho na TV no domingo. TODO domingo.

"O homem comum, em meio a uma ocupação trágica, tem, durante toda sua vida, negado em ser trágico. O homem que tem cavado, regado, arado e cortado lenha desde o princípio do mundo, tem vivido sob inúmeros governos, às vezes bons, mas na maioria das vezes, maus. Entretanto, até onde sabemos, ele sempre tem cantado em seu trabalho."
GKChesterton


Nós poderíamos estar felizes o suficiente com pouco, se pouco fosse o que queríamos; e poderemos nos sentir miseráveis com muito, se formos inclinados a desejar tudo. O preço que pagamos por ter expectativas tão maiores que nossos ancestrais é justamente uma angústia perpétua por estarmos longe de ser tudo aquilo que ‘poderíamos ser’. 
(...)
Toda sociedade atribui uma alta estima a um certo grupo (enquanto condena ou ignora outros) baseado em habilidades, origem, temperamento, força física, cor da pele, gênero, religião,... Longe de ser permanente ou universal, as 'qualidades' em um local ou época podem ser irrelevantes ou mesmo indesejáveis em outros. Os valores de status foram e serão objetos de mudanças. [Alain de Botton].

Ao aceitarmos sem ressentimento, acabamos valorizando a consequência 'boa' de ser medíocre profissionalmente: cuidar da família, ser uma boa pessoa. Enfim, buscar o bem perene, o bem atemporal, o bom que não sai de moda.
Os fodões se maravilham com coisas incomuns; o homem médio se maravilha com o corriqueiro. Isso é sabedoria. [Confúcio, adaptado. hehe]
E, claro, contar com a transcendência: o momento em que o sucesso profissional será simplesmente irrelevante.



domingo, 6 de maio de 2018

Cartas a meus filhos

XIII

Quando papai tinha uns 25 anos, com carteira assinada direitinho, o vovô pediu para que eu fosse fiador em um aluguel pra Dinda estudar no interior. Eu fui contra porque achava que era muita frescura e mordomia pra ela. O vovô me mandou engolir o que eu achava e fazer o que ele mandava. Ele estava certo, eu errado.

Pouco tempo depois, assisti ao Poderoso Chefão e o trecho abaixo me lembrou do meu pai:




"Don't ever take sides against the family. Never."

Não importa: fique sempre ao lado da família, filhos.
Com raras exceções, entre desconhecidos e amigos, fique ao lado de amigos; entre amigos e parentes, fique ao lado dos parentes; entre parentes e familiares próximos, fique com os familiares. É uma boa regra de bolso.

Amo vocês.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

O pecador e o pecado


"Nenhum homem sabe realmente o quanto é mau até se esforçar muito para ser bom. Circula por aí a ideia tola de que as pessoas virtuosas não conhecem as tentações. Trata-se de uma mentira deslavada. Só os que tentam resistir às tentações sabem quão fortes elas são. Afinal de contas, para conhecer a força do exército alemão, temos de enfrentá-lo, e não entregar as armas. Para conhecer a intensidade do vento, temos de andar contra ele, e não deitar no chão. Um homem que cede à tentação em cinco minutos não tem a menor ideia de como ela seria uma hora depois. Por esse motivo, as pessoas más, em certo sentido, sabem muito pouco a respeito da maldade. Na medida em que sempre se rendem, levam uma vida protegida. É impossível conhecer a força do mal que se esconde em nós até o momento em que decidimos enfrentá-lo." - Cristianismo Puro e Simples, CSLewis.

Acho que começamos a entender a Palavra de Deus quando, nas histórias da Bíblia, começamos a nos identificar com a figura 'má', não com o bonzinho. Quando deixamos de nos ver como o filho mais velho e nos percebemos o filho pródigo. Quando deixamos de nos ver como Abel e nos percebemos Caim. Quando deixamos de nos perceber como São Dimas - o bom ladrão - e nos percebemos como o ladrão mau. Quando deixamos de nos perceber como o pecador que reza baixinho e sim como o hipócrita que bate no peito rezando alto.

A Mensagem é muito clara no sentido de que devemos odiar o pecado, mas continuar amando o pecador. Isso parece uma 'solução' muito difícil: como conseguir essa distinção? Até percebermos que fazemos exatamente isso conosco a vida toda. Amamo-nos apesar de ser quem somos.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Amigos do Acaso


O ser humano tem a mania de justificar seus sucessos pela própria competência – e não por sorte – e a justificar seus fracassos pelo azar – e não pela incompetência [NTaleb]. Isso é uma espécie de autoengano, que pode funcionar por muito tempo, mas - acredito - alguma hora vai bater e machucar.

