quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Esperança

A grande maioria dos casamentos se inicia abençoada pela Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios (“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor...“). É um trecho que dá primazia à virtude do AMOR. Linda, sem dúvida.

Mas o AMOR – caridade – é ‘apenas’ uma das 3 virtudes teologais. E tenho pra mim, cada vez mais forte, que as 3 agem em conjunto, um tripé. O amor na alegria e na saúde é mais fácil. Já na tristeza e na doença, pode sacolejar. E aí, só é possível segurar a peteca e retomar a linha usando-se da FÉ e da ESPERANÇA.

Retomando ao caso do meu amigo Cepa: a relação dele com sua esposa Laura deve ter mudado bastante. Diante do ‘obstáculo’ na relação, o desafio na rotina do AMOR causado pela doença, a toada foi retomada porque mergulharam na FÉ. A FÉ é a entrega total, é a resignação prazerosa, é aceitar de bom grado o ‘Seja Feita a SUA Vontade’.

Mas o ponto central do meu argumento nesse texto é a 3ª virtude teologal: a ESPERANÇA.
Não devemos deixar que o insucesso na batalha pela vida do nosso amigo nos leve a achar que a esperança nesses 11 meses tenha sido em vão. Ou pior: que tenha sido um grande delírio coletivo. Acho que se diz que a esperança é a última que morre porque ela é capaz de se renovar. Se tínhamos a esperança que o Cepa sobrevivesse, agora temos a esperança que ele, lá de cima, ajude a Laura e as meninas a terem uma vida legal por aqui. Mas tampouco é esse o ponto central da esperança. Se fosse só isso, ainda assim, poderia ser considerado um mero auto-engano em massa, sempre aguardando a próxima decepção. NÃO. A esperança é o próprio caminho feliz. Também se diz que o melhor da festa é esperar por ela. Não é pra tanto (a festa – a vida eterna – ainda é o melhor), mas a espera já traz, sim, felicidade. Como disse aqui, “(...) no tumulto da vida terrena, a promessa de felicidade celeste já nos enche de esperança. No exato momento em que o sujeito se recobre de esperança, ele já começou a ser feliz. A esperança é o aperitivo necessário para o banquete da felicidade. (...)
Aliás, o texto do link é sobre o Evangelho da Montanha – coincidentemente a Homilia de hoje – e justamente sobre a lógica "faça isso na Terra e tenha a esperança daquilo no Céu".

Hoje é Dia de Finados e a reflexão nos diz: “para todos os povos da humanidade, (...) a morte continua a ser o maior e mais profundo dos mistérios. Mas, para os cristãos, tem o gosto da esperança, (...) é apenas a porta de entrada para desfrutar com Ele a vida eterna no Reino do Pai. (...) Enquanto para todos os homens a morte é a única certeza absoluta, para os cristãos ela é a primeira de duas certezas; a segunda é a ressurreição que nos leva a aceitar o fim da vida terrena com compreensão e consolo”. Em suma, esperança.

O Cepa viveu melhor nesses 11 meses – de fato, na realidade, não apenas ‘potencialmente’ – pois teve o coração cheio de ESPERANÇA. Todos nós nos preparamos. Chegou a hora da sua festa.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Aos amigos Cepa e Laura


Cepa, meu amigo, sua mensagem foi linda. Pesada mas linda. Não soube como responder - e essa carta é uma tentativa -, mas não tive vontade de chorar. Já choramos demais ao longo do caminho. Sua mensagem nos traz serenidade e paz.

"Mas por que, Deus? Por que, Deus?". Não cabe essa pergunta. Essa vida nos é dada sem sabermos e nos é tirada sem pedirmos. Mas o que fazemos nela é o que define o que será depois da passagem. Lembro de uma frase que marcou minha infância pelo joguinho de palavras bestas, mas que foi criando sentido ao longo da minha vida: 'Quando você nasceu, você chorou e as pessoas ao seu redor sorriram; viva sua vida de modo que, quando morrer, seja você a sorrir enquanto os outros choram'. Por muito tempo, não tive medo de morrer; tinha medo, sim, de morrer com um velório vazio. Meu amigo: você cumpriu a missão. A energia que você deixa é o melhor que alguém pode fazer por aqui.

