(...) o direito
fundamental do homem, tão fundamental que é a definição mesma de sua
substância: o direito à continuidade. A única diferença radical entre a história
humana e a “história natural” é que aquela não pode nunca começar de novo.
Köhler e outros mostraram como o chimpanzé e o orangotango não se diferenciam
do homem pelo que, falando rigorosamente, chamamos Inteligência, mas porque tem
muito menos memória que nós. Os pobres animais cada manhã esquecem quase tudo
que viveram no dia anterior, e seu intelecto tem de trabalhar sobre um mínimo
material de experiências. Semelhantemente, o tigre de hoje é idêntico ao de seis
mil anos, porque cada tigre tem de começar de novo a ser tigre, como se não
houvesse outro antes. O homem, pelo contrário, mercê de seu poder de recordar,
acumula seu próprio passado, possui-o e o aproveita. O homem não é nunca um
primeiro homem: começa desde logo a existir sobre certa altitude de pretérito
amontoado. Este é o tesouro único do homem, seu privilégio e sua marca. E a
riqueza menor deste tesouro consiste no que dele pareça acertado e digno de
conservar-se: o importante é a memória dos erros, que nos permite não cometer
os mesmos sempre. O verdadeiro tesouro do homem é o tesouro de seus erros, a
extensa experiência vital decantada gota a gota por milênios...
Trecho de 'A rebelião das
massas', de José Ortega y Gasset
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