domingo, 2 de julho de 2023

A exceção como política de Estado

Textaço do Fernando Schüler na Veja.
Destaco alguns trechos.

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Muita gente diz que o Brasil se tornou uma democracia pela metade. Um sistema que respeita a regra majoritária, alternância de poder, mas fragiliza garantias do estado de direito. De um lado, se diz que era preciso aceitar certos “excessos” do Judiciário, admitir a “experimentação regulatória”, na linguagem elegante do ministro Fachin, ou a censura em situação “excepcionalíssima”, como naquela decisão da ministra Cármen Lúcia. Tudo por um bom motivo. De outro, se diz que isto não passa de um exercício de autoengano. [...]


É precisamente aí que as coisas começam a mudar. Escrevi sobre tudo isso à época das eleições de 2018.[...] Para saber se nossos autoproclamados “democratas” estariam dispostos a reconhecer a legitimidade de um tipo de pensamento, valores e mesmo de uma estética diametralmente opostos a sua visão de mundo. Por óbvio, não estavam. 

[...] 


O inquérito das fake news foi aberto já em março de 2019. [...] Houve um solitário voto contrário do ex-ministro Marco Aurélio, dizendo que o “Supremo não é sinônimo de absoluto”. Suas palavras se perderam na poeira. A partir dali, assistimos a tudo que estamos cansados de saber. [...]. Depois disso, tivemos a virtual edição do debate eleitoral, a partir da tese elitista sobre a incapacidade do “eleitor ordinário” para lidar com a “desordem informacional”


Foi ao que assistimos. Acusar um candidato de corrupção? Só com decisão judicial. Lançar um filme? Só se passar pelo teste algo metafísico de “presunção de veracidade”, visto que nem sequer seu conteúdo era conhecido. No debate do PL das Fake News, as plataformas digitais foram duramente censuradas e impedidas de expor sua visão; um youtuber é banido, sem menção a lei alguma; um humorista é preso por meses, sob a mesma lógica da fraseologia seguida de pontos de exclamação, posta no lugar do direito. Muita gente acreditou na urgência de cada uma dessas atitudes, o que é em si mesmo um dado para nossa reflexão. Por que cargas d’água proibir a menção do sabido vínculo de Lula com ditadores latinos, como Maduro e Ortega, seria essencial à democracia? Qual a “grave ameaça” contida na discurseira do Monark, naquele tuíte do PCO ou das indagações do professor Marcos Cintra? O fato simples de que sempre foi perfeitamente falsa a oposição entre “respeitar direitos individuais” e “defender a democracia”.


Tudo isso vai muito além do tema da liberdade de expressão ou dos direitos individuais. A questão diz respeito ao próprio “equilíbrio na diversidade” [...]. O ponto é que a “exceção” se tornou política de Estado, no Brasil, e a questão é saber o impacto disso precisamente sobre a ideia de uma democracia inclusiva e aberta à expressão de nosso pluralismo político. E mais: se o que temos presenciado não é exatamente o que tantos temiam: nosso deslizamento para uma democracia de traços não liberais. Tipo difuso de autoritarismo fragilizando prerrogativas e direitos republicanos


[...] mesmo podendo-se identificar excessos por parte do Judiciário, “a maioria da sociedade parece estar relativamente satisfeita com o desenho atual” que concede ao Judiciário uma “macrodelegação” de poderes. Sua análise é realista: “o custo marginal da mudança tem sido maior do que o do status quo”. De fato, o Senado vem se recusando a exercer controle sobre a ação do Supremo, boa parte do sistema político parece satisfeita com o modelo de tutela, e há apoio da sociedade civil. Somos um estranho país em que “garantistas” apoiam prisões de ofício e todo jogo interpretativo do direito, desde que a seu gosto. E onde [ …] boa parte da mídia apoia a censura.