Quando conversamos pela primeira vez após a confirmação da doença, você me disse que, dias antes de descobrirem, você comentou com a Laura que sentia falta de certa espiritualidade. Aquilo ficou marcado na minha cabeça. Talvez, essa história tenha sido justamente para trazer essa espiritualidade, não só pra você, mas pra toda sua família. Do ponto de vista cristão, a boa vida é a que abre as portas para outros irmãos. Sua família viverá no Reino dos Céus, pelo sacrifício da sua vida. Literalmente. Isso é o mais perto que conseguimos da Imitação de Cristo. Parabéns, cara, você conseguiu. Você é um vencedor.

"Mas e a Laura? E a Marina? E a Bruna?". Meu amigo, elas vão sofrer. Pra caralho. Mas só sofre quem ama. E só ama quem quer a Verdade. E a Verdade é essa espiritualidade que você encontrou com elas. Elas vão passar e se tornar pessoas melhores. Até porque você vai estar presente no coração de cada uma delas. O tempo todo. Não sofra por elas agora. Damos os ombros uns aos outros, mas cada um tem a sua cruz. Assim como eu queria carregar um pouco dessa sua cruz pra te aliviar - e não posso -, você também não pode carregar essas cruzes que são delas. E se são delas é porque elas podem carregar.

      Por muito tempo achei que a ausência é falta.
      E lastimava, ignorante, a falta.
      Hoje não a lastimo.
      Não há falta na ausência.
      [Drummond]

Mergulhamos só umas 20 ou 30 vezes juntos e fico feliz em saber que você estará em todo e cada mergulho que eu fizer na vida a partir de agora. Não deixe de olhar por nós, por favor. E quando chegar minha vez, se eu for digno de ir pro Céu te encontrar, se der, por favor, venha me receber logo na entrada: tenho medo de não ser tão forte e tão bom como você.

Te amo, cara.
___________________

Laura, querida,
mandei uma mensagem pro Cepa, mas não paro de pensar em você. Ele parece sereno, em paz, e isso só é possível porque ele tem um anjo como você por perto.

No início do ano, numa crise de choro, fui rezar ainda mais intensamente. Era março, dia 19, dia de São José. E a história de São José caiu como uma luva para o que eu sinto por você. São José foi um santo "low-profile", um "ator coadjuvante". Estava sempre "à sombra" de Jesus e Maria, sempre servindo Jesus e Maria. Mas estava sempre ali. Numa pergunta que te fiz sobre VOCÊ por whatsapp ("E aí, como VOCÊ está?"), você respondeu sobre o Cepa. Você se esvaziou pra encher o Cepa. Você viveu pra servir o Cepa. Que belo dom é o dom do servir. Que linda história. Você deve ter chorado algumas vezes, num canto; um choro contido, escondido. Como São José. Você é o nosso São José.

Você tem uma grande cruz pela frente. Pode xingar Deus. Ele te entenderá e não vai se magoar. E vai te consolar. Mas lembremos que o "Seja Feita a Sua Vontade" do Pai-Nosso não tem condicionante; NÃO é "seja feita a Sua Vontade DESDE QUE não leve nosso Cepa". A fé é um modo de aceitar o que - TALVEZ - só faça sentido mais tarde. O Cepa estará mais presente do que nunca e mostrará suas marcas - vividas e sentidas - nos nossos corações, especialmente nos de vocês três.

Não tenha medo do futuro. De novo no Pai-Nosso, "o pão nosso de cada dia nos dai hoje". Não 'os pães do resto da vida nos dai hoje', nem mesmo 'o pão de amanhã nos dai hoje'. "Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará suas próprias preocupações. É suficiente o mal que cada dia traz em si" [Mt 6,34].

