quarta-feira, 27 de agosto de 2014

As vitrinas mandam

Outro trecho espetacular de 'A Rebelião das Massas', de Ortega y Gasset.

DINÂMICA DO TEMPO

AS VITRINAS MANDAM

     Dizem que o dinheiro é o único poder que atua sobre a vida social. Se olhamos a realidade com uma ótica de retícula fina, a proposição é mais falsa que verídica. Mas tem também seus direitos a visão de retícula grossa, e então não há inconveniente em aceitar essa terrível sentença.

     Entretanto, teríamos de lhe tirar e lhe pôr alguns ingredientes para que a idéia fosse luminosa. Pois acontece que em muitas épocas históricas se falou o que agora se fala, e isto convida a suspeitar ou que nunca foi verdade ou que o tem sido em sentidos mui diversos. Porque é estranho que tempos sobremodo diferentes coincidam em ponto tão principal. Em geral, não se deve fazer muito caso do que as épocas passadas disseram de si mesmas, porque - é forçoso declará-lo - eram mui pouco inteligentes a respeito de si. Esta perspicácia sobre o próprio modo de ser, esta clarividência para o próprio destino é coisa relativamente nova na história.

     No século VII antes de Cristo corria já por todo o Oriente do Mediterrâneo o apotegma famoso: Chrémata, chrémata aner! "Seu dinheiro, seu dinheiro é o homem!" No tempo de César dizia-se o mesmo, no século XIV o põe em circulação nosso turbulento tonsurado de Hita, e no XVII, Gôngora faz disso letras. Que conseqüência tiramos desta monótona insistência? Que o dinheiro, desde que se inventou, é uma grande força social? Isso não era necessário sublinhar: seria uma calinada. Em todas estas lamentações insinua-se algo mais. Quem as usa expressa com elas, pelo menos, sua surpresa de que o dinheiro tenha mais força da que devia ter. E de onde nos vem essa convicção, segundo a qual o dinheiro devia ter menos influência da que efetivamente possui? Como não nos habituamos ao fato constante depois de tantos e tantos séculos, e que sempre nos colhe de surpresa?

     É, talvez, o único poder social que ao ser reconhecido nos repugna. A própria força bruta que habitualmente nos indigna acha em nós um eco último de simpatia e estima. Incita-nos a rechaçá-la criando uma força paralela, mas não nos inspira asco. Dir-se-ia que nos sublevam estes ou os outros efeitos da violência; porém ela mesma nos parece um sintoma de saúde, um magnífico atributo do ser vivente, e compreendemos que o grego a divinizasse em Hércules.

     Eu creio que esta surpresa, sempre renovada, ante o poder do dinheiro encerra uma porção de problemas curiosos ainda não aclarados. As épocas em que mais autenticamente e com mais dolentes gritos se lamentou esse poderio, são, entre si, muito diferentes. Entretanto, pode descobrir-se nelas uma nota comum: são sempre épocas de crise moral, tempos muito transitórios entre duas etapas. Os princípios sociais que regeram uma idade perderam seu vigor e ainda não amadureceram os que vão imperar na seguinte. Como? Será que o dinheiro não possui, a rigor, o poder que, deplorando-o, se lhe atribui e que seu influxo só é decisivo quando os demais poderes organizadores da sociedade se retiraram? Se assim fosse entenderíamos um pouco melhor essa estranha mescla de submissão e de asco que ante ele sente a humanidade, essa surpresa e essa insinuação perene de que o poder exercido não lhe corresponde. Pelo visto, não o deve ter porque não é seu, mas usurpado às outras forças ausentes.

     A questão é sobretudo complicada e não pode ser resolvida em dois tempos. Só como uma possibilidade de interpretação vai tudo isto que digo. O importante é evitar a concepção econômica da história, que alheia toda a graça do problema, fazendo da história inteira uma monótona conseqüência do dinheiro. Porque é demasiado evidente que em muitas épocas humanas o poder social do dinheiro foi muito reduzido e outras energias alheias ao econômico informaram a convivência humana. Se hoje os judeus possuem o dinheiro e são os donos do mundo, também o possuíam na Idade Média e eram o excremento da Europa. Não se diga que o dinheiro não era a forma principal da riqueza, da realidade econômica nos tempos feudais. Porque, ainda sendo isto verdade e calibrando na devida cifra o peso puramente econômico do dinheiro na dinâmica da economia medieval, não há correspondência entre a riqueza daqueles judeus e sua posição social. Os marxistas, para adubar as coisas segundo a pauta de sua tese, menosprezaram excessivamente a importância da moeda na etapa pré-capitalista da evolução econômica, e foi necessário depois refazer a história econômica daquela idade para mostrar a importância efetiva que nos Estados medievais tinha o dinheiro hebreu.