Em um sociedade meritocrática, onde comemoramos apenas conquistas, isso pode não soar bem. Não me entendam mal. Não existe sociedade bem sucedida sem meritocracia. Incentivos (e analogamente punições) são absolutamente necessários para civilização. Mas a ideia desse texto é trazer um pouco de humildade. Lembrar que muito do que nos leva ao sucesso não é exatamente mérito nosso. Sacrifício de pais, esposas, maridos, filhos, professores, outros funcionários, amigos. Mas quero ir além, entrando um pouco nos campos filosófico e até religioso. Mesmo os "próprios méritos" que nos levam ao sucesso são, em certa medida, mero acaso. Para se formar em Engenharia, por exemplo, é preciso alguma proficiência em matemática. É verdade que matemática tem muito de transpiração (além da inspiração inata), mas sem a semente do conhecimento, sem esse "dom", provavelmente 20 horas de estudo por dia não bastariam. E esse dom é uma graça gratuita. Ganhamos por acaso. Vejam bem. De modo algum quero desmerecer as conquistas. Muitos receberam os dons que tivemos e não fizeram nada com eles. E aquele que não faz uso de todo o potencial de sua vida, de alguma maneira diminui o potencial de todos os demais [NBonder]. Por isso, também a importância de uma sociedade meritocrática, que incentive o sucesso de pessoas bem dotadas. Mas entender, ou aceitar, ou pelo menos considerar que talvez a gente tenha tido certa sorte, torna os sucessos ainda mais especiais. Porque adiciona à felicidade da conquista laboriosa um sentimento de gratidão.

Em suma, sejamos amigos do acaso. Minha mensagem em todo esse texto é basicamente essa.

Este é o mal que há em tudo o que acontece debaixo do sol: O destino de todos é o mesmo. O coração dos homens, além do mais, está cheio de maldade e de loucura durante toda a vida; e por fim eles se juntarão aos mortos. (...)
Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois o tempo e o acaso afetam a todos.
- Eclesiastes 9

Sejam amigos do acaso. Mas lembrem-se que amizade requer uma atitude ativa. Tudo que falei até agora não significa ficar esperando a sorte no sofá. O vento apaga uma vela mas atiça a fogueira. O mesmo acontece com a aleatoriedade: queremos usá-la, não fugir dela. [NTaleb]. Isso significa se expor ao bom acaso. Quero me ater um pouco mais a esse ponto. Já conversei bastante sobre acaso com amigos e alguns reagiram de forma meio maniqueísta: 'Ah, se o acaso é quem manda, então não temos o que fazer!'. Não. Não é isso que eu disse e não é isso que eu acho. Tem um monte de frase bonitinha na internet sobre isso ('você não escolhe o que a vida faz com você mas escolhe o que faz com aquilo que a vida fez com você') ou mesmo em qualquer entrevista de atleta americano após uma derrota ('we have to control just what we can control'). São chavões, mas são verdadeiros. O argumento aqui é que o modo como a gente encara o acaso interfere na influência real do mesmo em nossas vidas. Permitam-me um exemplo pessoal rápido. Um dos dias mais tristes da minha vida foi quando tive que demitir um amigo por estar usando crack no trabalho. À noite no mesmo dia, num aniversário, ainda meio abatido, conheci uma amiga de uma amiga que trabalhava com dependência e acabei desabafando um pouco com ela. Essa moça é minha esposa há 5 anos e mãe de 2 belos filhos. Foi a essência do limão virando limonada. O azar de ter um amigo dependente foi quase que a 'chave de leitura' para a sorte de ter encontrado minha esposa.

Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires
tratar da mesma forma a esses dois impostores. (...)
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!
- Rudyard Kipling

Sejam amigos do acaso. Ser amigo do bom acaso, ser amigo da sorte, é ser humilde. Isso seria razão suficiente. Mas tem seu inverso. Alguma hora, os dados vão cair pro outro lado. Alguma hora, o azar vai nos pegar e, nesse momento, a humildade no sucesso de outrora vai nos dar bagagem para ser altivo no fracasso presente. Todos seremos vítimas de alguma injustiça na vida - condição social no nascimento, beleza estética prejudicada, trapaça no trabalho, traição, doença, algum crime; o problema não é se perceber vítima; o problema é o ressentimento que essa vitimização pode causar [TDalrymple]. Sem serenidade, com ressentimento, a tendência é alguma tentativa de vingança ou reparação. E com isso, o mundo fica pior. Mas, pior que o mundo pior, é a gente ficar pior. Não dá para arrumar o mundo sem arrumar sua casa; não dá para arrumar sua casa sem arrumar sua cabeça [JPeterson].

