domingo, 29 de novembro de 2015

O presente de um amigo

Numa homilia recente, com o tema de alguma coisa triste, o padre falou sobre a “necessidade de sentirmos a dor”, um instrumento pra facilitar a empatia com os irmãos (e “pra simular a experiência de Cristo”).


Eu não tinha tido competência pra colocar assim em palavras, mas era mais ou menos isso que eu sentia quanto estava com o Kiko: de alguma maneira, ele tinha “se sacrificado” – limitado a poucos movimentos de alguns dedos e pescoço – para nos ensinar. A experiência com o Kiko era sempre assim: ele me passava muito mais coisa boa do que eu conseguia dar pra ele.



Kiko morreu há 2 anos, meio de repente. Mas não parou de nos dar lições. Ontem, por meio de um trabalho brilhante dos seus pais, Sofia e Edi, e da sua prima, Helena, recebi(emos) um dos melhores presentes da vida: 2 livros com os textos do Kiko.


A mensagem de esperança não poderia vir (a mim) em melhor hora. Foi um ano de perdas dolorosas e com muita angústia no meu coração. Uma amigona em comum, a Ana, deve dizer que é sincronicidade. Egocêntrico, vou concordar.


Kiko, sua passagem em minha vida foi e é uma dádiva. Obrigado pelo tempo juntos e por suas palavras, que agora, mais que nunca, estão eternizadas.


Foto no Facebook do seu pai, Eduardo Haberland

PS: Fale aí com o Homem pra dar uma atenção especial ao nosso SPFC, que a coisa por aqui tá feia...  ;)

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Moral e a busca da Verdade

Há algum tempo (décadas?), a palavra ‘moralismo’ passou a ter uma conotação negativa. Essa interpretação faz parte da Guerra pela Linguagem, que, por exemplo, George Orwell tanto fala em 1984, e da Hegemonia Cultural, que Antonio Gramsci pregava. Passou a significar cagação de regra, algo antiquado, obsoleto. E, claro, não é isso.

Existem definições formais elegantes (conjunto de normas aceitas, conjunto de costumes,...), mas o ponto fundamental é que a moral é o elo, é a liga que deixa uma sociedade coesa. Não existe sociedade pacificada em que não haja uma base moral bem aceita e respeitada. É uma coisa construída ao longo do tempo e, justamente por isso, não é algo que ‘se impõe’. Mas, claro, a força de um movimento contrário, de uma ‘contra-base’ moral (que – notem – não é amoral, mas, sim, possui OUTRA base moral) pode enfraquecer a base moral da sociedade. Isso não deve terminar com uma ‘substituição da base moral’, mas sim, com um enfraquecimento da moralidade como um todo, constituindo uma sociedade não-coesa, cada um por si, cada um com seu porrete.
"Há muitas moralidades. Se cada um pretender afirmar a sua, é bom sairmos por aí, cada qual com seu porrete.” – Eros Grau
O encadeamento do argumento pode levar a pensar que qualquer base moral basta, desde que haja uma amplamente aceita. Mas não; isso é só um artifício de quem quer destruir a base moral existente. E daí vem a segunda parte do meu ponto: a busca da Verdade. Era isso que motivava os filósofos antigos e infelizmente foi substituído por um extremo relativismo recente: “nada é fato; tudo é opinião”. Isso é uma desgraça. É A DESGRAÇA.



Não se trata de carimbar que o que eu acho é Verdade e ponto. Não. Posso estar errado, você pode estar errado e, ao percebermos, mudamos de lado. Mas desistir da busca pela Verdade, como se não houvesse Verdade, como se qualquer coisa fosse uma verdade, isso é o fim de uma sociedade. Evito ser maniqueísta, mas sim, estamos diante de uma ladeira escorregadia. Ao aceitar uma pequena relativização, aceitamos a relativização completa e vamos querer tentar entender e ter empatia pelo erro. Podemos (/devemos) perdoar o pecador, não o pecado.
“Todavia daí não se segue que, se assim o quiser, deixará de ser injusto, passando a ser justo; do mesmo modo que um homem que está enfermo não ficará curado dessa maneira, embora possa ocorrer que um homem esteja doente voluntariamente. (...)O mesmo se dá com o injusto e o intemperante: no começo dependia deles não se tornarem homens dessa espécie, e, assim, é por sua escolha que são injustos e intemperantes. Agora, porém, que são assim, não lhes é possível ser diferentes”. – Aristóteles, em Ética a Nicômaco

Ou seja, existe sim uma base moral que vai levar uma sociedade para o Bem (pelo menos DESSA sociedade) e outras que não levarão.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

A falácia da "linha de partida"

O Marxismo e sua "igualdade na linha de chegada" faliram. Só no Brasil e em mais uns 2 ou 3 países no mundo, isso ainda é levado a sério. Nenhum ser pensante ainda desconsidera a necessidade e a virtude do esforço.

A partir dessa decadência, a alternativa mais decente que surge à esquerda é a busca da igualdade na "linha de partida", embasada pela "Teoria de Justiça" de John Rawls, muito influenciado por Immanuel Kant. Grosso modo, são os social-democratas.
A ideia é cativante: como ser contra a "igualdade de oportunidades"? Pois bem, a realidade o é.

Normalmente associamos a desigualdade na linha de partida com desigualdade financeira. Entre outros, Michael Sandel, em seu "Justiça - O que é fazer a coisa certa?", expõe que existe uma outra grande desigualdade na partida: o talento nato. Ele usa o clássico exemplo de Michael Jordan: como "igualar" a linha de partida do Jordan com um outro moleque qualquer que queira jogar basquete profissional, por exemplo? O raciocínio leva à distopia de Harrison Bergeron (filme aqui): um gago no Jornal Nacional, uma bailarina com uma bola de chumbo no pé, um gênio com um headfone fazendo um barulho alto e chato para evitar que pense... Todos igualados na mediocridade.
  
O erro no argumento de exigir que todos "larguem do mesmo ponto de partida" é a comparação com a raia ao lado. A vida não é uma corrida de 100m; é uma maratona. A vitória não é chegar em primeiro; é apenas chegar. Ou nem isso; talvez seja apenas correr. E com isso não estou "desmerecendo a meritocracia". É necessário um baita esforço para (simplesmente) chegar. E será mais belo ainda se você conseguir entregar o bastão pra próxima geração num lugar à frente do que aquele que você recebeu, INDEPENDENTEMENTE da raia ao lado, numa corrida sem fim.

Nesse ponto do argumento, sem prejuízo da argumentação para ateus, permito-me uma passagem pelo Cristianismo (em especial, Cristianismo Puro e Simples, de C S Lewis): a quem muito é dado, muito será exigido. Um analfabeto que consegue alfabetizar seus filhos talvez tenha avançado muito mais na maratona do que um ricaço que vira professor e alfabetiza centenas de alunos. Cada um com seu talento, cada um com sua corrida.

O problema de querer igualdade na linha de partida é que a natureza simplesmente não é assim. Pode chamar de acaso, se assim preferir (eu chamo). Você pode até xingá-lo, mas não pode negá-lo. Nem culpar os sortudos por sê-los.

O maior inimigo do esquerdismo é a realidade.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Vida na Sarjeta, em especial 'E a faca entrou'

Trechos selecionados de A Vida na Sarjeta, de Theodore Dalrymple, especialmente do artigo 'E a faca entrou'.

“Fragrante destruição dos sólidos laços familiares nos mais pobres, laços que, pela mera existência, faziam com que um grande número de pessoas saísse da pobreza”.

“Os instrumentos para vencer a pobreza são sistematicamente negados aos pobres de hoje, ao passo que são marteladas justificativas para que permaneçam pobres. Essa verdadeira praga é baseada em ideologias que transferem para terceiros – sempre ‘os outros’ – a culpa pelos seus problemas, o que, sem dúvida, estimula vícios como a inveja, a revolta e o ressentimento”.

“Pessoas com vidas desprovidas de significados, já que não são incentivadas a se orgulharem de conseguir pagar a própria comida e a própria casa, como as gerações anteriores faziam. Em outras palavras, são deixadas ao deus-dará e sem nenhuma noção de responsabilidade, em um mundo relativista e extremamente carente de juízos de valor.”

“Retrata com clareza o quanto são erradas e nocivas as políticas que estimulam os pobres a esse comportamento autodestrutivo.”

“Se queremos de fato combater a pobreza, a primeira coisa a ser feita é tratar os pobres como seres humanos e não como boiada, dotá-los de senso de responsabilidade individual e social e apresentar a eles a importância dos valores morais tradicionais – como honestidade, trabalho, frugalidade e respeito ao próximo – que, infelizmente, vêm sendo progressivamente abandonados”.

