sexta-feira, 20 de abril de 2018

O pecador e o pecado


"Nenhum homem sabe realmente o quanto é mau até se esforçar muito para ser bom. Circula por aí a ideia tola de que as pessoas virtuosas não conhecem as tentações. Trata-se de uma mentira deslavada. Só os que tentam resistir às tentações sabem quão fortes elas são. Afinal de contas, para conhecer a força do exército alemão, temos de enfrentá-lo, e não entregar as armas. Para conhecer a intensidade do vento, temos de andar contra ele, e não deitar no chão. Um homem que cede à tentação em cinco minutos não tem a menor ideia de como ela seria uma hora depois. Por esse motivo, as pessoas más, em certo sentido, sabem muito pouco a respeito da maldade. Na medida em que sempre se rendem, levam uma vida protegida. É impossível conhecer a força do mal que se esconde em nós até o momento em que decidimos enfrentá-lo." - Cristianismo Puro e Simples, CSLewis.

Acho que começamos a entender a Palavra de Deus quando, nas histórias da Bíblia, começamos a nos identificar com a figura 'má', não com o bonzinho. Quando deixamos de nos ver como o filho mais velho e nos percebemos o filho pródigo. Quando deixamos de nos ver como Abel e nos percebemos Caim. Quando deixamos de nos perceber como São Dimas - o bom ladrão - e nos percebemos como o ladrão mau. Quando deixamos de nos perceber como o pecador que reza baixinho e sim como o hipócrita que bate no peito rezando alto.

A Mensagem é muito clara no sentido de que devemos odiar o pecado, mas continuar amando o pecador. Isso parece uma 'solução' muito difícil: como conseguir essa distinção? Até percebermos que fazemos exatamente isso conosco a vida toda. Amamo-nos apesar de ser quem somos.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Amigos do Acaso


O ser humano tem a mania de justificar seus sucessos pela própria competência – e não por sorte – e a justificar seus fracassos pelo azar – e não pela incompetência [NTaleb]. Isso é uma espécie de autoengano, que pode funcionar por muito tempo, mas - acredito - alguma hora vai bater e machucar.

Em um sociedade meritocrática, onde comemoramos apenas conquistas, isso pode não soar bem. Não me entendam mal. Não existe sociedade bem sucedida sem meritocracia. Incentivos (e analogamente punições) são absolutamente necessários para civilização. Mas a ideia desse texto é trazer um pouco de humildade. Lembrar que muito do que nos leva ao sucesso não é exatamente mérito nosso. Sacrifício de pais, esposas, maridos, filhos, professores, outros funcionários, amigos. Mas quero ir além, entrando um pouco nos campos filosófico e até religioso. Mesmo os "próprios méritos" que nos levam ao sucesso são, em certa medida, mero acaso. Para se formar em Engenharia, por exemplo, é preciso alguma proficiência em matemática. É verdade que matemática tem muito de transpiração (além da inspiração inata), mas sem a semente do conhecimento, sem esse "dom", provavelmente 20 horas de estudo por dia não bastariam. E esse dom é uma graça gratuita. Ganhamos por acaso. Vejam bem. De modo algum quero desmerecer as conquistas. Muitos receberam os dons que tivemos e não fizeram nada com eles. E aquele que não faz uso de todo o potencial de sua vida, de alguma maneira diminui o potencial de todos os demais [NBonder]. Por isso, também a importância de uma sociedade meritocrática, que incentive o sucesso de pessoas bem dotadas. Mas entender, ou aceitar, ou pelo menos considerar que talvez a gente tenha tido certa sorte, torna os sucessos ainda mais especiais. Porque adiciona à felicidade da conquista laboriosa um sentimento de gratidão.

Em suma, sejamos amigos do acaso. Minha mensagem em todo esse texto é basicamente essa.

Este é o mal que há em tudo o que acontece debaixo do sol: O destino de todos é o mesmo. O coração dos homens, além do mais, está cheio de maldade e de loucura durante toda a vida; e por fim eles se juntarão aos mortos. (...)
Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois o tempo e o acaso afetam a todos.
- Eclesiastes 9