Processos de “autocratização” e fragilização de garantias individuais não raro ocorrem assim: com suporte majoritário e cálculo, que vai do apoio à passividade, na elite política. É o caso brasileiro. Censura e quebra de prerrogativas são aplicadas homeopaticamente, e a cada vez produzem mais recuo e medo. Quanto se produz de autocensura, no jornalismo, quando um jornalista tem seu passaporte retido? Quanto se “disciplina” um parlamentar, quando um colega é banido? E quanto aquilo que é inaceitável, em um primeiro momento, vai ganhando ares de normalidade? Um blogueiro censurado em 2019? Grave. Um humorista preso em 2023? Indiferença. 


[...] muita gente imaginou que havíamos enterrado o passado autoritário [...]. O fato é que não. [...] Andamos em um labirinto, cuja saída parece distante.


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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper


domingo, 26 de dezembro de 2021

Da Incerteza | por Lucas Lujan | em Aglomerados


Na maioria das vezes em que acreditei ter certeza, eu estava enganado. Senão todas. A cada diferente tomada de consciência do meu engano, a mesma tranca se abria para me libertar da cela. E, quase sempre, meu equívoco nem está na opinião em si, mas no pressuposto. A opinião é uma gota no oceano da proposição. Não raramente, meu tropeço está em assumir que todos estão dentro do mesmo oceano.

A certeza tem aparência libertadora porque tenta se passar por verdade. [...] e acaba escravizando os que estão mais inclinados ao princípio da autoridade. Na filosofia, grosso modo, existem dois princípios fundamentais: o da autoridade e o da autonomia. O princípio da autoridade estabelece que você deve confiar naquilo que um interlocutor com autoridade lhe diz para acreditar: pais e família, em geral, tradição, sacerdotes religiosos, livros sagrados. O princípio da autonomia estabelece que você deve confiar em si e em sua capacidade crítica e que, portanto, você deve reunir conhecimento suficiente para aprender a interpretar, julgar e escolher o que considera melhor. Os dois sempre me pareceram necessários, mas, com o tempo, entendi que só são necessários quando andam juntos, repartindo seus caminhos. Quando o princípio da autoridade tenta se sobrepor à autonomia, ele não se torna apenas desnecessário, mas abjeto. Geralmente, assume formas totalitárias, cheias de vigor, apenas para mascarar a covardia de sentir medo diante do desconhecido. Logo, essa versão doente do princípio da autoridade conquista os corações mais medrosos que precisam de uma resposta definitiva para as suas dúvidas. Esses são as presas fáceis e dóceis da verdade, que nem precisa de esforço para capturá-los: eles se entregam para a morte sem suar uma só gota de sangue. A certeza, de uma forma ou de outra, logo descamba para um autoritarismo perigoso, daqueles que sempre precisam dar a última palavra. Por sinal, é assim que se reconhece uma pessoa assenhorada pela certeza: ela sempre precisa encerrar a dúvida.

O prisioneiro não se dá conta da prisão até que seu equívoco o leva para um beco sem saída da racionalidade, uma vez que as grades que o cercam não são concretas, mas intelectuais. Sua cela só ganha contornos objetivos quando a certeza já não é mais capaz de imitar a verdade - o que sempre acontece, porque, convenhamos, a verdade não é coisa tão assimilável. Hora ou outra, a certeza falhará.

Essa falha é a falha fundamental, porque pode desfazer a ilusão que a todos nós já enfeitiçou. Quando tomo consciência de que, algemado pela certeza, falhei ao sustentar um equívoco como verdade, descubro que não sou perfeito. Percebo que minha inteligência é mediana e que não tenho qualquer privilégio na compreensão sobre a realidade. Sou como a maioria das pessoas, todos já fomos encarcerados por alguma certeza sedutora e, provavelmente, estamos enjaulados por outra, neste exato momento. [...] O método que a certeza usa para aprisionar é esse: dizer que você é mais inteligente do que a média, até te convencer. Não seja convencido. Qualquer palavra que inflame o seu ego é suspeita e pode te matar.