“Alguns educadores, intelectuais e outros creem estar sendo amigos dos pobres ao justificar ou ‘entender’ esse comportamento autodestrutivo e ao estimulá-los a ter uma visão paranoica do mundo que os cerca”.

“Essa é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não correm bem – muitas vezes por culpa de nossos próprios excessos – pomos a culpa de nossos desastres no sol, na lua e nas estrelas, como se fôssemos celerados por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas; bêbedos, mentirosos e adúlteros, pela obediência forçosa a influências planetárias, sendo toda nossa ruindade atribuída à influência divina... Ótima escapatória para o homem, esse mestre da devassidão, responsabilizar as estrelas por sua natureza de bode!” – William Shakespeare, Rei Lear, Ato I, Cena II

[Sobre comportamentos autodestrutivos e círculos viciosos da 'subclasse']: “O determinismo econômico (...) dificilmente parece dar uma resposta. (...) O determinismo genético ou racial não é melhor. (...) O Estado previdenciário (...) pode ter sido a condição necessária para tal ascensão: tornou-a possível, não inevitável. (...) Mas o ingrediente adicional é encontrado no campo das ideias.”

“A frequência de locuções de passividade é um exemplo surpreendente. Um alcoólatra, ao explicar sua conduta quando bêbado, dirá: ‘A cerveja é muito doida’. Um viciado em heroína, ao explicar seu recurso à agulha, dirá, ‘tá tudo dominado pela heroína’, como se a cerveja bebesse o alcoólatra e a heroína se injetasse no viciado. Possuem uma função justificativa e representam a negação do agente e, portanto, da responsabilidade pessoal. O assassino alega que ‘a faca entrou’ ou que ‘a arma disparou’. O homem que ataca a parceira sexual alega que ‘ficou muito doido’ ou ‘perdeu a cabeça’, como se fosse a vítima de uma espécie de epilepsia. (...) Até a ‘cura’, é claro, ele pode continuar a maltratar (...) certo de que é ele, e não a parceira, a verdadeira vítima. Passei a ver essa desonestidade e autoengano como parte essencial do meu trabalho. Quando um homem diz-me, como explicação para seu comportamento antissocial, que ele se deixa levar facilmente, pergunto-lhe se alguma vez se deixou levar pelo estudo da matemática ou do subjuntivo dos verbos franceses. (...) O absurdo do que ele disse se torna aparente para ele mesmo. (...) mas existem algumas vantagens, psicológicas e sociais, decorrentes da manutenção dessa farsa.”

“Não muito tempo depois que os ~teóricos da criminologia~ propuseram a teoria de os criminosos reincidentes possuírem um desejo ~compulsivo~ pelo crime (...), um ladrão de carros, de inteligência limitada e de pouca educação, pediu-me que tratasse de sua ~compulsão~ de roubar carros e, ao não receber tal tratamento, é claro, via-se moralmente justificado para continuar a livrar os donos de carros de suas propriedades”.

[Sobre um relacionamento] “’Não deu certo’, dizem, e o que não deu certo foi o relacionamento, que concebem como algo possuidor de existência independente das duas pessoas que o compõem”.

“Revelar a origem dessa realidade, que é a propagação de ideias más, insignificantes e insinceras. (...) É importante lembrarmo-nos de que, caso haja culpa, uma grande parte é devida aos ~intelectuais~. Não deveriam ter sido tão tolos, mas sempre preferiram evitar-lhes o olhar. Consideraram a pureza das ideias mais importante que as reais consequências. Desconheço egotismo mais profundo.”

Lamúria escusatória. (...) Fatalismo desonesto. (...) Fico tomado de surpresa pela pequeníssima parte que atribuem aos próprios esforços, escolhas e ações. (...) Descrevem-se como marionetes do acaso”.

[Como se a] “A vítima do esfaqueamento, no entanto, é que foi o verdadeiro autor da ação homicida: se ela não estivesse lá, ele não teria a matado.”

“O modo de o prisioneiro apresentar-se ao público muitas vezes guarda semelhança com o retrato que deles fazem os progressistas. É como se dissessem: ‘Vocês querem que eu pareça vítima das circunstâncias? Pois bem, para vocês serei vítima’”.

“Auto-engano (...) o orgulho e o amor-próprio não tem dificuldade de superar a memória. (...) A facilidade com que as pessoas rejeitam a responsabilidade por aquilo que fizeram – a desonestidade intelectual e emocional sobre as próprias ações – que aumentou enormemente nas últimas décadas.”

3 possíveis motivos:
  • Legião de pessoas cujas rendas e carreiras dependem da suposta incapacidade de outras pessoas
  • Ampla disseminação de conceitos psicoterapêuticos adulterados ou mal-interpretados: se a pessoa não conhece ou compreende os motivos inconscientes dos próprios atos não é verdadeiramente responsável por eles
  • Classes médias abarrotadas de culpa

“É bastante verossímil para abalar a confiança das ~classes médias~ que o crime é um problema moral e não um problema de disposição de ânimo.”

“O próprio modo de explicação oferecido pelos progressistas para o crime moderno – que parte das condições sociais direto para o comportamento, sem passar pela mente humana – oferece aos criminosos uma desculpa perfeita.”


“O comportamento antissocial não aumenta na proporção das desculpas criadas pelos intelectuais?”

“As pessoas, longe de se acharem extremamente afortunadas se comparadas a todas as populações anteriores, passam a acreditar que vivem nos dias atuais na pior das épocas e sob os mais injustos regimes.”

“A noção disseminada de que a desigualdade material é, em si, um símbolo de injustiça institucionalizada também ajuda a fomentar o crime. (...) Se a propriedade é um roubo, logo, o roubo é uma forma de justa retribuição. Isso leva ao desenvolvimento de um fenômeno extremamente curioso: o ladrão ético.”

terça-feira, 10 de março de 2015

Cartas a meu filho

IV

Pedro, esse é meu primeiro aniversário em que passamos juntos.

É o primeiro também que nossa tia Beth não está mais com a gente. Ela se matou há uma semana. “They say that new life makes losing life easier to understand.”

Sabia que ela era sempre a primeira a ligar, quase de madrugada, “pra não esquecer”? Era legal.

Tomara que passemos muitos aniversários juntos, filho.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Aborto

Inicio a discussão com uma proposta empática: colocar-se no lugar do outro.
Pessoas pró-aborto, quais são as razões que vocês acham que leva um não-abortista a ter essa outra opinião? São um bando de filhadaputa que quer ver pobre morrer? São os vingadores do tipo 'trepou-agora-aguenta'? São religiosos fundamentalistas irracionais?

Claro que não. Essa simples pergunta talvez estabeleça uma ponte pra conversa. Vamos ponto por ponto.

O principal argumento do pró-aborto, ou melhor, o mais utilizado, é sobre as várias (A1) mortes de mulheres pobres que fazem aborto clandestino. Embora alguns números divulgados sejam bem chutados, o ponto é mais conceitual. A refutação desse argumento pode se dar pelo menos de duas maneiras. Primeiro, (CA1a) o fato de uma parte da população (ricos) conseguir cometer o crime de forma bem sucedida (enquanto outra - pobre - não consegue) não pode ser motivo para mudar a definição do crime (Estratagema de Schopenhauer: tomar a prova pela tese). A rigor, há uma série de crimes que são majoritariamente praticados por ricos (de bate-pronto: corrupção, estelionato, dirigir bêbado e matar,...) e que, nem por isso, devem deixar de ser crimes. Outro problema no argumento é (CA1b) pressupor que a rede pública resolveria a questão das mortes em cirurgias abortivas. Pobres morrem mais que ricos em cirurgias de aborto (todas clandestinas), assim como morrem mais em cirurgias de apendicite, de retirada de amígdala, de parto normal... embora todas essas últimas sejam legais. Ou seja, se a mobilização pró-aborto desejasse apenas evitar mortes de pobres, seria mais eficiente começar exigindo "morte zero" no atendimento da rede pública em todas as cirurgias já legais - que, com certeza, são em número significativamente maior que mortes por aborto. Ou seja, a simples empatia pelo risco do pobre não é o mote central dos pró-aborto. (Veja bem: não quero ser sommelier de campanha. Lógico que um grupo pode se juntar para defender uma causa que não seja O grande problema. Mas meu ponto é deixar as coisas com as devidas dimensões.) Ou seja, o pró-aborto comete um erro cognitivo que Daniel Kahneman chama de "substituição da pergunta": responde-se uma pergunta próxima e mais fácil, e não a questão principal. Last but not least nesse argumento: todas as pesquisas - de Datafolha a Roberto DaMatta - mostram uma profunda REPROVAÇÃO da ideia do aborto nas camadas de renda mais baixa da população. Quem deu a procuração para os ricos defenderem os pobres? Lembro da frase: "Hoje há um (pseudo)conflito entre ricos e pobres, e os ricos querem assumir os dois papeis".