Não é tanto o que me dói que me assusta; mas o que pode doer. Os sábios reconheciam que o mais poderoso recurso da imaginação é o medo, que pode ser definido como uma mentira muito sofisticada. O medo não é a subversão de um fato ou evidência, mas uma mentira sobre o tempo. Ele não distorce a realidade em si, apenas o seu tempo. Em vez de olhar a realidade no presente, o medo faz com que a vejamos nas imagens projetadas sobre o futuro. Como o futuro ainda não existe, tudo aquilo pelo qual nos preocupamos está no território da mentira, produzido pela inventividade. O medo tenta neutralizar o elemento mais poderoso do corpo e que tanto o ameaça: a dor. Diferente do medo, a dor localiza-se no território da verdade, que é o agora. [Nilton Bonder]

Sejamos sinceros: 1. essa dor não vai passar. NUNCA. Vocês (nós) vamos nos acostumar com ela, mas essa dor sempre vai nos cutucar. Mas 2. APESAR DISSO, vocês vão ficar bem. Vão ficar pessoas ainda melhores.

Até o nosso dia chegar... E aí, o reencontro terá sabor de infinito.

Laura, você é um anjo. Continue iluminando quem passa pelo seu caminho.
Que São José, Protetor das Famílias, te acompanhe sempre. O Cepa estará junto.
(E eu quero também estar por perto)

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Essa vida...

Acho que chega um momento na vida de reflexão de toda pessoa no qual ela se pergunta ‘qual é a dessa vida...?’. Seja por uma tristeza pessoal muito grande, seja por uma sensação de injustiça generalizada.
Por que o mundo é ruim se Deus é bom?
Por que Deus permitiu a existência do Mal?

Pessoalmente, tive o pico desse sentimento ao longo desse ano. Estudei mais, entendi que essa não é uma Vida de Justiça, e sim de Misericórdia. Mas aí, veio um sentimento perigoso: o de ‘apequenamento’, de ‘desimportância’ dessa vida. Cheguei a conversar com uma grande amiga, baita psicóloga jungiana, que me apresentou o conceito de metanoia, a ‘crise de meia idade’, especialmente pra alguém que já se formou, já trabalha há bom tempo, já é casado, já tem 2 filhos... E agora, o que fazer desse ‘restinho de vida’ que me sobra? Procurei mais ajuda: conversei com um padre amigo, busquei outros sermões. Disseram-me: essa vida é tão importante que o Próprio Deus resolveu viver nela. 

E acho que cheguei numa resposta. [Tenho a impressão que esse é um tipo de pergunta-resposta que vai mudando ao longo de toda vida; tenho a impressão que vou reler esse texto no futuro e me sentir meio simplista...] Enfim...

Essa vida é como o dito popular: ‘seu caráter é o que você faz quando não tem ninguém olhando’. O Bem feito apenas para chamar atenção perde um pouco do Encanto. É auto-marketing, não o Bem em si. Como Jesus diz no Evangelho: quando jejuar, não fique com cara amarrotada mostrando sofrência; quando orar, não grite para ser ouvido; que a mão direita não saiba quando a mão esquerda doou... Se nos fosse dada a evidência do Céu e do Inferno, como distinguir quem faz o Bem porque simplesmente é Bom daqueles que fazem o Bem por mero medo do Inferno? Ou seja, essa vida é nossa oportunidade de mostrar se somos Bons por convicção, por crença, por simplesmente achar que o Bem é o Bem, independentemente da certeza de recompensas. Embora nossa fé diga, sim, que haverá recompensa: a vida eterna no Céu (vis a vis a vida pra sempre no Inferno).

O sofrimento, a tristeza, a resistência à injustiça são provações que temos que passar pra chegar lá.
E aí, sim, poderemos viver num mundo sem o Mal.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Rezar, esperar, agradecer

Faith means believing in advance what only makes sense in reverse. - Philip Yancey
No domingo, voltei pra casa pra fazer uma mala: minha esposa estava no hospital com minha filha, que seria internada por um problema respiratório. Sentei numa banqueta no banheiro, rezei, tentei controlar a respiração como na yoga e pensei: as próximas horas vão ser duras; que o tempo passe rápido e cheguemos logo na, sei lá, quarta-feira. Por várias vezes ao longo da vida, em momentos especialmente mais "reflexivos" - Natal, Ano Novo, diante de uma paisagem - fazendo aquele tradicional review do que vinha acontecendo, pedia a Deus para que eu conseguisse levar essa calma para os momentos de turbilhão. É fácil explicar uma história depois que ela passa; difícil é ter o discernimento para, na hora certa, facilitar a resolução e encaminhar melhor o rumo da história. Era o que eu estava tentando fazer ali. Mas, tolinho!, quarta-feira ainda seria cedo.