[...]
Mas nem toda admiração é válida. Sujeitar-se ao cárcere da vaidade para ganhar aplausos tornará você alguém duplamente escravizado, pela certeza e pelo ego. Nada restará de sua autonomia, estará subjugado pela certeza de que a aprovação da multidão é suficiente para alimentar a necessidade de aprovação que seu ego lhe impõe. Agora você estará acorrentado por todos os lados.

A verdade tem um jeito mais elegante de se apresentar. Ela revela que não sou capaz de compreender todas as coisas, e esta é a única constatação que preciso para ser livre.

[...]. A minha projeção otimista se revelou suspeita. É provável que eu tenha escolhido o otimismo porque ele é bem aceito pela maioria. Parece-me que as pessoas preferem as palavras alegres, que contornem expectativas felizes, onde tudo ficará bem. Frases como "vai passar". Isso vai passar. Vai? A mim, parece que nem tudo passa. A ideia de superação me soa mais como propaganda do que como realidade. Enfim, talvez eu tenha escolhido o lado otimista para não ser o cavaleiro do apocalipse. Ou para agradar à minha mãe. Ou para forjar confiança no espírito da minha esposa. Ou para ganhar likes. Não sei. Hoje vou dormir abraçado com a incerteza.

[...]. Projetar as diversas possibilidades me afasta da ilusão pueril de que vivemos em um mundo bom, de pessoas boas. Eu, pelo menos, não vivo. Até aqui, o mundo tem se mostrado hostil para mim [...] Poderia argumentar que, então, resta confiar, se não na bondade, na decência. Parece-me, contudo, que o equívoco seria semelhante, porque, no fundo, o equívoco está em confiar. Se estou em uma realidade onde a verdade não se manifesta de maneira clara, o melhor é suspeitar. [...]

Duvido. A dúvida é espaço vazio. O vazio pode até soar triste, mas não é. O vazio tem a virtude de não esgotar. O que está vazio permanece aberto para as possibilidades. No vazio cabem as hipóteses e é melhor lidar com elas do que com as convicções. Na convicção nada de novo nasce. O vazio é a parte do meu quadro de referências que permanece em branco. Não há nada anotado ainda, mas há espaço para novas anotações. Quanto universo ainda tenho para descobrir!

Dúvida é o bolo levado ao forno. O cozinheiro lida com a hipótese de que se todos os ingredientes tiverem sido corretamente acrescentados e o modo de preparação tiver sido bem observado, o bolo crescerá. Uma hipótese que será testada pelo tempo. Pelos minutos que o bolo aquece no forno, tudo o que há é a incerteza.

Dúvida é o pescador que sai para trabalhar. Ele lida com a hipótese de que se estiver no horário correto, com as iscas bem preparadas e se tiver observado com atenção as condições do tempo, conseguirá peixes. Uma hipótese que será testada pelo tempo. Entre o barco vencer a arrebentação e chegar em alto mar, tudo o que há é a incerteza.

Se ambos estiverem assenhorados pela certeza, convencidos de que são melhores do que os demais, é muito provável que não cuidarão bem das condições e fracassarão, e sobrará apenas o lamento dos prisioneiros. Se seus quadros de referências estiverem terminados, nada poderão aprender de novo, nem mesmo com a frustração.

A vida é a incerteza do bolo; é a hesitação do mar.

[...]
Dúvida é uma relação amorosa, como um casamento. Duas pessoas repartem o tempo e a morte porque lidam com a hipótese de que se amam. Oferecem ao outro o que têm de melhor, cuidado, afeto, e cultivam o terreno para terem frutos. Uma hipótese que será testada pelo tempo. E nem mesmo o primeiro enterro desfará a incerteza.

[...]
Há, entretanto, as hipóteses pelas quais vale a pena morrer. Todas elas oferecem a bonita proposta de viver em plena insegurança. Essa é a melhor forma de reconhecê-las. [...] Antes, desconfiam das próprias impressões e suspeitam de si o tempo todo, permanecendo em constante revisão, evitando, a todo custo, o encantamento da certeza.