Outro argumento utilizado pelos pró-aborto - e disparado o mais fraco, embora presente em todo textão de facebook - é o (A2) "estrago" que um filho não desejado pode causar na vida dos pais. Há várias variações, desde o "E se a gravidez é descoberta em um momento de dificuldade financeira, com um dos pais desempregado?" até o feminismo raso do "abandono do pai". A resposta é que se (CA2) se trata de uma geração não acostumada a frustrações ou eventos não-planejados. Divorcia-se, é-se demitido de um bom emprego (ou do único emprego), acaba-se com uma família por um vício ou um chifre, perde-se um pai cedo demais, tem-se câncer ... e engravida-se a namorada/peguete sem querer. Tentamos evitar, às vezes dá pra evitar, às vezes não. E a solução não é esconder a cabeça debaixo da terra. A geração Ctrl+Z quer uma maneira de tentar 'dar um jeito' em pelo menos um desses 'problemas': o aborto.
Sobre a 'indesejabilidade' de um filho, cito uma questão que já preocupa os EUA e que li pela 1ª vez n'O que o dinheiro não compra' de Michael Sandel: (CA2a) os contratos de barriga de aluguel. Muitos americanos com dificuldades para engravidar começaram a alugar barriga de indianas. O problema é que, mesmo com contrato assinado (que entregariam o filho assim que nascesse), muitas indianas criaram relação afetiva com o bebê (na barriga!) e simplesmente não quiseram devolver. (Há toda uma discussão moral e jurídica por trás disso). Não é difícil entender esse 'amor de mãe'. Ou seja: mães que não transaram, não tinham parceiro, nem pensavam em ter filho ... e que criaram vínculo com o bebê. (Na verdade, acho que toda grávida tem uma relação de amor e ódio (enjôos, dores) com seu bebê, mesmo os 'planejados'.) 'Mas e as condições econômicas?' (CA2b) Fico pensando o que essas pessoas fariam se perdessem o emprego com uma criança de, sei lá, 5 anos em casa. Abandonariam? Matariam? Isso não pode ser um argumento sério. Há frustrações. Há eventos não planejados. Ponto. Quanto ao abandono do pai, novamente não se corrige um erro com outro. Parece uma coisa mimada, do tipo 'Se você não voltar, eu termino'.

Esse argumento pró-aborto ("ter apenas filhos desejados") é raso, mas é o mais perigoso. Levado a cabo, as conseqüências são catastróficas. (CA2c) Não haveria limite para o que está acontecendo na Índia: aborto de bebês femininos (aqui e aqui). Ou o que é mais comum ainda em vários países: aborto de portadores de Down. Queria evitar a Lei de Godwin, mas impossível não lembrar da busca pela "raça ariana perfeita", apenas com descendentes "desejáveis". A vida não é isso. 

O último principal argumento utilizado - e pelo qual os pró-aborto ganham o apoio dos libertários - é (A3) a "liberdade" do corpo da mulher, simbolizado pelo "meu corpo, minhas regras". Aí, o problema também são pelo menos dois. O primeiro é (CA3a) entender "liberdade" apenas como "ausência de restrição", uma definição animalesca, tribal. Intrínsecas à "liberdade" estão as ideias de "reciprocidade" e "responsabilidade". O exemplo clássico que ilustra não existir "liberdade" como conceito absoluto é o da escravidão: um homem é ou pode ser "livre" para assinar um contrato com outro homem aceitando ser escravo desse? (Ou um mais besta: posso andar pelado por aí?) Já passamos dessa fase; já entendemos que não, não pode. Destaco abaixo em nota* um trecho de Roger Scruton que considero brilhante acerca da "definição de liberdade". O "faço o que quiser" independentemente dos outros é um passo de volta à barbárie.
E o 2º erro nesse argumento é (CA3b) assumir que o feto é apenas uma extensão do corpo da mãe. Não é. (Vejam: ainda que fosse, teria toda uma questão ética presente nas discussões sobre suicídio e eutanásia. Mas não é). Trata-se de um OUTRO ser. O não-abortista, em geral, também é contra a pena de morte, pelo mesmo princípio: o Estado não deve matar um criminoso, mesmo confesso. Se devemos poupar até o culpado, como não poupar um feto?

The love of liberty is the love of others;
the love of power is the love of ourselves.
William Hazlitt

Reparem: até aqui, não usei absolutamente nenhum argumento religioso. E não precisa usá-lo. A proibição legal de matar é ANTERIOR a subida de Moisés ao Sinai para proclamar o 5º Mandamento: 'Não matarás'.

É claro que por trás desse contrargumento está o entendimento da vida como algo "transcendental", "metafísico". Esse é o grande ponto. E não precisa ser religioso para aceitar isso. Não precisamos falar de Deus pra isso. Basta olha a lágrima de um ateu ao ver seu filho nascer ou o choro de um agnóstico ao ver seu pai morrer. (Perdoem-me o sentimentalismo barato, mas faço meu ponto). Não, senhores e senhoras, a vida não é algo que se brinca de tirar ou colocar.

Por isso, toda conversa decente sobre aborto vai recair na questão 'Quando começa a vida?' E, claro, não é uma resposta óbvia. Uma proposta é tentar responder por analogia (menos ideologizada): quando ACABA a vida? Enterramos alguém com morte cerebral, em 'estado vegetativo', mas com coração batendo? É difícil alguém olhar um ultrassom de 5~6 semanas de gravidez, com meia dúzia de células fazendo barulho e dizer que aquilo ali não é vida. Reparem a vulnerabilidade que assumimos se começarmos a conceituar vida de acordo com pressões de época, e não como algo absoluto. (Nesse momento, você está pensando como o pensamento pró-aborto pode se aproximar do que já foi feito na História com judeus, negros, gays...)

Os pró-aborto me fazem lembrar de um trecho de Nassim Taleb:

If you have more than one reason to do something (choose a doctor or veterinarian, hire a gardener or an employee, marry a person, go on a trip), just don’t do it. It does not mean that one reason is better than two, just that by invoking more than one reason you are trying to convince yourself to do something. Obvious decisions (ROBUST TO ERROR) require no more than a single reason.

Tentei passar por cada ponto dos pró-aborto. Mas como contrargumento final, também entendo que basta uma única resposta para não se legalizar aborto: Não se mata.

Aprendi uma verdade que está cravada na minha carne e na minha alma, para sempre: - “Não se mata”. Mesmo o culpado, não se mata. Um homem não mata outro homem.
Nelson Rodrigues

Termino com o reverso da pergunta do início. Então, afinal, o que eu acho que o pró-aborto deseja? Ou: o que eu, não-abortista, acho que são os motivos pelos quais os pró-aborto defendem a liberação do aborto? Meu amigo Conrado definiu com precisão: 'é uma demanda de uma certa classe abastada, hedonista e falsamente libertária, pois egoísta e narcisista'. As palavras parecem fortes mas cada uma delas é necessária. Parece-me muito mais uma questão psicológica, uma carta branca do superego pra tranqüilizar a consciência.
É claro que mesmo os pró-aborto não se sentem bem com a ideia de fazer de fato um aborto. Deve ser uma questão que fica cutucando pra sempre, ou seja, 'não é bom'. Em Alma Imoral, Nilton Bonder fala sobre a tensão entre o 'bom' e o 'correto'. Infelizmente nem sempre os dois andam juntos. Muitas vezes, o bom é errado e o correto é ruim. A questão do aborto não entra nesse dilema: o não-bom deve continuar não-correto.





ps: Nem passei pelo comentário birrento (nem chega a ser um "argumento"): "Se você não concorda com o aborto, basta não fazê-lo e deixe que outros façam"; esse discurso tem a mesma honestidade e profundidade intelectual da resposta "pergunte antes ao feto se ele aceita ser morto".

pps: Óbvio que conheço amigas(o)(x)(s) que abortaram. Por favor: esse texto não é um "julgamento" de minha parte. É apenas uma discussão conceitual.