     Ninguém, nem o mais idealista, pode duvidar da importância que o dinheiro tem na história, mas talvez possa duvidar-se de que seja um poder primário e substantivo. Talvez o poder social não depende normalmente do dinheiro, mas, vice-versa, se reparte segundo se acha repartido o poder social, e vai para o guerreiro na sociedade belicosa, mas vai para o sacerdote na teocrática. O sintoma de um poder social autêntico é que cria jerarquias, que seja ele quem destaca o indivíduo no corpo público. Pois bem: no século XVI, por muito dinheiro que tivesse um judeu, continuava sendo um infra-homem, e no tempo de César os "cavaleiros", que eram os mais ricos como classe, não ascendiam ao cume da sociedade.

     Parece o mais verossímil que seja o dinheiro um fator social secundário, incapaz por si mesmo de inspirar a grande arquitetura da sociedade. É uma das forças principais que atuam no equilíbrio de todo ofício coletivo, mas não é a musa de seu estilo tectônico. Pelo contrário, se cedem os verdadeiros e normais poderes históricos - raça, religião, política, idéias -, toda a energia social vacante é absorvida  por ele. Diríamos, pois, que quando se volatilizam os demais prestígios resta sempre o dinheiro, que, por ser elemento material, não pode volatilizar-se. Ou, de outro modo: o dinheiro não manda mais senão quando não há outro princípio que mande. 

     Assim se explica essa nota comum a todas as épocas submetidas ao império crematístico que consiste em ser tempos de transição. Morta uma constituição política e moral, fica a sociedade sem motivo que jerarquize os homens. Ora bem: isto é impossível. Contra a ingenuidade igualitária é preciso fazer notar que a jerarquização é o impulso essencial da socialização. Onde há cinco homens em estado normal produz-se automaticamente uma estrutura jerarquizada. Qual seja o princípio desta é outra questão. Mas algum terá de existir sempre. Se os normais faltam, um pseudo princípio se encarrega de modelar a jerarquia e definir as classes. Durante um momento - o século XVII - na Holanda, o homem mais invejado era aquele que possuía certa tulipa rara. A fantasia humana, fustigada por esse instinto irreprimível de jerarquia, inventa sempre algum novo tema de desigualdade.

     Mas, ainda limitando de tal sorte a frase inicial que dá ocasião a esta nota, eu me pergunto se há alguma razão para afirmar que em nosso tempo goza o dinheiro de um poder social maior que em tempo algum do passado. Também esta curiosidade é exposta e difícil de satisfazer. Se nos envaidecemos, tudo que acontece em nossa hora parecer-nos-á único e excepcional na série dos tempos. Há, entretanto, a meu juízo, uma razão que dá probabilidade clara à suspeita de ser nosso tempo o mais crematístico de quantos foram. É também idade de crise: os prestígios há anos ainda vigentes perderam sua eficiência. Nem a religião nem a moral dominam a vida social nem o coração da multidão. A cultura intelectual e artística é avaliada menos que há vinte anos. Resta só o dinheiro. Mas, como indiquei, isto aconteceu várias vezes na história. O novo, o exclusivo do presente é esta outra conjuntura. O dinheiro teve, para seu poder, um limite automático em sua própria essência. O dinheiro é apenas um meio para comprar coisas. Se há poucas coisas para comprar, por muito dinheiro que haja e por muito livre que se encontre sua ação de conflitos com outras potências, seu influxo será escasso. Isto nos permite formar uma escala com as épocas de crematismo e dizer: o poder social do dinheiro - ceteris paribus - será tanto maior quantas mais coisas haja para comprar, não quanto maior seja a quantidade do dinheiro mesmo. Ora bem: não há dúvida que o industrialismo moderno, em sua combinação com os fabulosos progressos da técnica, produziu nestes anos um cúmulo tal de objetos mercáveis, de tantas classes e qualidades, que o dinheiro pode desenvolver fantasticamente sua essência: o comprar.

     No século XVIII existiam também grandes fortunas, mas havia pouco para comprar. O rico, se queria algo mais que o breve repertório de mercadorias existente, tinha de inventar um apetite e o objeto que o satisfaria, tinha de buscar o artífice que o realizasse e dar tempo a sua fabricação. Em todo este intrincamento intercalado entre o dinheiro e objeto complicava-se aquele com outras forças espirituais - fantasia criadora de desejos no rico, seleção do artífice, trabalho técnico deste, etc. - de que se fazia, sem querer, dependente.

     Agora um homem chega a uma cidade e aos quatro dias pode ser o mais famoso e invejado habitante dela sem mais trabalho que passear ante as vitrinas, escolher os objetos melhores - o melhor automóvel, o melhor chapéu, o melhor isqueiro, etc. - e comprá-los. Caberia imaginar um autômato provido de um bolso em que metesse mecanicamente a mão e chegasse a ser o personagem mais ilustre da urbe.

     El Sol, 15 de maio de 1927.

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