A dúvida do viver não pode ser paralisante. Isso daria mais espaço ao medo do que ele merece. Uma dose de medo é boa, mas duas podem te embriagar, anestesiar e confundir a sua percepção da realidade. A incerteza não impede o cozinheiro de se arriscar no forno; não impede o pescador de se arriscar no mar; não impede que pessoas se arrisquem em casamentos. Nelas, há uma força ativa, potente o suficiente para enfrentarem o desconhecido, não sem medo, mas com coragem. Essa coragem é obtida não pela ausência do medo, mas em resposta a ele. É um grito da autonomia que não aceita o encurtamento de sua liberdade. É um assimilar do tempo e da morte. E perceber que, dada a brevidade da vida, a única urgência é que não seja em vão.

Aqueles que não se deixam encarcerar, nem pela certeza, nem pelo ego e nem pelo medo, são os que fazem apostas. Não o fazem movidos pela certeza da proposta, mas pela beleza que enxergam nela.

Eu, que sou um medroso, mas não um covarde, tenho a minha aposta. Uma só. Eu aposto que só o amor pode dar sentido à vida, porque é só o amor que torna a vida amável. [...]

Amo, mas sem convicções. Meu amor está mais ocupado com amar até o fim do dia do que em amar eternamente. A eternidade é uma abstração, é lugar nenhum e, portanto, é quase uma covardia jurar amor eterno. Eu prefiro as juras de amor diário, daquelas que se renovam durante o jantar.

[...] O amor pressupõe liberdade porque ninguém pode amar por obrigação, só voluntariamente. E, onde há liberdade, há risco e insegurança, porque a porta está sempre aberta para o outro poder sair quando desejar e só retornar se quiser. Quem ama de portas fechadas não tem um afeto, tem um escravo. E quem ama com segurança inabalável está escravizado pela certeza romântica, tal qual está a princesa na torre de marfim, à espera de seu príncipe redentor, que a amará para todo o sempre, até o fim dos dias.

Amo, não com a certeza do para sempre, mas com a hesitação do mar, com a incerteza do bolo. Sei que pode dar muito errado, então saio para pescar com o zelo do pescador, porque preciso amar para sobreviver. Amo com o cuidado do cozinheiro, porque quero servir o amor e reparti-lo à mesa.

Amo, não para dar certo, mas porque é bonito. Tudo o que amei virou saudade e sentir saudade é a única garantia que tenho de que minha vida valeu a pena, porque, se pudesse, eu viveria todas as minhas saudades de novo. Nem sempre é possível reconhecer a felicidade quando a olhamos de frente, mas sempre sabemos quando e onde fomos felizes, por causa da saudade. Note que a felicidade do peixe não é um acidente, assim como não o é o bolo que cresceu. O pescador e o cozinheiro trabalharam e se dedicaram em criar as condições para a felicidade advir.

Amo, porque aprendi a aceitar a incerteza do amar. Não me sinto inseguro em sua insegurança, tendo em vista que a segurança é sempre uma miragem. Sinto-me vivo e isso me basta. Tenho a impressão de que, amando, todo dia que passa é um dia a mais. Mas não tenho certeza.

[...] Desconfio de todas as minhas hipóteses, que já não são muitas. Ainda que confinado, entretanto, me sinto mais livre. Desde que me deitei em minha cama, estou me libertando de precisar saber como será amanhã, eu não sei. Na medida em que me desfaço das previsões, sinto o peso da bola de ferro se esvair. Eu prefiro o amor e, no amar, sempre há imprevisibilidade. Não sei como será, mas sei como gostaria de ser. Talvez a pandemia mude o mundo. Talvez o melhore. Talvez o piore. Ou, talvez não mude nada. Isso não está no meu controle. O que posso fazer é apostar em mim: apostar que eu não serei o mesmo depois disso. E aposto em mim por amor.

Porque vivo com dúvidas, mergulhado em incertezas, imagino que muitos outros também vivam assim. Portanto, posso ser mais paciente. Posso ser mais compassivo. Posso me esforçar para ouvir mais as inseguranças alheias e posso falar menos sobre as minhas certezas - afinal, não é porque estou preso que preciso trazer o outro para dentro da minha jaula.

