sábado, 16 de agosto de 2014

O direito à continuidade

(...) o direito fundamental do homem, tão fundamental que é a definição mesma de sua substância: o direito à continuidade. A única diferença radical entre a história humana e a “história natural” é que aquela não pode nunca começar de novo. Köhler e outros mostraram como o chimpanzé e o orangotango não se diferenciam do homem pelo que, falando rigorosamente, chamamos Inteligência, mas porque tem muito menos memória que nós. Os pobres animais cada manhã esquecem quase tudo que viveram no dia anterior, e seu intelecto tem de trabalhar sobre um mínimo material de experiências. Semelhantemente, o tigre de hoje é idêntico ao de seis mil anos, porque cada tigre tem de começar de novo a ser tigre, como se não houvesse outro antes. O homem, pelo contrário, mercê de seu poder de recordar, acumula seu próprio passado, possui-o e o aproveita. O homem não é nunca um primeiro homem: começa desde logo a existir sobre certa altitude de pretérito amontoado. Este é o tesouro único do homem, seu privilégio e sua marca. E a riqueza menor deste tesouro consiste no que dele pareça acertado e digno de conservar-se: o importante é a memória dos erros, que nos permite não cometer os mesmos sempre. O verdadeiro tesouro do homem é o tesouro de seus erros, a extensa experiência vital decantada gota a gota por milênios...

Trecho de 'A rebelião das massas', de José Ortega y Gasset

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