Helena acabou parando na UTI por longos 6 dias. A porra da merda do ciclo da doença tem seu pico no 5º~6º dia; isso significa que, ao contrário do que se espera quando se está num hospital, ela PIORAVA a cada dia. Poupando maiores detalhes, eu vi cenas fortes com minha filha (... uma vez vistas, jamais serão des-vistas...). A possibilidade de perder minha filha - pelo menos, na minha cabeça - foi bastante real. Nesse momento, diante de muitas crises de choro, lembrei da experiência de Abraão, que levando seu filho para o local da morte, mantinha a fé em Deus. Lembrei de 2 textos. O primeiro da peça "Alma Imoral", de Nilton Bonder:
Abraão caminha com o filho pelos montes de Moriah. No seu íntimo, a dúvida é terrível. Em determinado momento o filho lhe pergunta: “pai, onde está o cordeiro que oferecerás em holocausto”? Ele responde: “Deus o enviará, filho”. Ele não quer obedecer. Ele não quer desobedecer. E ele não obedece. E ele não desobedece. Porque ao colocar o filho entre os gravetos Abraão escuta um terceiro comando divino: “Não lance tua mão sobre o mancebo e não lhe faça mal”. Ao ouvir esse terceiro comando divino Abraão não trai nem a Deus e nem a si e ainda consegue legitimar a sua transgressão em relação à cultura como sendo a verdadeira vontade do seu Deus. O segredo de Abraão está na sua capacidade de não revolta. Na sua capacidade de manter um altíssimo nível de tensão interna e esperar. Esperar ouvir Deus desdizer. E ele ouve. Essa capacidade de ouvir Deus expressar uma vontade diferente da que inicialmente tinha revelado é a capacidade humana de legitimar e dar prioridade aos interesses da alma, munido de seu corpo moral. Abraão, assim, funda a história porque ele compreende, através do seu esforço, que seus comandos divinos lhe são internos, mas tão internos, tão internos, que vêm de uma superfície entre o eu e o não eu. Uma superfície em região tão profunda e sagrada que pode até ser simbolizada como o céu e o inferno.  Essa é a “terra prometida” com que Abraão sonha. Uma terra que não sacrifique os seus filhos.
O segundo foi "Temor e Tremor", de Soren Kierkegaard, que também versa sobre a angústia, a dúvida doída e calada de Abraão. Para isso, a fé:
A fé é a mais elevada paixão de qualquer homem. Talvez existam muitos homens de cada geração que não a atinjam, porém nenhuma vai mais além dela.
O único modo de encarar essa semana foi essa resignação absoluta, esse completo aceitar. Não procurar "entender" nem encontrar porquês.

Também foi importante separar a dor (real) do medo (potencial). Como nesses trechos de "Segundas Intenções", também de Nilton Bonder:
Não é tanto o que me dói que me assusta; mas o que pode doer. Os sábios reconheciam que o mais poderoso recurso da imaginação é o medo, que pode ser definido como uma mentira muito sofisticada. O medo não é a subversão de um fato ou evidência, mas uma mentira sobre o tempo. Ele não distorce a realidade em si, apenas o seu tempo. Em vez de olhar a realidade no presente, o medo faz com que a vejamos nas imagens projetadas sobre o futuro. Como o futuro ainda não existe, tudo aquilo pelo qual nos preocupamos está no território da mentira, produzido pela inventividade. O medo tenta neutralizar o elemento mais poderoso do corpo e que tanto o ameaça: a dor. Diferente do medo, a dor localiza-se no território da verdade, que é o agora.
Todo choro contém uma fração que não é de dor, mas de uma segunda intenção que quer controlar a dor. Para realizar isso, o ‘Eu’ tem como artifício transformar a experiência do acidente que causa a dor numa ameaça constante. O choro passa a existir por preocupação e por controle, não mais pelas consequências dolorosas do ocorrido, mas pela possibilidade dessa dor se repetir. No choro está o truque de transformar nossa impotência, o fato de que somos vítimas, numa forma falsa de potência e controle. Reagimos assim não só à dor, mas à injustiça da dor e à perda do privilégio que ela representa.
Minha filha está bem. Saímos domingo, presente de Dia das Mães. E, ex-post, todo esse medo pode parecer meio besta, claro. Mas, mesmo assim, sem dúvida, provocou uma transformação aqui dentro.