[...]
Não me julgo livre. Não abraço esse tipo de ilusão. Sei que estou cercado de grades que permanecem invisíveis, mas que se manifestarão com o tempo. Essa é a incerteza por excelência: desconhecer o número de celas que me restam para escapar.

Se eu estiver equivocado em absolutamente tudo, mas cheio de amor, não terá sido em vão, porque, amando, aposto que encontrarei a chave de cada prisão que sufoca a minha existência. E o que importa não é ter razão, é ser livre. Mas essa é só mais uma hipótese, que se confirmará com o tempo. Até o último dia viverei em dúvida, que cessará não pela descoberta da verdade, mas por meu estado de inconsciência. A morte é a última libertação do saber.

Estou confinado há meses, mas me libertando das certezas. [...] Não estou feliz, mas com uma mão eu preparo a massa do bolo e com a outra, onde se destaca a minha aliança de casamento, seguro as iscas e uma vara de pescar.

sábado, 14 de novembro de 2020

Quando tudo isso acabar...

De madrugada, minha filha vai à minha cama e deita abraçadinha, com medo de algum sonho. Sorrindo, abraçados, eu penso: quando a vida acabar, o Céu deve ser assim. Aí, sim, a vida vai ser leve.

Com os riscos no emprego anterior, dependências perigosas, eu pensava: quando eu sair, vou largar um peso. Aí, sim, a vida vai ser leve.

Estressado no trabalho atual, riscos em todas as frentes, eu penso: quando tudo isso acabar, vou pra roça. Ou pra Montevidéu, com a família da esposa. Aí, sim, a vida vai ser leve...

Emputecido com o ‘novo normal’ enjaulado, eu penso: quando o vírus acabar, aí sim, a vida vai ser leve...

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Foi comum em toda a minha vida, imaginar meu velório. A princípio, parece mórbido. Mas é apenas uma simbologia para ‘ver a própria vida de fora’, sair da pista e ir pro camarote, ver a ~big picture~. Raras as vezes que tive a auto-percepção de que não poderia morrer naquele momento porque ainda tinha algo a ser feito. Não. Acho que vivi de forma que, a qualquer momento que eu morresse, o caminho até aquele momento estava completo, bem traçado, sem pendências, sem necessidades de acertos de contas.

Acho que é uma boa definição de “felicidade” ou de “bom combate”. Mas não de “leveza”.

Assunto recorrente nas minhas auto-reflexões e terapia, esse fardo excessivo que carrego. E o ponto é que talvez eu não precisasse. Como mudar? O terapeuta diz que eu me estressaria na roça, porque a vaca deu 5 litros de leite ao invés dos 6 programados.

Impressão é que sempre estou na contagem regressiva para passar a fase em questão.

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Eu tenho um pouco de desprezo por algumas pessoas que vivem sabáticos constantes, viajando pelo mundo todo. Minha impressão é que estão apenas fugindo de si mesmos. Mas, numa auto-análise, eu não sou muito diferente. A diferença é que estou sempre fugindo do “agora”. Mas, embora a ansiedade seja pelos riscos do futuro, é lá, depois da arrebentação, que a vida vai ser leve.

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Eu acho que sofro de excesso de ‘memento mori’. Sei que vamos todos morrer e talvez eu queira chegar logo lá. É só lá que a vida é leve. 

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

O único problema filosófico realmente sério

Por questões pessoais (casos próximos, hesitações, esposa se especializando no tema) e por interesse filosófico (li alguns pensadores que falam sobre), o tema do suicídio me é próximo. 
No mês de alerta ao tema, resolvi mapear algumas frases. Se você não está se sentindo bem, converse com alguém. Você faz falta.
ACamus
“Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia.”