Se todos os nossos infortúnios fossem colocados juntos e,
posteriormente, repartidos em partes iguais pra cada um,
ficaríamos muito felizes se pudéssemos ter,
de novo, apenas aqueles nossos."
- Sócrates

A maior crítica que alguém pode fazer a meritocracia é o corolário de, ao afirmarmos que alguém MERECE o sucesso, termos que dizer que outro alguém MERECE o fracasso [ABotton]. Daí, o "azarado" (conotação neutra) do passado ter virado o "loser" (conotação negativa) do mundo atual. Mas justamente nesse ponto, sendo amigo do acaso, percebi que uma relação amigável - não revoltada, não ressentida - com o acaso permite entender melhor as injustiças alheias. Passamos a ter empatia, por exemplo, pelos mais pobres que, inevitavelmente, terão menos oportunidades na vida (embora, parêntesis, o atual regime capitalista meritocrático ainda seja o que mais oferece chances para esses 'azarados'), mas sendo amigo do acaso, percebemos que esses infortunados não são pessoalmente culpados pelo próprio azar. Por outro lado - e na polarização ideológica atual, isso é crucial - entendo também que EU não sou pessoalmente culpado pelo azar de ninguém. Nem culpa criminal, nem política, nem moral, nem mesmo metafísica [KJaspers]. Claro que ausência de culpa não significa indiferença. Mas tratar a situação sem estar 'acuado pela culpa' é um bom começo. [Na tragédia,] Entendendo a 'inversão de sorte', sentimos piedade pelo herói e medo por causa da identificação com ele. A tragédia nos ensina a ter modéstia sobre nossa capacidade de evitar o desastre e, assim, ter empatia por quem o encontrou [Alain de Botton]. Essa empatia sem culpa, esse entendimento sem coitadismo, aos poucos, pode restabelecer uma sociedade mais baseada em caridade e voluntariedade do que em deveres e direitos [RWeaver]. 

Ninguém quer ser tolo.
Também, ninguém quer ser perverso.
Mas se não queremos ser tolos de jeito nenhum,
acabamos por nos tornar indivíduos bem perversos.
E o contrário também.
- Nilton Bonder

Sejam amigos do acaso.
Coluna ereta e olhar firme no fracasso, sem ressentimento, sem autocomplacência, sem inveja. Serenos.
Coluna ereta e olhar firme no sucesso, sem orgulho, sem autobajulação, sem perversidade. Humildes.


Quem acusa os outros pelos seus próprios infortúnios revela uma total falta de educação; quem acusa a si mesmo mostra que sua educação já começou; mas quem não acusa nem a si mesmo nem aos outros revela que sua educação está completa.
– Epíteto

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Luta solitária

Tenho certa aversão à necessidade de criticar (potencialmente) a direita quando se critica (factualmente) a esquerda. Mas a pensata abaixo, retirada do twitter do @lucasmafaldo me pareceu muito boa e 'intelectualmente honesta'.
Repito na íntegra o que está na sequência aqui.
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O problema do petismo não está nas políticas públicas, mas em uma mentalidade de alguns de seus membros e de muitos grupos políticos -- o que, infelizmente, atinge tanto a esquerda quanto a direita. O primeiro elemento dessa mentalidade é a convicção que o mundo é fundamentalmente mau e que toda relação pode ser caracterizada como uma disputa entre oprimidos e opressores.
Essa interpretação não deixa de ter uma base na realidade, pois a natureza da existência, afinal, é bastante desigual -- sempre tem alguém com mais dinheiro, mais beleza, mais contatos. Porém, em vez de considerar que isso é parte da vida, os utópicos ficam... putos. Eles acham que tudo é uma Grande Sacanagem. E que alguém é pessoalmente culpado pelo fato do mundo andar torto.

Aí chegamos no segundo elemento: o utópico, por perceber e se revoltar contra a Grande Sacanagem, começa a se achar especialmente puro. Quanto mais odeia o mundo, mais bondoso ele se sente -- é o nascimento do famoso "ódio do bem".
Isso gera um sentimento tribal: as pessoas comuns, que vão tocando a sua vida, são vistas como "alienadas", sem "pensamento crítico". O utópico as olha cada vez mais com desprezo, pois não as vê lutando "contra tudo que está aí". Ele começa, então, a se sentir cada vez mais irmanado com os demais utópicos. Ele sente que sua verdadeira família é composta por aqueles que também lutam contra a Grande Sacanagem -- os revoltados, os indignados, os revolucionários.