Sejam amigos do acaso. Mas lembrem-se que amizade requer uma atitude ativa. Tudo que falei até agora não significa ficar esperando a sorte no sofá. O vento apaga uma vela mas atiça a fogueira. O mesmo acontece com a aleatoriedade: queremos usá-la, não fugir dela. [NTaleb]. Isso significa se expor ao bom acaso. Quero me ater um pouco mais a esse ponto. Já conversei bastante sobre acaso com amigos e alguns reagiram de forma meio maniqueísta: 'Ah, se o acaso é quem manda, então não temos o que fazer!'. Não. Não é isso que eu disse e não é isso que eu acho. Tem um monte de frase bonitinha na internet sobre isso ('você não escolhe o que a vida faz com você mas escolhe o que faz com aquilo que a vida fez com você') ou mesmo em qualquer entrevista de atleta americano após uma derrota ('we have to control just what we can control'). São chavões, mas são verdadeiros. O argumento aqui é que o modo como a gente encara o acaso interfere na influência real do mesmo em nossas vidas. Permitam-me um exemplo pessoal rápido. Um dos dias mais tristes da minha vida foi quando tive que demitir um amigo por estar usando crack no trabalho. À noite no mesmo dia, num aniversário, ainda meio abatido, conheci uma amiga de uma amiga que trabalhava com dependência e acabei desabafando um pouco com ela. Essa moça é minha esposa há 5 anos e mãe de 2 belos filhos. Foi a essência do limão virando limonada. O azar de ter um amigo dependente foi quase que a 'chave de leitura' para a sorte de ter encontrado minha esposa.

Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires
tratar da mesma forma a esses dois impostores. (...)
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!
- Rudyard Kipling

Sejam amigos do acaso. Ser amigo do bom acaso, ser amigo da sorte, é ser humilde. Isso seria razão suficiente. Mas tem seu inverso. Alguma hora, os dados vão cair pro outro lado. Alguma hora, o azar vai nos pegar e, nesse momento, a humildade no sucesso de outrora vai nos dar bagagem para ser altivo no fracasso presente. Todos seremos vítimas de alguma injustiça na vida - condição social no nascimento, beleza estética prejudicada, trapaça no trabalho, traição, doença, algum crime; o problema não é se perceber vítima; o problema é o ressentimento que essa vitimização pode causar [TDalrymple]. Sem serenidade, com ressentimento, a tendência é alguma tentativa de vingança ou reparação. E com isso, o mundo fica pior. Mas, pior que o mundo pior, é a gente ficar pior. Não dá para arrumar o mundo sem arrumar sua casa; não dá para arrumar sua casa sem arrumar sua cabeça [JPeterson].

Se todos os nossos infortúnios fossem colocados juntos e,
posteriormente, repartidos em partes iguais pra cada um,
ficaríamos muito felizes se pudéssemos ter,
de novo, apenas aqueles nossos."
- Sócrates

A maior crítica que alguém pode fazer a meritocracia é o corolário de, ao afirmarmos que alguém MERECE o sucesso, termos que dizer que outro alguém MERECE o fracasso [ABotton]. Daí, o "azarado" (conotação neutra) do passado ter virado o "loser" (conotação negativa) do mundo atual. Mas justamente nesse ponto, sendo amigo do acaso, percebi que uma relação amigável - não revoltada, não ressentida - com o acaso permite entender melhor as injustiças alheias. Passamos a ter empatia, por exemplo, pelos mais pobres que, inevitavelmente, terão menos oportunidades na vida (embora, parêntesis, o atual regime capitalista meritocrático ainda seja o que mais oferece chances para esses 'azarados'), mas sendo amigo do acaso, percebemos que esses infortunados não são pessoalmente culpados pelo próprio azar. Por outro lado - e na polarização ideológica atual, isso é crucial - entendo também que EU não sou pessoalmente culpado pelo azar de ninguém. Nem culpa criminal, nem política, nem moral, nem mesmo metafísica [KJaspers]. Claro que ausência de culpa não significa indiferença. Mas tratar a situação sem estar 'acuado pela culpa' é um bom começo. [Na tragédia,] Entendendo a 'inversão de sorte', sentimos piedade pelo herói e medo por causa da identificação com ele. A tragédia nos ensina a ter modéstia sobre nossa capacidade de evitar o desastre e, assim, ter empatia por quem o encontrou [Alain de Botton]. Essa empatia sem culpa, esse entendimento sem coitadismo, aos poucos, pode restabelecer uma sociedade mais baseada em caridade e voluntariedade do que em deveres e direitos [RWeaver]. 

Ninguém quer ser tolo.
Também, ninguém quer ser perverso.
Mas se não queremos ser tolos de jeito nenhum,
acabamos por nos tornar indivíduos bem perversos.
E o contrário também.
- Nilton Bonder

Sejam amigos do acaso.
Coluna ereta e olhar firme no fracasso, sem ressentimento, sem autocomplacência, sem inveja. Serenos.
Coluna ereta e olhar firme no sucesso, sem orgulho, sem autobajulação, sem perversidade. Humildes.