Não posso ser acusado de não valorizar as "pequenas coisas cotidianas", as sortes-bençãos que tenho na vida, como minha família. Valorizo e agradeço frequentemente. Mas, talvez, eu tenha aprendido a dar menos valor para outras coisas. Nessa semana, teve um problema grave na empresa, teve uma eliminação grave do meu São Paulo. Quer dizer, ... nada disso foi GRAVE MESMO...

Também percebi que não adianta tentar se antecipar muito às dores futuras, transformando-as em medos presentes. Meu grande medo é bandido, mas quem me deu susto mesmo foi um vírus. Difícil lutar contra o acaso...

E, falando em acaso, penso nas, sei lá, mais de 50 pessoas que passaram pela vida da Helena nessa semana: médicos, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, motorista de ambulância, secretária de internação,... Quantas avaliações, quantos pequenos procedimentos poderiam ter dado errado e...: não deram!

Toda minha vida parou. Fui só 2 dias ao escritório, sem ter dormido quase nada no hospital, claro. E foi extremamente difícil fazer qualquer coisa: o cérebro simplesmente não reagia. Também voltei a lembrar - na verdade, eu nunca tinha esquecido - da sorte-benção de ter esse trabalho flexível. Fiquei triste pelos que não tem essa sorte, inclusive funcionários da empresa.

Também tive muita ajuda da família nesse período. E quem não tem?...
Conversando sobre filhos & medos com uma amiga há algumas semanas, ela me disse: a experiência de ter filhos é uma prova de humildade, pois todos os dias eles desafiam nossas certezas. Helena desafiou muita coisa em mim nessa semana. Refleti bastante sobre a relação assimétrica entre pais e filhos: é uma relação de amor, claro, mas é uma relação assimétrica. O amor que emana dos pais é, sei lá, mais "ativo"; os atos de amor dos pais são silenciosos, contritos, quase que "não-reconhecidos"; é uma oferta de tempo, sono, preferências ... e que os filhos jamais vão perceber, não por maldade, mas por simples ignorância. Encanado como sou, imaginei tudo que meus pais fizeram por mim e eu não pude ou não soube reconhecer. De novo, fiquei mais triste.

Ficar na UTI por uma semana é uma experiência de humanização, um - como dizem - "BANHO DE POVO" (considerando que não fiquei num hospital ~TOP™, como falam os jovens). O drama de casos mais graves, de bebês ainda mais novos, de pacientes com longas permanências, de neuropatas, cirurgias punks... Enfermeiras que deixam filhos doentes em casa para cuidar dos filhos doentes dos outros... É tudo muito forte.

Mas tudo isso fortaleceu minha fé. Não pelo resultado positivo, claro. Mas pela experiência em si. Peço apenas mais 2 coisas: que todo esse sentimento não se enfraqueça em mim com o passar do tempo e que eu possa transmitir toda essa reverberação para outras pessoas.
"Eu creio mas aumentai a minha fé".

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Cartas a meus filhos

XI

Filhos,

Muito se tem dito sobre “pais ausentes”, nem tanto fisicamente, mas principalmente pela falta de autoridade e de propagação (não propaganda) de conhecimento.

Eu concordo com a tese. Acho que o mundo tem recebido muitos filhos pouco acostumados a ouvir “não”, muito mimados. Até pela influência dos nossos ascendentes – meu pai, meus avôs, bisavôs – muito disciplinadores, queridos e respeitados por toda família, tive a preocupação de dizer “nãos” pra vocês desde cedo. Lembro como fiquei “orgulhoso” quando o Pedro, ainda engatinhando, queria bagunçar na cozinha com a comida do Zig, mas voltava, obediente, quando eu dizia “isso não”.

Num desses dias, depois de um “não vá bagunçar a comida do Zig”, disse um “não brinque aí perto da quina” e talvez um “não rasgue os livros”... Foi então que a mamãe percebeu e me deu um toque: talvez devêssemos selecionar só alguns “nãos”. Foi a primeira vez que percebi talvez o maior dilema de ser pai: quando intervir? e quando deixar rolar?