* Trecho de 'As vantagens do pessimismo' de Roger Scruton:
(...)O Contrato Social de Rousseau (...) apresenta um novo conceito de liberdade humana, de acordo com a qual liberdade é o que nos resta quando afastamos todas as instituições, todas as restrições, todas as leis e todas as hierarquias. E seus seguidores acreditavam que essa liberdade, uma vez obtida, exprimir-se-ia na felicidade e na fraternidade da espécie humana, e não naquela 'guerra de todos contra todos', que Hobbes descreveu como o verdade 'estado natural'.
(...) a defesa apaixonada [desse conceito] da liberdade foi mais tarde utilizada para desculpar a tirania dos revolucionários.
As instituições, as leis, as restrições e a disciplina moral fazem parte da liberdade e não dos seus inimigos, e a libertação dessas coisas leva rapidamente ao fim da liberdade.
A 'liberdade' disponível num estado natural é uma ilusão - uma mera 'falta de restrição', mas sem a segurança e o reconhecimento que dota a liberdade com os seus atributos distintivamente humanos.
A liberdade genuína só aparece quando (...) o conflito se resolve num estado de reconhecimento mútuo. (...)
O preço dessa liberdade é o preço da reciprocidade.
A liberdade é algo que adquirimos. E adquirimo-lo através da obediência. Só a criança que aprendeu a respeitar e acatar os outros pode respeitar-se a si mesma.
A liberdade não é um dom da natureza mas o resultado de um processo educativo, algo que temos que trabalhar para adquirir através de disciplina e sacrifício.

Reconhecimento de que a liberdade não é um dom natural mas um artefato que construímos em conjunto através da nossa pertença social partilhada.


quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O que li em 2014


O livro é a compilação de um tradicional curso da Casa do Saber. Em linguagem ultracoloquial, os autores refletem sobre 8 temas: ética, moral, identidade, liberdade, poder, dominação, justiça e virtude.
O conceito exposto de que mais gostei é o de 'moral' como necessidade prática para se viver em sociedade a partir do momento em que não amamos todo mundo. (Se amássemos todos, a moral não seria necessária).

O grande amigo de Montaigne, Étienne de La Boétie escreve um curto manifesto refletindo sobre como tiranos mantém sua tirania (mesmo os escolhidos pelo povo; talvez até piores) e como as pessoas se sujeitam a essa tirania: boas doses de conivência, covardia e cumplicidade são necessárias para manter a própria servidão...
Escrito há quase 500 anos e muito atual.


Mário Ferreira dos Santos analisa a sociedade "atual" (aspas porque foi escrito em 1967) sob influência dos "bárbaros" (como contraposição a civilizados, intelectualizados). Mais: não mais uma invasão "horizontal" (=conquista territorial), mas uma invasão "vertical", interna, dentro da própria cultura. Alguns tópicos bem interessantes como moral, crimes, Cristianismo, ciência e religião, 'alta cultura', racismo... O filósofo usa termos e defende posições que provavelmente causariam mimimi se fossem escritos hoje em dia. Mas gostei bastante do texto. Sua capacidade preditiva é impressionante.

Conflito de Visões ✰✰✰✰✰
Segundo Thomas Sowell, as disputas ideológicas não são baseadas em diferenças de interesse, de conhecimento ou de moral; o cerne é a diferença de 'visão', definida como uma 'concepção pré-analítica'.
Ele classifica as visões em: - IRRESTRITA, que entende que o POTENCIAL humano é ilimitado ou que ainda não foi alcançado (e, portanto, devemos buscá-lo) e; - RESTRITA, que entende que a CONDIÇÃO humana é limitada, falha (e, portanto, devemos lidar com isso).
Os adeptos da visão irrestrita buscam SOLUÇÕES; os da visão restrita buscam COMPENSAÇÕES/TRADE-OFFs.
A partir dessa diferenciação (obviamente um continuum, não binária), há toda uma coerência no posicionamento de ambas as visões quando discutem igualdade, liberdade, justiça, poder...
Com certeza, um livro que será dos mais influentes na minha vida.

Subliminar ✰✰✰
Leonard Mlodinow, autor de O Andar do Bêbado, escreve mais um bom livro, dessa fez sobre a influência do inconsciente em nossas vidas. Com uma pequena pincelada em neurociência (especialmente em relação ao mapeamento da atividade cerebral), ele aponta alguns estudos sobre memória, visão, audição, categorização, racionalização,... Gostei especialmente do capítulo sobre in-groups e out-groups: as diferenciações inconscientes que fazemos entre as pessoas que são do nosso grupo e as que não são, QUALQUER que seja a definição desse grupo (e disso podemos tirar algumas ideias para questões de preconceito).
É um bem bolado de Dan Ariely, Malcolm Gladwell e da turma do Gorila Invisível.
"A evolução NÃO projetou o cérebro humano para entender a si mesmo com precisão, mas para [simplesmente] nos ajudar a sobreviver".

Nate Silver, o estatístico que ficou (mais) famoso por gabaritar o vencedor das eleições americanas em cada um dos 50 estados, fez um abrangente e agradabilíssimo apanhado sobre os vários mundos da previsão, cada qual com suas particularidades, seus desafios, seus acertos, seus erros, seus pop-stars.
Os capítulos passam por eleições, beisebol, basquete, meteorologia, xadrez, poker, macroeconomia, mercado econômico, epidemias, terremotos, aquecimento global, terrorismo.
Apesar de ser uma leitura fácil, não técnica, Nate Silver expõe alguns conceitos teóricos interessantes.
Ou seja, um livro excelente pra uma época em que querem prever a temperatura da Terra daqui a 100 anos ou em que a variação de 0,1 p.p. na previsão do PIB pro ano que vem dá manchete de jornal.

Ideias tem Consequências ✰✰✰✰
Muitos consideram esse livro como um ~must-read~ para direitistas. De fato, Richard Weaver defende muitos pilares do conservadorismo, mas achei um ou outro ponto divergente, como quando ele flerta com uma economia mais planejada ou quando dá umas pequenas porradas no “capitalismo financeiro”.
Achei a leitura difícil, mas gostei bastante. É um excelente mix de “Invasão vertical dos bárbaros”, “Rebelião das massas”, “Conflito de visões”, “As vantagens do pessimismo”.
O autor critica o materialismo e a imediatez vigentes, não no mesmo barco do ambientalismo ou da crítica ao consumismo, mas pela falta de algo transcendental, metafísico.
CRITICA a paixão pela razão, a fragmentação do conhecimento, a substituição da noção de fraternidade pela de igualdade, o fato da organização social deixar de se pautar pelas vocações e passar a ser pela capacidade de consumo (com o trabalho virando mero emprego sem significado ou valor); critica a ideia de conforto como fim último da vida, a psicologia da criança mimada (que acha que tem direito a tudo por “reclamações e exigências” sem ter aprendido a relação entre esforço e recompensa), que a política tenha sido transformada em uma mera serva da economia; enfim, critica “a teoria progressista da história, que ensina que o ponto mais avançado no tempo representa o ponto de maior desenvolvimento".
O autor DEFENDE a distinção e hierarquia (selecionei trechos desse espetacular capítulo aqui), a propriedade privada (ligada à escolha e à vontade, ou seja, intrinsecamente à liberdade) como o “último direito metafísico” (pois não depende de demonstração da utilidade social), a tolerância e a piedade (à natureza, aos outros e ao passado), a prudência e a responsabilidade.
Sensacional.

O livro é um “testemunho da credulidade, estupidez e crueldade humana”; ilustra uma série de besteiras que fizemos e acreditamos ao longo da história. (Consequentemente, claro, faz pensar nas idiotices que vamos deixar pros nossos filhos contarem).
O autor conta histórias de bodes expiatórios na religião (em especial, no Judaísmo e no Cristianismo, em que bate bastante), no esporte (técnicos, juízes), relacionados a gênero/sexo (como na ‘misoginia’ – segundo o autor – da caça às bruxas), na mitologia, com animais e objetos (as histórias de Cortes gastando tempo e dinheiro para ‘condenar’ porcos, pássaros, insetos, sinos e espadas são cômicas se não fossem trágicas), políticos (comunistas como ato final de lealdade, inimigos externos), financeiras (bolhas, lei do ‘tolo maior’), médicas (os próprios doentes, eventualmente a 1ª vítima).
Termina falando do caso emblemático de Alfred Dreyfus, das ideias por trás das teorias da conspiração e da psicologia do bode expiatório, especialmente com Jung (“arquétipo da sombra”). Achei interessante a analogia do bode expiatório com um herói (se ferram individualmente pelo bem do todo).
Alguns capítulos são muito longos, outros muito curtos, o autor sempre volta na questão do Cristianismo, mas é um livro interessante.