GKChersterton
“O homem que mata um homem, mata um homem. O homem que se mata, mata todos os homens; no que lhe diz respeito, ele elimina o mundo.
(...) “O ladrão se satisfaz com diamantes; mas o suicida não: esse é seu crime. (...) O suicida insulta a todos os objetos da terra ao não furtá-los. Ele conspurca cada flor ao recusar-se a viver por ela. (...) Obviamente pode haver patéticas desculpas emocionais para o ato. Geralmente as há para o estupro, e quase sempre para o atentado a bomba. (...) O crime desse homem é diferente de outros crimes — pois torna até os crimes impossíveis.”
Li uma solene bobagem de algum livre-pensador. Dizia ele que um suicida era simplesmente o mesmo que um mártir. A patente falácia desse texto ajudou-me a esclarecer a questão. Obviamente um suicida é o oposto de um mártir. Um mártir é um homem que se preocupa tanto com alguma coisa fora dele que se esquece de sua vida pessoal. Um suicida é um homem que se preocupa tão pouco com tudo o que está fora dele que ele quer ver o fim de tudo. Um quer que alguma coisa comece; o outro, que tudo acabe.
VFrankl
“A maioria se preocupava com a questão: 'será que vamos sobreviver ao campo de concentração? Pois caso contrário todo esse sofrimento não tem sentido'. Em contraste, a pergunta que me afligia era outra: 'Será que tem sentido todo esse sofrimento, essa morte ao nosso redor? Pois caso contrário, afinal de contas, não faz sentido sobreviver ao campo de concentração.' Uma vida cujo sentido depende exclusivamente de se escapar com ela ou não e, portanto, das boas graças de semelhante acaso – uma vida dessas nem valeria a pena ser vivida.


quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Ao Dinho

Dinho não deveria andar de bicicleta, Dinho não deveria dirigir, Dinho não deveria beber cerveja, Dinho não deveria fazer tantas cirurgias. Dinho não deveria viver mais que alguns meses: Dinho viveu por mais de 40 anos.

"Não sabendo que era impossível, foi lá e fez." (Mark Twain)

Dinho se libertou... Pode cair... Pode beber... Não tem mais curativos pra fazer.

Às vezes, queremos ver levitações, mares se abrindo, milagrinhos inúteis, como se Deus fosse um curandeiro. E - cegos infieis - não percebemos o milagre que foi Deus permitir o Dinho por tanto tempo entre nós.

Impossível falar do Dinho sem falar de todos que o cercaram, especialmente a Cida. Lembro dela quando leio sobre o sentido da vida. "O propósito da vida é encontrar o maior fardo que você pode suportar - e suportá-lo”, diz Jordan Peterson. “O dever, por mais tedioso ou doloroso que pareça, é o único sentido da vida”, diz Olavo de Carvalho. Talvez esteja tudo resumido em uma das mensagens centrais do Evangelho: viver é servir. E a Cida serviu. Dia e noite. Incansável. Por mais de 40 anos. Guerreira. Santa.

A história do Dinho e da Cida também me fazem lembrar da passagem de Santo Antão no deserto. Após lutar por muito tempo contra o demônio, ele suplica: “Senhor, onde estavas? Por que não viestes antes para me salvar?”. Jesus responde: “Eu estava aqui o tempo todo, Antão. Mas eu queria te ver lutar”. Diante de uma luta cotidiana, inglória, sem possibilidade de regressão da doença, o Dinho e a Cida lutaram. Eles carregaram suas cruzes, ele choraram; mas serão consolados. (Mt 5;4)

Nesse momento difícil, rezo também por todos os acometidos por doenças raras. E também – talvez principalmente – pelos seus pais. Pais que, na gravidez ou no parto, tiveram uma notícia inesperada e tiveram que mudar todos seus projetos, seus sonhos. Que carregam suas cruzes, muitas vezes sozinhos, muitas vezes sem saber o caminho. Que eles encontrem luz e força. Deus quer vê-los lutar.

Rezo também pelo Rodrigo. Um cara especial que, desde criança, soube se colocar com muito amor como o “outro” filho. Uma tarefa muito difícil para todos nós, desejosos do carinho e da atenção de nossas mães. 