Começou a passar todo um filme na minha cabeça das inúmeras vezes que meus pais sofreram por nós e que não puderam fazer absolutamente nada mais que assistir ao sofrimento: uma derrota doída nos nossos esportes, uma porrada amorosa, um vestibular ou uma prova de motorista. Você põe o filho no mundo e vê a vida bater nele.

Na verdade, às vezes, não é nem uma porrada da vida. É só uma dor de crescimento mesmo. Não adianta eu fazer o exercício de matemática pra vocês. Vocês vão ter que errar sozinhos.

E a angústia dessa carta é justamente porque vocês já começaram a nos oferecer algumas dúvidas sobre desenvolvimento, questões sobre esse “viés da intervenção”. Numa “Oração dos Fieis” que o vovô me entregou sobre a missão de ser pai, tem um item que fala um pouco sobre isso:


Rezo a Deus para que eu tenha a coragem, a competência e o conhecimento para intervir quando eu tiver que intervir; que eu tenha a serenidade e a mansidão para que deixar que vocês andem por conta própria quando tiverem que andar por conta própria; e que eu tenha a sabedoria e a inspiração de Deus pra reconhecer a diferença.

Amo vocês.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Cartas a meu filho

X

Filhos, já disse outras vezes: o crescimento do amor com o nascimento de vocês foi uma coisa mágica, gigantesca, mas veio acompanhado por um medo muito forte. O medo d’eu morrer. O medo de um de vocês morrer. O medo da mamãe morrer.

Um amigo do papai está com um desafio maior pra encarar esse medo. Um câncer pesado. Ele - como eu - tem 2 filhinhas - como vocês. A associação é óbvia. Não digo que a dor dele é a minha dor, porque simplesmente não é: ele é quem sente as dores e os enjoos do tratamento, não eu. Não posso dizer que sei o que ele sente. (A mamãe falou sobre isso outro dia: a diferença entre empatia e identificação). No entanto, o medo dele é o meu medo. O medo dele é a materialização do meu medo. Nesse ponto específico, estamos juntos.

Desde que ficamos sabendo dessa doença, filhos, muitas ideias relacionadas ao assunto me chegaram. Algumas por querer, outras nem tanto. Claro que meus olhos e meu coração estavam mais atentos pra essas mensagens. Li sobre métodos novos pra atacar as células ruins, por exemplo. Na missa passada, no Evangelho do Sermão da Montanha, aprendi que aquelas promessas de felicidade celestes são um convite para nossa esperança aqui nessa vida. Quem tem esperança já começou a ser um pouco feliz. E, essa semana, num livro que me apareceu, li essa pérola:
"Cavamos abismos quando já os temos dentro de nós. E eles surgem da nossa desesperança. É a desesperança que cava abismos. E o homem desesperado, quando não mais espera o que esperava, precisa encontrar o que não tem.  E o desespero, que está virtualizado no crente fiel, atualiza-se no homem que duvida. Cavam abismos os que duvidam."

Filhos, a esperança não é racional, é uma virtude. O mundo vai dar motivos, mas nunca percam a esperança.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

~Verdades~ goela abaixo


É impressionante a capacidade d’o Brasil criar ‘verdades’ ‘unânimes’. Em especial, as que atendem a pauta esquerdista.
Por muito tempo, o simples fato de não dizer ‘amém’ para o pensamento vermelho foi visto como deformação de caráter: ‘Nossa, como assim você não quer justiça social e paz mundial?????’.

Um assunto que veio à tona mais forte recentemente (talvez pelas loucuras do Trump, talvez pelos acertos do Brexit) é o multiculturalismo. Virou crime fazer cara feia para a miscigenação irrestrita dos povos e costumes. O ‘multiculturalismo é bom’ virou uma daquelas ‘verdades unânimes’. Sei...

Acho que a ideia antagônica ao multiculturalismo é ‘patriotismo’, soberania, respeito à cultura local, às tradições. Mas outro dia, perguntei pra uma amiga e ela respondeu ‘xenofobia e racismo’!!! Não é fácil acompanhar essa lógica.