E aí chega ao terceiro elemento: o utópico não quer resolver nenhum problema específico. Ele quer Resolver Todas as Coisas Ao Mesmo Tempo. Isso mesmo: ele quer uma solução total, global, definitiva. Aos seus olhos, as pessoas comuns são egoístas e pequenas, pois se ocupam apenas dos males que estão diante de si. Ele chega até a odiá-las, pois começam a achar que elas, de algum modo, são cúmplices da Grande Sacanagem.

Essa tríplice combinação é, literalmente, infernal. Simplesmente não é possível resolver todos os problemas. Não é possível mudar a natureza da existência humana. Essas pessoas se acreditam puras, mas elas estão, na verdade, surtadas. E é um surto com consequências enormemente destrutivas. Elas criam alianças em torno desse ódio generalizado e começam a trabalhar incessantemente por causas impossíveis. Embora elas jamais cheguem aonde pretendem, elas fazem merda pra caramba no caminho.

Como eles acham que TUDO está errado e que são PUROS, eles concluem que o defeito fundamental do mundo é o fato de que eles ainda não possuem poder total. Afinal, se controlassem tudo, o paraíso chegaria à terra. Logo, a coisa certa a fazer é acumular poder a qualquer custo. Essa mentalidade sempre acaba em revolução e morticínio. Ela gera uma fome de poder insaciável. Toda lei, fato ou moral que se interrompa a caminhada para o poder deve ser atropelada. Ele serve como livre-conduto para roubo, mentira, manipulação e violência.
Em alguma medida, essa mentalidade está em quase TODOS os grupos políticos -- tanto de esquerda, como de direita. Ela pode perverter mesmo ideais bastante boas e causas realmente justas. Essa distorção ideológica está no centro do movimento socialista e foi uma das principais causas de mortes no século XX -- matando mais que o nazismo e o fascismo, que também são variações da mesma insanidade. E foi esse mesmo movimento, essa mesma psicopatia generalizada, que formou e alimentou o movimento socialista brasileiro. Por orientação direta, aliás, dos serviços secretos comunistas desde a década de 30, desbocando no petismo nos anos 80.

O que é realmente impressionante é a incapacidade da cultura de reconhecer a psicopatia como tal, de deixar movimentos maoístas -- que possuem como objetivo explícito degolar a todos nós -- circulando por aí. É uma prova que todo mundo está meio lelé da cuca. Obviamente, não quero insinuar que essa insanidade é exclusiva da esquerda. Mesmo muito direitistas e liberais brasileiros têm sucumbido à tentação utópica, achando que possuem a Solução Total, e fazendo um monte de merda pelo caminho.

A verdade é a seguinte, turma: não existe salvação nessa vida. O bem e o mal já estão dentro da gente. Nenhum movimento vai trazer o paraíso para a terra. A vida sempre será uma bagunça. Se houver salvação, é para depois que morremos. Enquanto isso, o que dá para ter certeza é o seguinte: o bem o mal são alimentados por cada concreto, específico, particular. Não há iluminação ou santidade permanente. Cada um precisa lutar sozinho para não virar um filho da puta. O resto é mentira e ilusão.

(Lucas Mafaldo)

Nada pessoal


Juan Carlos Osorio, em entrevista coletiva, disse certa vez: Aprendi a não tomar nada como pessoal. Na maioria das vezes, as críticas não são a mim especificamente, mas àquilo que eu represento. As críticas não são ao Osório, mas ao técnico; ou ao técnico estrangeiro; ou ao técnico com background acadêmico.
Aquilo me tocou. E tenho tentado aplicar à minha vida. Não tomar as coisas como algo pessoal. Nem sempre é fácil.
Personas. Somos personas. Somos personagens em cada cenário de nossas vidas. Vestimos máscaras. Representamos funções. A crítica, tomada como pessoal, pode afastar o desejo de continuar. Mas virá outra pessoa, representando aquela mesma função, e a crítica permanecerá. Se a função é necessária, haverá um personagem, e esse personagem será criticado.
Mas, oras, se a função é mesmo necessária, a crítica então será conseqüência natural, ato contínuo. Se a persona não agüenta, a estrutura – para a qual a função era necessária – cai.
(...)
Criticar é preciso. Aguentar a crítica... também.