Michael Lewis, o autor de renomados livros como Moneyball e Big Short, publica uma espécie de diário sobre sua experiência como pai de 3 filhos, motivado pelo "persistente e incômodo gap entre o que ele DEVERIA SENTIR e o que ele REALMENTE SENTIA" como pai.
Com causos realmente engraçados, ele escancara a função secundária do pai e ironiza os experts em paternidade. Se você não estiver encanado, perturbado ou confuso com a paternidade, você provavelmente estará fazendo algo errado com seus filhos. Na verdade, você provavelmente estará fazendo algo errado de todo modo, mas tudo bem.
(Selecionei alguns trechos aqui)

As ideias conservadoras  ✰✰✰✰
Embora curto, não considerei o livro tão raso como algumas resenhas apontam (talvez seja apenas minha ignorância) principalmente porque João Pereira Coutinho versa sobre alguns "tendões de Aquiles" do conservadorismo e algumas diferenças entre os próprios conservadores. Ou seja, não se trata de um simples contraponto ao pensamento esquerdista ou às ideologias extremistas.
Entre esses "tendões", o autor fala sobre o eventual imobilismo (achei excelente o capítulo sobre "reformas prudentes") e o eventual conflito com "sociedade comercial" (não sabia que daria pra montar um longo manual anti-capitalista apenas com autores, em tese, conservadores).
Com relação às possíveis discordâncias entre os conservadores, a única que me saltou aos olhos (isto é, que inicialmente me faria discordar de Coutinho) é quanto à "maleabilidade na hierarquização de valores de acordo com as circunstâncias", que ele defende. No entanto, é engraçado que, ao ler outros conservadores, a ideia faz muito sentido e fica bem clara.
O livro é muito bom.
"Todos somos conservadores. Pelo menos, em relação ao que estimamos. (...) Conservar e desfrutar são dois verbos caros aos homens que ainda estimam alguma coisa."

É sempre uma experiência interessante ler alguém que sabidamente pensa diferente de mim. O historiador comunista Eric Hobsbawm evidencia seu saudosismo pela União Soviética e sua inhaca pelos Estados Unidos, principalmente nas partes em que fala sobre ‘impérios’. Gostei bastante dos textos sobre terrorismo – em que ele crítica o medo irracional, talvez mais prejudicial que o próprio terror – e sobre democracia – em que ele questiona a ‘unanimidade não questionada’ sobre o tema. Mostra as fragilidades e exemplos que deram errado em ambientes democráticos e outros que deram certo sem ele. (O problema, claro, é que ele dá um passinho além e fica no limite de defender "algo pior" que a democracia...)

O Reacionário ✰✰✰✰
Nelson Rodrigues é um monstro. Crônicas deliciosas, que fazem falta nos jornais de hoje.
Selecionei uns trechos aqui.








Complacência ✰✰✰✰
Fabio Giambiagi e Alexandre Schwartsman analisam as decisões do governo brasileiro na última década, levando à triste situação atual.
Com uma escrita bastante leve, passa por diversos temas como funcionalismo público, educação, previdência, balança comercial, política industrial (de “escolha dos vencedores”), sempre com uma espécie de “curso de introdução à economia” como pano de fundo. Bem interessante.

Política da Prudência ✰✰✰✰✰
Russel Kirk escreve sua bíblia sobre o pensamento conservador americano. Expõe seus 10 livros, seus 10 acontecimentos e seus 10 pensadores preferidos, explica a maioria deles, critica a ideologia progressista e os libertários. Defende a ordem, a justiça e a liberdade.
Livro necessário para todo conservador e outro que, sem dúvida, terá influência marcante em toda minha vida.

Conversa no Catedral ✰✰✰✰✰
Mario Vargas Llosa trata esse livro como sua melhor obra. E, de fato, é espetacular. Tanto o enredo (as histórias se passam na sociedade peruana na época da ditadura) como o estilo.
Muita coisa parecida com a sociedade brasileira e com os tempos modernos.
O Peru também não corre o risco de dar certo.

Trechos selecionados de 'Home Game - An accidental guide to fatherhood'

Trechos selecionados de Home Game - An accidental guide to fatherhood, de Michael Lewis.


My father took it almost as a matter of principle that most problems, if ignored, simply went away.

Memory loss is the key to human reproduction.

One of the many things I dislike about being a grown-up is the compulsion to have a purpose in life.

New parents are not rational; they worry about all sorts of things that it makes no sense to worry about. [When was the last time you saw a full-grown adult crawling around the streets on all fours?]

At some point in the last few decades, the American male sat down at the negotiating table with the American female and - let us be frank - got fleeced.

corollary to the rule about the fool at the poker table, that if you don't know who your wife is pissed off at, it's you.

The fact, as opposed to the theory, of life with a small child is an amoral system of bribes and blackmails. You do this for me, you get that. You don't do this, you don't get that.

that official statistics dramatically overstated the incidence of sudden infant death (...) because most of then were probably murder.

Maternal love may be instinctive, but paternal love is learned behavior.
A month after she was born, I would have felt only an obligatory sadness if she had been rolled over by a truck. Six months or so later, I'd thrown myself in front of the truck to save her.

1. Maternal propaganda. 2. Gift for mimicry. 3. Tendency to improve with age.

All the little things that you must do for a helpless creature to keep it alive cause you to love it.

The first rule of fatherhood is that if you don't see what the problem is, you are the problem.

The origin of vanity is not the desire to be admired by others but the need to be in charge. The other things just follows from it.

On of the many things about fatherhood is how it has perverted my attitude toward risk.
(neurotic, money, help other, flying, death)

It's astonishing how much trouble we take to prevent our children from seeing the world as it is.

Never underestimate your own insignificance.

For the whole of Stage1, a father performs no task more onerous than seeming busy when he isn't. In Stage2, he becomes, in a heartbeat, chauffeur, cook, nurse, gofer, personal shopper, Mr Fixit, sole provider and single parent.

The current wisdom holds that if you seem to be not all that interested in your new child the first time the older ones come to see him, you might lessen their suspection that he's come to pick their pockets.

A family is like a stereo system: a stereo system is only as good as its weakest component, and a family is only as happy as its unhappiest member.

"Do you know the data on siblings across species?" "Half the time they kill each other".

What you know is less important than who you know.

The problem with lucking out with your children is that your children don't appreciate their luck - and the lucky feeling is more than a half of the pleasure.

Like dreams, these fatherhood moments are easily forgotten and no doubt also a lot more interesting to the teller than to anyone else. But when they're forgotten, their lessons, such as they are, are lost. The vacuum winds up being filled by 'experts' on child rearing.

The final rule of fatherhood: if you're not bothered by it, or disturbed by it, or messed up from it, you're probably doing something wrong that will mess up your kids. You're probably doing something wrong anyway, but it's okay.

Trechos selecionados de 'O Reacionário'

Trechos selecionados de 'O Reacionário', de Nelson Rodrigues.

Sempre digo que o pior da bofetada é o som. Se fosse possível uma bofetada muda, não haveria ofensa, nem humilhação, nada.

Um gênio não move uma palha, não ameaça, nem influi. Ninguém morre por um gênio, ninguém mata por um gênio. (...) Um gênio não convence ninguém, o idiota sim. Ponham um pateta na esquina e deem um caixote ao pateta. Ele trepa no caixote e fala. Imediatamente, outros idiotas vão brotar do asfalto, dos ralos, dos botecos. (...) o idiota é uma “força da natureza”.
Claro que nem sempre foi assim. Durante 40 mil anos, o pateta sabia-se pateta e como tal se comportava. Os melhores pensavam por ele, sentiam por ele, pensavam por ele. Mas em nosso tempo, e só em nosso tempo, os idiotas descobrem que são em maior número. – A Revolução do Idiota.

O diabo é que temos a vocação e a nostalgia do caos.

A pior forma de solidão é a companhia de um paulista. (...) “Mas não era isso que eu queria dizer.” Aqui, trabalha-se.

O brasileiro é vítima dos mais lamentáveis delírios numéricos. Lembro-me de um orador patrício que assim começou: - “Não vou fazer um discurso”. Pausa. Em novo arroubo, insiste: (...) “Vou dizer apenas duas palavras”. Pânico entre os presentes. Pois sabemos que, em nosso idioma, duas palavras são duzentas. E o homem não parou mais. Segundo consta, está falando até hoje.
Realmente não temos o menor respeito pelos números.

‘Diz Nelson Rodrigues que, no Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio!’. Não pode ser presidente quem tem medo de vaia – ou pior – não pode ser presidente quem tem medo do povo.

Aprendi uma verdade que está cravada na minha carne e na minha alma, para sempre: - “Não se mata”. Mesmo o culpado, não se mata. Um homem não mata outro homem.

Não estou odiando ninguém. (...) isso é odiar? São os fatos, os fatos, os fatos. (...) nós conhecemos aquilo que, em psicologia, se chama projeção. A pessoa projeta nos outros sentimentos seus.

Hoje, o ato de opinar compromete ao infinito.