Meu ponto é que, pro brasileiro, multiculturalismo significa ir à Vila Madalena e poder escolher entre o restaurante árabe, tailandês ou a velha e boa pizza. Não tem um vizinho com 12 esposas legítimas, não tem um imigrante ilegal empregado enquanto você está desempregado, não tem um cara na rua que explode porque a religião assim o manda. (O assassino brasileiro é gente como a gente. hehe)

O multiculturalismo assume que TODA miscigenação é boa. E isso é obviamente uma falácia. Sorvete é bom. Catchup é bom. Sorvete com catchup não é bom. ‘Ainnn, o brasileiro é um povo por definição miscigenado.’ É verdade. E o 'anti-multiculturalista' NÃO diz que NENHUMA miscigenação é boa. Mas provavelmente precisam ter alguns elementos em comum, algum nível de associação, alguma possibilidade de adaptação. Sorvete é bom. Caramelo é bom. Sorvete com caramelo é bom. Um homossexual nunca vai ser bem quisto numa cultura islâmica. Por definição.
E, claro, algum nível de respeito; um é o solvente, outro é o soluto. Uma mulher chegando na Arábia vai usar véu. Não é a árabe que vai passar a usar mini-saia em casa.

Ainda na linha das comparações bestas mas úteis, a fé cega no multiculturalismo é pensar em fazer um festival musical com hard rock e sertanejo no mesmo lugar. Não vai ser legal nem pra uns, nem pra outros. E essa constatação, por si só, não quer dizer que um seja melhor que outro. (Mas é importante notar que, sim, pra uns, um será melhor que o outro; e pra outros, o outro será melhor que o um.)
Um mundo todo adepto ao multiculturalismo seria um mundo todo igual, todo bege, todo chocho. Você não precisaria viajar pra Tóquio, Moscou, Tofo ou Jerusalém. Seria tudo a mesma coisa que a tua rua.

O interessante é que muitos adeptos do multiculturalismo não aplicam a teoria à sua própria vida (como, aliás, é típico dos esquerdistas). Um amigo ‘escandalizado’ com a ‘onda nacionalista ao redor do mundo’ é um agente ativo na sua associação de bairro. Há alguns anos, numa bela praça em declive bastante frequentada por crianças e cachorros, colocaram paralelepípedos no lugar das lombadas. Pelo jeito, eles não estavam muito a fim de miscigenar as crianças com os muitos skatistas que começaram a frequentar o local para aproveitar a inclinação da rua. Recentemente também fizeram uma grande reforma, com especial ênfase na iluminação. Também não acharam legal miscigenar a molecada com os nóinhas do escuro. Na teoria, a prática é outra.

Encerro com Dalrymple: o multiculturalismo é apenas mais uma faceta da estratégia esquerdista de fortalecer elos externos com o intuito de enfraquecer os elos internos da sociedade. Tem a mesma semente do trabalhismo e do ambientalismo, por exemplo.

É amar o sírio e tratar mal o próprio pai.

O Sermão da Montanha, a (in)capacidade de se mudar e a esperança como felicidade

O Evangelho da semana passada foi o Sermão da Montanha (Mateus, 5). Gosto especialmente desse trecho desde o curso de 1ª Comunhão, talvez pela estrutura lógica agradável à minha mente matemática: se fizer isso, então terá aquilo, se for pobre de espírito, então terás o Reino dos Céus, e assim por diante.

Existe um versículo nesse trecho que sempre me cutuca: os “mansos” herdarão a terra. Nunca me reconheço nele, e não evoluo de ano pra ano. É sempre um convite a esse difícil desafio.


Mas venho escrever sobre esse assunto por um outro motivo. Ouvi uma homilia que abre toda uma nova dimensão para esse Sermão. Jesus nos promete a felicidade, mas não nessa vida. Todos os “se’s” são dessa vida, todos os “então’s” são celestes. Uma conclusão possível seria desanimadora: ‘esquece!, nessa vida não haverá felicidades como no Céu!; desencana!’. Mas não. No tumulto da vida terrena, a promessa de felicidade celeste já nos enche de esperança. No exato momento em que o sujeito se recobre de esperança, ele já começou a ser feliz. A esperança é o aperitivo necessário para o banquete da felicidade.