O melhor que podemos esperar dessa vida é conseguir trilhar algum caminho de santidade, sendo exemplos para outros. O Dinho, a Cida e o Rodrigo são exemplos pra nós. Que aprendamos com eles.

Termino com um trecho de Shakespeare:

"Seria odiá-lo mantê-lo mais tempo na roda de tortura que é este mundo. (...) E é espantoso que tenha resistido assim; VIVEU MUITO ALÉM DA PRÓPRIA VIDA." (Rei Lear, Shakespeare, na tradução de Millor) 

Um brinde ao Dinho!


sábado, 18 de maio de 2019

Essa quadra



Essa quadra definiu minha vida.

24 anos depois de ter pisado aqui pela primeira vez, volto para assistir a meu sobrinho. Dessa vez, na arquibancada ‘do lado de lá’.

Essa quadra definiu minha vida. Aprendi a ganhar e perder. Aprendi a ser protagonista (de vez em quando) e ser coadjuvante (quase sempre).

Impossível não lembrar daquele 2x1 contra o Corinthians, em que o goleiro Rubinho, irmão do Zé Elias, por pouco não quebrou minha coluna. Joguei demais aquele dia. Daquele 4x0 no Ypiranga, com a rivalidade contra o Cacá, moleque bom de bola, que eu soube depois que morreu cedo. Enfrentei o irmão dele – Neto ou Junior, algo assim – mais tarde, pela Poli contra a Paulista. Ele nem deve saber quem sou eu, mas eu tenho esse mau hábito de ter boa memória. Daquele 5x1 na Portuguesa. Aquela vitória contra a GM, provavelmente o meu melhor jogo da vida. Aquela pancadaria contra o Rolamentos... Cheguei a treinar mais de 20 horas por semana nessa quadra...

Quem olha esse gordo, careca, estressado, nem imagina que fui um capitão equilibrado. Nem imagina que já fui bom nisso. Nem imagina que já fui bom em alguma coisa...

Essa quadra me deu amigos até hoje. (Outros malquistos, é verdade.)

Essa quadra me deu professores. Professor Buzina, Professor Wagnão. Pqp, que saudades. Marcinho, Claudinho,... Edson Negão, melhor massagista (“““fisio”””) desse mundo. Pqp, que saudades.

Nessa quadra, Vô, o roupeiro, jogou a 13 pra mim pela primeira vez, número com o qual joguei pelo resto da vida e até hoje está na minha assinatura.

Essa quadra me permitiu abandonar a Olimpíada Brasileira de Matemática, da qual era ‘obrigado’ a participar pela bolsa escolar.

E ele sempre lá, me assistindo. Seja aqui no CMSP, seja na AABB, seja aqui no CMSP, seja no Portuários de Santos, seja aqui no CMSP, seja no Ceret, seja aqui no CMSP, seja na Federação... Meu pai estava sempre lá, na arquibancada. Nem sempre fui titular, nem sempre joguei bem, nem sempre dei orgulho pra ele – a rigor, poucas vezes – mas ele sempre lá. Isso definiu minha infância e adolescência. Minha família não podia viajar, não podia fazer outra coisa; não podíamos nada além de jogar futsal todo final de semana.

Cheguei tantas vezes com meu pai. Hoje chego com meu filho. Ele não tem ideia que essa quadra definiu minha vida.

Essa quadra me impôs uma decisão: ‘e aí, vai continuar comigo ou vai estudar?’. E eu a abandonei...
(Na verdade, a princípio, só a troquei por outras. Essa quadra me permitiu ter momentos inesquecíveis lá no CEPEUSP, lá na FUPE, lá em Santa Bárbara do Oeste, Pindamonhangaba ... É verdade que vesti mais a camisa azul-e-amarela da Poli do que essa aqui do CMSP, mas a origem está aqui. )

Sim, foi um abandono. Foi aqui que larguei o sonho de todo moleque – ser um jogador de futebol – para ser alguma outra coisa. Não sei ainda o que me tornei, o que sou ou o que serei, mas alguma coisa não-jogador-de-futebol.