O que a [feminista] quer é, justamente, liquidar a mulher como tal. Se vocês espremerem tudo o que ela diz, ou escreve, descobrirão que a nossa ilustre visita pensa assim, mais ou menos assim: - “A mulher é um macho mal-acabado, que precisa voltar à sua condição de macho.” (...) Há pouco tempo, ninguém teria a coragem de, alçando a fronte, declarar: - “A feminilidade não existe.” Diz mais: – que a mulher para viver dignamente precisa estar acima de “definições sexuais” como “mãe” e “esposa”. Para a pobre senhora a maternidade é um fato apenas físico, como se a mulher fosse uma gata vadia de telhado.

Não sei se repararam (e a gente não repara nas evidências mais ululantes). Mas ninguém ouve ninguém.  (...) O que nós chamamos diálogo é, na maioria dos casos, um monólogo, cuja resposta é outro monólogo.
Por isso, a nossa vida é a busca desesperada de um ouvinte.

Escrevi aqui mesmo, não sei quantas vezes: - não se adia um olhar, um sorriso, uma frase. Há sempre uma palavra que não devemos calar. Somos perecíveis, mas esquecemos que somos perecíveis.
A saudade antes do adeus.

Tenho medo das pessoas que vivem de certezas.

O homem deixou de ser um homem, é um “fato político”.

Sempre digo que a coragem é um momento, que a covardia é um momento.

E porque não entendemos nada de futebol, Deus nos fez o favor de confirmar todas as nossas intuições, palpites, vaticínios.

Assim é o brasileiro: - um sujeito atormentado por culpas imaginárias.

Geração de boteco ideológico.

Cada um de nós está sempre a um milímetro da depressão, a um milímetro da euforia. Aderna para um lado ou para outro, segundo estímulos eventuais.

Temos o vício da manchete.

A mulher que odeia não um homem determinado, mas todos os homens, já deixa de ser mulher.
Nada frustra mais a mulher do que a liberdade que ela não pediu, que não quer e que não a realiza.

Ou a jovem revolução está na depredação gratuita, na depredação idiota de algumas das maiores universidades do mundo? (...) Mas pergunto: - que fez essa juventude? Eu já me daria por satisfeito se, um dia, tivesse inventado um comprimido, um Melhoral. (...) a juventude não fez nada e repito: - exatamente nada. Quando nasceu, as gerações passadas deram-lhe, de mãos beijadas, na bandeja, a maior nação do mundo (...). E, então, por não ter feito nada, põe-se a contestar, a injuriar tudo o que já estava feito.
Admite que a agitação estudantil não teve grandes consequências visíveis. Aqui acrescento: - nem invisíveis. Ou por outra: - houve, sim, as consequências visíveis. Refiro-me aos automóveis virados, aos paralelepípedos arrancados e à Bolsa incendiada. Fora disso, a jovem revolução não deixou nem mesmo uma frase, uma única e escassa frase. (...) A razão deixa de ser o que sempre foi, isto é, uma lenta, progressiva, dilacerada conquista espiritual. [21/11/1973]

Apanhem o sujeito mais inteligente e o ponham na plateia. Imediatamente, ele passará a reagir como as duzentas senhoras gordas que assistem à peça, comendo pipocas. O sujeito que se mete no meio de trezentos idiotas será um deles. Aí está o milagre da multidão, ainda que seja pequena. Há um fulminante nivelamento intelectual por baixo.

A elegância é invisível. (...) Se descobriram que sou elegante, já não sou mais nada. Sua elegância deixara de existir a partir do momento em que perdera a invisibilidade.

Baseado em toda a minha experiência jornalística, sustento que nada mais falso, nada mais apócrifo, nada mais cínico do que a entrevista verdadeira. Por outras palavras, a entrevista verdadeira é uma sucessão de poses e de máscaras. Ao passo que a “entrevista imaginária”, pelo fato de ser imaginária e irresponsável, não mente jamais. E o leitor fica sabendo de tudo o que o entrevistado pensa, sente e não diz nem a muque.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Trechos selecionados de "As Ideias Conservadoras"


Dois tipos de pensamento antirrevolucionário: (...) espírito moderado e (...) reação intolerante.
Se uma grande mudança é para ser feita nos assuntos humanos, as mentes dos homens adaptar-se-ão a ela, as opiniões e o sentimentos gerais confluirão para esse destino.
Uma tradição que foi capaz de evitar os males do radicalismo revolucionário ou do revanchismo reacionário – no fundo, uma tradição que pode se orgulhar de não ter sangue nas suas mãos.
O conservadorismo – ensina Michael Oakeshott – deve começar pelo presente: pela fruição e conservação desse presente.

A ideologia conservadora
Todos somos conservadores. Pelo menos, em relação ao que estimamos. (...) Conservar e desfrutar são dois verbos caros aos homens que ainda estimam alguma coisa.
Disposição: (...) usar e desfrutar aquilo que está disponível, em vez de desejar ou procurar outra coisa. (...) Não porque eles sejam superiores a uma alternativa hipotética, mas, precisamente, porque eles não são uma alternativa hipotética. São reais, tangíveis. E a possibilidade de os perder em situações de mudança, e sobretudo de mudança violenta e repentina, afigura-se com uma provação fundamental. (...) Só abraçam entusiasticamente a mudança, a qualquer mudança, (...) aqueles que são estranhos ao amor e ao afeto.
Evitam com apreciável esforço a palavra ‘ideologia’. (...) Temperamento (...) Fé (...) Espírito (...) Instinto (...) Inclinação (...) DISPOSIÇÃO. (...) O conservadorismo apresenta uma dimensão existencial que é anterior, ou até superior, a qualquer ideologia política.
O conservadorismo político também transportará para a esfera da governança esse gosto pelo próximo, pelo suficiente, pelo conveniente – recusando a ‘felicidade utópica’ que é típica da atitude revolucionária.
Distinguir o conservador da sua caricatura habitual: o reacionário. O reacionário não será mais do que o ‘revolucionário do avesso’ (Anthony Quinton) (...), para uma felicidade utópica passada.
O pensamento utópico sempre projetou no passado ou no futuro a ‘solução final’ para as iniquidades que afligem o presente.
Um conservador tenderá a recusar essas fantasias (...): por um lado, a falácia de que os homens possuem uma natureza fixa e inalterável e que, por isso, desejam necessariamente as mesmas coisas e, por outro lado, a falácia (...) de que os valores mais caros à existência humana podem ser vivenciados na sua expressão máxima (a máxima liberdade, a máxima igualdade, a máxima fraternidade) sem possibilidade de conflito entre eles.
Conservadorismo não apresenta esse ‘ideal substantivo’. (...) Ausência de uma cartilha a priori.
[Conservadorismo pode ser] uma ‘ideologia’ que, ao contrário dos rivais, tenderá apenas a emergir quando ‘os fundamentos da sociedade são ameaçados’. (...) Uma natureza vigilante e reativa.
O conservadorismo é uma ‘ideologia posicional’. (...) Procura enfrentar uma necessidade histórica específica. (...) ‘Ideologia de emergência’.
Os revolucionários, alicerçados em doutrinas políticas abstratas sobre os ‘direitos dos homens’, encaravam a comunidade como se esta fosse uma carta branca para as suas visões de perfeição. (...) Quando está em causa a perfeição da humanidade, faz parte do processo revolucionário não questionar a desmesura dos meios e a ferocidade com que eles são aplicados. O prêmio final seria demasiado precioso para inspirar condutas de moderação. (...) [E aí] ‘Os meios criminosos, uma vez tolerados, são rapidamente os preferidos’.

Imperfeição humana
Primeiro princípio estrutural do conservadorismo: a imperfeição humana ["restrito" de Sowell]
Não é necessário apelar para a Cidade Celeste de forma a explicar as imperfeições da terrestre. [de forma geral, princípios conservadores podem ser anteriores aos religiosos; não precisa ser religioso para ser conservador].
Desautorizam "projetos de mudança grandiosos e abstratos levados a cabo por pensadores isolados das realidades práticas da vida política".
A complexidade dos fenômenos sociais não pode ser abarcada, muito menos radicalmente transformada rumo à perfeição, por matéria tão precária [o homem]. Não se pretende com isso dizer que a ideologia conservadora nega a possibilidade de melhoria das condições terrenas - isso seria, no mínimo, historicamente obtuso. Porque a crítica conservadora não poderá ser confundida com uma crítica antirracional.
A crítica conservadora lidará não com a razão, mas com o racionalismo, entendido com uma subversão da razão, (...) com a ambição desmedida de atribuir à razão a tarefa hercúlea de construir e reconstruir a sociedade humana de forma radical e perfeita. Não é a razão per se que inspira a crítica conservadora; é, tão só, a arrogância do racionalismo moderno e a sua ideia nefasta de "possibilidade infinita" ["irrestrita" de Sowell]. (...) própria de quem se deixa embriagar pela "filosofia da vaidade" - a vaidade do otimismo racionalista.
Consequências imprevistas da ação social: (...) óbvias limitações epistemológicas do agente político, que muitas vezes erra na análise da situação que se lhe apresenta, ou na escolha do melhor curso de ação a seguir ou na forma como executa essa ação.
Sabemos menos do que pensamos e erramos mais do que devemos. "Sabe pouco da humanidade aquele que não concede um desconto à nossa comum e inevitável fraqueza".
Consequências fortuitas: (...) conhecimento que não possuímos porque não o PODEMOS obter antecipadamente.
E, mesmo que o fossem, como garantir que existe uma ligação direta entre aquilo que se deseja, por mais nobre que seja, e aquilo que se obtem no final? Não haverá sempre a possibilidade de um lamentável abismo entre as (melhores) intenções e as (piores) conclusões?
Espera-se de um estadista que ele possa exibir certas virtudes que estão ausentes nas condutas de revolucionários. Humildade e prudência.
Não se pretende sustentar que a posição conservadora remete toda e qualquer ação humana para o inevitável fracasso. O ceticismo conservador não é uma forma de fatalismo, nem a rigor de pessimismo. (...) Há consequências imprevistas (e imprevisíveis) que podem ser indesejadas (e indesejáveis). (...) A política não é um jogo de cassino.
Avançar sempre "sensível à sua própria cegueira" e com um apurado "sentido de sua própria fraqueza". (...) Terá em conta o inescapável papel das tradições e das circunstâncias.

O sentido da realidade
"Por mais absorto que um general esteja na elaboração das suas estratégias, às vezes é importante levar em consideração o inimigo". (...) A importância das circunstâncias.
Desautorizar esse violento repúdio ao presente que parece definir a teoria e prática de revolucionários ou reacionários.
"Nada de universal pode ser racionalmente afirmado sobre qualquer assunto moral ou político".
Essa capacidade para entender a realidade tal como ela é e não como deveria ser à luz dos nossos projetos, desejos ou sentimentos particulares - o estadista "realista" não surge perante a comunidade "possuído pelo seu brilhante e coerente sonho" e interessado em submeter todos a esse sonho.
Legou ao pensamento conservador sua maleabilidade. [não flerta com "incoerência"?]
Burke vislumbrou na Revolução Francesa o seu caráter perfectibilista e destrutivo (ou destrutivo porque perfectibilista).
Cada situação, cada circunstância, convida a uma resposta particular.
O conservadorismo britânico se orgulha por adotar inovações de esquerda quando elas mostram a sua validade perante os testes da experiência e as necessidades do momento.
A maleabilidade às circunstâncias (...) será a expressão mais evidente do seu pluralismo político.
Um conservador pluralista tenderá sempre a negar prioridade a um único valor ou a um conjunto de valores sobre os demais. [no momento, isso me deu um grande nó; não aceitei fácil. Mas, principalmente após Kirk, entendi melhor].
Admitindo, porém, que outras comunidades podem abraçar outros valores. [não precisa impor "sua verdade"; Kirk também bate muito nisso quando critica ideia americana de impor "sua" democracia pro resto do mundo].
Não é função do estadista conceder a determinados valores, sempre e em qualquer contexto, primazia sobre os restantes.
Uma vez afastada a "falácia agregadora" de que fala Scruton (...), ao estadista cabe a função mais modesta de escolher e equilibrar valores múltiplos e concorrentes. (...) "A total liberdade para os lobos é a morte para os cordeiros".
Conforme relembra Scruton, perguntar qual a melhor forma de governo em abstrato convida sempre à atitude do ateniense Sólon, que devolveu a pergunta com novas perguntas: "Governo pra quem? E em que tempo?".
[É claro que] A maleabilidade poderá abrir-se à crítica recorrente de que o conservadorismo não será mais do que uma forma de relativismo cultural e até ético...
Concepção universal de natureza humana que indicará não aquilo que os indivíduos devem fazer, mas o que eles não devem nem podem fazer.

Os testes do tempo
Só aqueles que nada estimam podem abraçar entusiasticamente a mudança, qualquer mudança, em qualquer circunstância.
A duração não é valiosa para aqueles que pensam que pouco ou nada foi feito antes do seu tempo. Pelo contrário: a antiguidade dessas tradições e instituições era um motivo suplementar para que elas fossem inapelavelmente destruídas. Como se essa antiguidade fosse expressão de um defeito intrínseco.
Parece existir no moderno pensamento liberal a ideia radical de que todas as tradições são "invenções" (...), que podem ser "reinventadas", substituídas ou pura e simplesmente destruídas.
Mas as tradições que importam a um conservador não são apenas as que resultam ou resultaram de um ato consciente de criação humana. (...) porque sucessivas gerações encontraram nelas vantagens que aconselharam a sua manutenção.
Obviamente que, nessa atitude, o conservador sabe que nem todos, no tempo presente, podem desfrutar desses arranjos - o conservador não é um personagem de Voltaire, acreditando que vive no melhor dos mundos possíveis.
O conservador não é estranho a situações de pobreza e exclusão que impedem muitos seres humanos de beneficiar do patrimônio moral e institucional de uma sociedade. Porém, a única forma de estender futuramente esse patrimônio aos mais desfavorecidos não significa, logicamente, destruí-lo. Significa, antes pelo contrário, preservá-lo (e às vezes reformá-lo) de modo que as gerações vindouras possam ter "uma casa, e não uma ruína".
As tradições (...) permitem ao indivíduo (...) entrar na "grande conversa da humanidade".
As tradições que cobrem a "natureza nua" dos indivíduos com as vestes do costume e do hábito.
Alargar os horizontes limitados do estadista presente, alertando-o para a sua circunstancial pequenez humana.
Relembrar aos vivos a sua natureza transitória num mundo que não lhes pertence, exceto por empréstimo.
"Sabedoria sem reflexão" - uma forma de designar os preconceitos que todos temos e de que todos precisamos.
Acontece que os "preconceitos" que interessam a um conservador não podem ser entendidos, ou confundidos, com meras ideias irracionais sobre determinados comportamentos, minorias ou indivíduos - o sentido atual e rasteiro do termo. Se todas as palavras também tem uma tradição, importa recordar que "preconceito" deve ser entendido no sentido clássico, ou seja, como praejudicium - um precedente ou um julgamento baseado em decisões ou experiências passadas que, pela sua validade comprovada, informam decisões ou experiências presentes e futuras. (...) válidos porque testados.
As tradições são também o ponto de partida para qualquer atitude reformista. (...) Uma sociedade incapaz de conservar é uma sociedade incapaz de se reformar.

A reforma prudente
"Para que mudar, se as coisas já estão tão ruins?" [Da piada] se conclui que a inação será sempre preferível a qualquer ação inevitavelmente destrutiva. (...) Levou demasiado longe uma caricatura.
[Críticas aos conservadores:]
"Tese perversa" (:...) acabarão sempre por gerar perversamente o oposto dos objetivos que se propunham alcançar.
"Tese fútil" (:...) serão apenas "superficiais" (mudanças de fachada, digamos).
"Tese ameaçadora" (:...) para que mudar se as coisas não estão tão ruins?
A revalorização das "consequências fortuitas" não equivale à afirmação de que tudo resultará necessariamente no seu contrário. (...) Os resultados de qualquer mudança apresentam sempre uma margem de imponderabilidade que tanto pode frustrar o agente, como contentá-lo muito além das suas melhores intenções originais. (...) Há acasos felizes.
Outras ideologias rivais (e racionalistas) defendem com preocupante otimismo que tudo está condenado ao sucesso desde que os homens tragam os problemas da sociedade perante o tribunal último de uma "razão clara e distinta".
Um organismo vivo, dotado de vida própria, ou seja, de evolução e transformação.
Reconhecendo que a mudança é inevitável em qualquer sociedade composta por seres vivos, Disraeli afirma que ela não deve proceder de doutrinas gerais ou princípios abstratos (e arbitrários). As mudanças devem fazer-se por referência (e em deferência) "às maneiras, aos costumes, às leis, às tradições de um povo".
Um princípio seguro de conservação e um princípio seguro de transmissão, sem excluir um princípio de melhoria. Conservação, transmissão, melhoria: a ordem dos fatores não é arbitrária.
"Um estado sem a possibilidade de alguma mudança é incapaz de se conservar", diz Burke. (...) A reforma é necessária para se preservar (e melhorar) o que se encontra em risco.
A importância preventiva da reforma para que se evitem situações potencialmente revolucionárias. (...) A reforma será especialmente relevante para um conservador avesso ao radicalismo político.
É importante estender quantitativamente essas condições, de forma a evitar que um elevado número de indivíduos atue radicalmente porque nada tem a perder e tudo a ganhar. (...) "Para que possamos amar o nosso país, nosso país deve ser amável".
Sobre as mudanças exógenas, o conservador deve ter em conta que a inovação traz sempre uma perda inevitável e um ganho possível, o que significa que cabe a quem propõe a referida mudança mostrar claramente as vantagens da inovação sobre as certezas da tradição.
A inovação deve partir de uma situação concreta, não de mero desejo abstrato. Deve ser resposta a um defeito preciso. Deve ser pequena e parcelar. Deve operar-se lentamente e ser acompanhada passo-a-passo.
Fazer uma distinção, nem sempre fácil, entre as imperfeições toleráveis e as imperfeições intoleráveis (...), distinguir coisas acidentais de causas permanentes, na medida em que nem todas as irregularidades constituem um "desvio total".
"A ciência de construir uma comunidade ou de renová-la ou de reformá-la é como qualquer outra ciência experimental, algo que não pode ser ensinado a priori" - Burke
As reformas atempadas [prudentes] são feitas "com o sangue frio" e não precipitadas por "estados de inflamação", típicos da mentalidade revolucionária e destrutiva.
Capaz de separar o todo da parte em falta, reformando-se a parte em falta sem alterar a substância do todo.
Karl Popper - engenharia "parcelares": (...) avaliar no prazo devido as consequências mais tangíveis de cada ação reformista antes de se avançar para uma nova ação do mesmo tipo.
Imperfeição intelectual (...), humildade política, (...) afastar do horizonte da espécie humana qualquer ambição perfectibilista ou utópica.