Tudo que existiu jamais deixa de existir.
Essa quadra sorri pra mim e eu sorrio de volta.
Essa quadra definiu minha vida.

terça-feira, 26 de março de 2019

O que há de errado com o mundo?







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A resposta de Chesterton pode ser considerada arrogante – como se acha tão importante? – mas dadas sua história e sua mensagem, acredito que se trata da humildade de autorresponsalização e busca da verdade.

Num mundo perdido, a pergunta volta a nos atormentar. Onde foi que erramos? Não tendo a evolução espiritual de um Chesterton, sugiro 3 possibilidades.

1. NOBLESSE (SANS) OBLIGE
Historicamente, à classe dominante era permitida alguma espécie de ‘vida boa’ COM A CONTRAPARTIDA de algum tipo de sacrifício: ‘a nobreza obriga’. (Ir para guerra, por exemplo). Com o materialismo das últimas décadas (e o consequente distanciamento de qualquer tipo de espiritualidade), as obrigações (morais) das elites deixaram de ser necessárias ou, talvez, ‘exigidas’. A ruptura da tensão entre o prazer e o sacrifício rompe também o sentido de vida dessa nobreza, que passa a se sentir culpada. (Um bom teste é perceber a diferença de acepção de mundo entre ricos que nasceram ricos – ‘sem sacrifícios’ – e de ricos que se tornaram ricos ao longo da vida). Acredito que todo esse discurso vazio de “qualquer coisa--social" é mera tentativa de expiar a culpa, aquela consciência de ter uma vida boa sem ter feito nada para isso, uma "muleta para autoestima".



Olavo de Carvalho faz essa análise de forma brilhante no seu texto ‘Fórmula para enlouquecer o mundo’, do qual separo alguns trechos aqui.

2. CONTROLE DOS IMPULSOS
Certa vez, numa homilia, o padre desafiou: precisamos decidir se vamos seguir Cristo – desafiando as tentações do Diabo – ou se vamos seguir Freud – para quem, todo desejo reprimido volta na forma de algum trauma ou coisa do tipo. Achei interessantíssimo, mesmo para não religiosos e não psicanalistas. Não tenho certeza se o culpado é Freud mesmo, mas sem dúvida alguma, o mundo moderno (e suas ‘ressignificações’) mudou o conceito de liberdade para uma mera ‘ausência de restrições’, uma coisa bem tribal, como Roger Scruton detalha em seu ‘As vantagens do pessimismo’. A civilização é JUSTAMENTE controlar os impulsos para o bem do todo. A ideia vigente de fazer o que der na telha é um convite à barbárie, um passo pra trás na história. É evoluído controlar os impulsos; seu oposto é uma tribo ou uma  geração frustrada e mimizenta.
3. DIREITOS E CARIDADE
É óbvio, mas obviedades precisam ser ditas: quando alguém ganha um direito, alguém ganhou um dever (normalmente a ‘sociedade’). Um mundo com excesso de direitos é um mundo com excesso de deveres. Mas o problema aqui é que, como Richard Weaver mostra em seu ‘Ideias tem consequências’, a noção de direitos invadiu a noção de caridade. Relações saudáveis através da caridade passam a ser negativas com a obrigatoriedade do dever/direito.




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O que talvez essas características tenham em comum é o FINGIMENTO, quase que uma busca pelo auto-engano. Dostoevsky já nos ensinou isso em Irmãos Karamazov:

“Above all, don't lie to yourself. The man who lies to himself and listens to his own lie comes to a point that he cannot distinguish the truth within him, or around him, and so loses all respect for himself and for others. And having no respect, he ceases to love.”


Quero fechar, voltando à resposta de GK Chesterton: cada um precisa lutar consigo para não virar um filho da puta. O resto é mentira e ilusão. (Lucas Mafaldo)
Roger Scruton também concorda com isso:


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