A "sociedade comercial"
A direita nunca vislumbrou no capitalismo o tipo de vícios desumanos que a esquerda se especializou em detectar e denunciar. Acontece que, para espanto desses mesmos espíritos, seria possível escrever um longo manual anticapitalista só com autores conservadores.
É possível articular uma defesa conservadora da "sociedade comercial"sem haver qualquer contradição entre os termos.
Se a função de um governo é respeitar, por princípio, a natureza humana, importante é também que ele respeite uma das propriedades fundamentais dessa mesma natureza: (...) propensão para negociar, permutar ou trocar uma coisa pela outra.
A vontade e a necessidade humanas de mercadejar eram das mais "autênticas" paixões naturais, e só um poder político tirânico podia suspendê-las ou destruí-las.
O conservadorismo portanto deve começar por respeitar a natureza dos homens, (...) num sistema em que são as escolhas naturais e livres dos indivíduos, e não a imposição autoritária de um padrão único de preferências ou comportamentos.
"Os resultados econômicos [do mundo ocidental] são melhores porque a filosofia moral é superior. É superior porque começa pelo indivíduo, pela sua singularidade e pela sua capacidade de escolha." - Thatcher
"Capacidade de escolha" parece colidir com "legisladores da humanidade". (...) O capitalismo  não parece despertar o mesmo fervor que outros ideais econômicos ou éticos. Não existe uma dimensão "transcendente" no capitalismo.
Um conservador valoriza uma "sociedade comercial" , não por motivos transcendentes - antes por motivos empíricos e imanentes. (...) A "sociedade comercial" funciona. Funciona duplamente: na criação e na distribuição de riqueza e, além disso, como expressão das livres aspirações humanas.
O mercado livre, mais do que uma ameaça a tradições estabelecidas, deve ser visto com uma tradição estabelecida (...) sobreviveu aos sucessivos "testes do tempo". (...) "ordem espontânea" (...) emergiu natural e espontaneamente pela interação livre e obviamente incontrolada dos seus diferentes elementos.
A mentalidade monista do intelectual secular convive mal com indivíduos que procuram livremente os seus fins de vida sem atenderem às recomendações paternalistas e tantas vezes autoritárias de uma elite política, filosófica ou religiosa.
O respeito pela liberdade das escolhas humanas não pode ser confundido com uma reverência acrítica a qualquer resultado.
A imperfeição humana que define os homens determinará muitas vezes lamentáveis condutas - e lamentáveis consequências. (...) Ninguém celebra a liberdade de um louco que fugiu de sua cela para aterrorizar a vizinhança. (...) Sublinhar a impossibilidade de aferirmos a qualidade de um valor apenas tendo em conta a "nudez e o isolamento da abstração metafísica". [talvez uma boa resposta à 'maleabilidade de valores']
Será também aconselhável (...) que o açougueiro, o cervejeiro e o padeiro exibam certas virtudes que o mercado tende a reconhecer e a premiar. (...) Valores como disciplina (e autodisciplina), confiança (e auto confiança), honestidade. (...) A moralidade dos mercados. "Viver numa economia de mercado encoraja certas formas de comportamento virtuoso".
E quando esse comportamento não é virtuoso? (...) Questionar se (...) as falhas morais são anteriores a qualquer participação no sistema e que podem igualmente emergir em contextos exteriores ao próprio mercado.
Imputar ao mercado comportamentos reprováveis do ponto de vista ético mais não é do que um lamentável expediente para desculpabilizar moralmente os indivíduos. (...) Convém não desprezar a influência prévia que as famílias, as escolas, as igrejas e todos os restantes "pequenos pelotões" desempenharam (ou não) na formação moral de um caráter. (...) O que somos dentro do mercado depende do que fomos (e somos) fora dele.
Uma lembrança especialmente importante para os herdeiros libertários de Adam Smith (... :) o Estado é a mais importante instituição para o bom funcionamento de uma "sociedade comercial". Porque só o Estado garante a defesa da paz e da ordem; a construção onerosa de grandes infraestruturas que não podem depender apenas do voluntarismo da iniciativa privada; e a administração independente da justiça, capaz de defender a propriedade privada, o respeito pelos contratos firmados ou a punição de crimes e abusos cometidos.
"O governo também tem o claro dever de ajudar a cuidar dos doentes e dos velhos e de providenciar uma rede de proteção para todos aqueles que, sem culpa alguma, caem no desemprego, na pobreza e na privação." - Thatcher

Conservadores ou monomaníacos: uma conclusão
Ignorância ou má-fé (...) "Conservador" e "fascista" são termos incompatíveis entre si. (...) Fascismo, assim como o comunismo, adquire contornos inapelavelmente revolucionários e utópicos.
A ação revolucionária, pelo contrário, obedece antes a um "princípio de preguiça": a preguiça de quem é incapaz de pacientemente estudar e reformar a comunidade real, optando antes por "atalhos" e pelas "facilidades falaciosas" da destruição e recriação totais.
O conservadorismo, como ideologia reativa que é, define-se pela sua atitude geneticamente antiutópica.
Pela defesa da imperfeição intelectual humana perante a complexidade e as contingências com que nos confrontamos no ato de governar; pelo reconhecimento das diferentes concepções do bem que definem as sociedades abertas, democráticas e pluralistas; pelo respeito às tradições úteis e benignas que sobreviveram aos diferentes "testes do tempo"; pela apologia de uma atitude reformista que seja capaz de evitar a degradação do "edifício" que se procura conservar; e pela valorização e proteção de uma sociedade comercial.
Desautorizar a procura por ideais utópicos (...) porque (...) assentam na arrogância própria de quem se considera onipotente e onisciente ignorando "a sua própria cegueira".
O que move Burke é a perigosa ideia de "plasticidade" do mundo e da natureza dos homens, como se ambos pudessem ser objeto de transformação radical.
Modesto e prudente.
Não cabe ao poder político decidir a hierarquia de valores sob a qual todos os indivíduos terão de viver as suas vidas. Porque são os indivíduos que vivem essas vidas. [não abre brecha pra falar que aborto é uma questão pessoal, então? Poder político pode impor valor da vida como primazia?]. (...) Confronto com outras tradições conservadoras de natureza monista, ou seja, defensores da aplicação de um valor ou de um conjunto de valores absolutos.
"Uma moralidade mínima que proíbe o homicídio, a agressão, o roubo e a mentira é igualmente aceita por liberais e tradicionalistas". [isso já não é uma hierarquização?]
O reconhecimento de uma natureza humana comum será também uma forma de repetir a velha máxima de que, em cada destino amargo, poderia também estar o meu destino.
Definir a específica (e limitada) vocação de um governo: (...) sobretudo aquilo que ele não pode nem deve fazer.
O que um governo conservador não pode nem deve fazer é "impor atividades substantivas" sobre terceiros, como se a vida alheia pertencesse a um dono sem rosto.
Para um conservador, o imperativo da continuidade é mais importante do que a promessa de que algo irá triunfar.
É perfeitamente possível ser um conservador em política e um radical em todo o resto.
Eis talvez o mais importante princípio de uma sociedade política tolerável: evitar que o poder seja exercido por monomaníacos [radicais].