Quem acusa os outros pelos seus próprios infortúnios revela uma total falta de educação; quem acusa a si mesmo mostra que sua educação já começou; mas quem não acusa nem a si mesmo nem aos outros revela que sua educação está completa.
– Epíteto

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Luta solitária

Tenho certa aversão à necessidade de criticar (potencialmente) a direita quando se critica (factualmente) a esquerda. Mas a pensata abaixo, retirada do twitter do @lucasmafaldo me pareceu muito boa e 'intelectualmente honesta'.
Repito na íntegra o que está na sequência aqui.
____

O problema do petismo não está nas políticas públicas, mas em uma mentalidade de alguns de seus membros e de muitos grupos políticos -- o que, infelizmente, atinge tanto a esquerda quanto a direita. O primeiro elemento dessa mentalidade é a convicção que o mundo é fundamentalmente mau e que toda relação pode ser caracterizada como uma disputa entre oprimidos e opressores.
Essa interpretação não deixa de ter uma base na realidade, pois a natureza da existência, afinal, é bastante desigual -- sempre tem alguém com mais dinheiro, mais beleza, mais contatos. Porém, em vez de considerar que isso é parte da vida, os utópicos ficam... putos. Eles acham que tudo é uma Grande Sacanagem. E que alguém é pessoalmente culpado pelo fato do mundo andar torto.

Aí chegamos no segundo elemento: o utópico, por perceber e se revoltar contra a Grande Sacanagem, começa a se achar especialmente puro. Quanto mais odeia o mundo, mais bondoso ele se sente -- é o nascimento do famoso "ódio do bem".
Isso gera um sentimento tribal: as pessoas comuns, que vão tocando a sua vida, são vistas como "alienadas", sem "pensamento crítico". O utópico as olha cada vez mais com desprezo, pois não as vê lutando "contra tudo que está aí". Ele começa, então, a se sentir cada vez mais irmanado com os demais utópicos. Ele sente que sua verdadeira família é composta por aqueles que também lutam contra a Grande Sacanagem -- os revoltados, os indignados, os revolucionários.

E aí chega ao terceiro elemento: o utópico não quer resolver nenhum problema específico. Ele quer Resolver Todas as Coisas Ao Mesmo Tempo. Isso mesmo: ele quer uma solução total, global, definitiva. Aos seus olhos, as pessoas comuns são egoístas e pequenas, pois se ocupam apenas dos males que estão diante de si. Ele chega até a odiá-las, pois começam a achar que elas, de algum modo, são cúmplices da Grande Sacanagem.

Essa tríplice combinação é, literalmente, infernal. Simplesmente não é possível resolver todos os problemas. Não é possível mudar a natureza da existência humana. Essas pessoas se acreditam puras, mas elas estão, na verdade, surtadas. E é um surto com consequências enormemente destrutivas. Elas criam alianças em torno desse ódio generalizado e começam a trabalhar incessantemente por causas impossíveis. Embora elas jamais cheguem aonde pretendem, elas fazem merda pra caramba no caminho.

Como eles acham que TUDO está errado e que são PUROS, eles concluem que o defeito fundamental do mundo é o fato de que eles ainda não possuem poder total. Afinal, se controlassem tudo, o paraíso chegaria à terra. Logo, a coisa certa a fazer é acumular poder a qualquer custo. Essa mentalidade sempre acaba em revolução e morticínio. Ela gera uma fome de poder insaciável. Toda lei, fato ou moral que se interrompa a caminhada para o poder deve ser atropelada. Ele serve como livre-conduto para roubo, mentira, manipulação e violência.
Em alguma medida, essa mentalidade está em quase TODOS os grupos políticos -- tanto de esquerda, como de direita. Ela pode perverter mesmo ideais bastante boas e causas realmente justas. Essa distorção ideológica está no centro do movimento socialista e foi uma das principais causas de mortes no século XX -- matando mais que o nazismo e o fascismo, que também são variações da mesma insanidade. E foi esse mesmo movimento, essa mesma psicopatia generalizada, que formou e alimentou o movimento socialista brasileiro. Por orientação direta, aliás, dos serviços secretos comunistas desde a década de 30, desbocando no petismo nos anos 80.

O que é realmente impressionante é a incapacidade da cultura de reconhecer a psicopatia como tal, de deixar movimentos maoístas -- que possuem como objetivo explícito degolar a todos nós -- circulando por aí. É uma prova que todo mundo está meio lelé da cuca. Obviamente, não quero insinuar que essa insanidade é exclusiva da esquerda. Mesmo muito direitistas e liberais brasileiros têm sucumbido à tentação utópica, achando que possuem a Solução Total, e fazendo um monte de merda pelo caminho.

A verdade é a seguinte, turma: não existe salvação nessa vida. O bem e o mal já estão dentro da gente. Nenhum movimento vai trazer o paraíso para a terra. A vida sempre será uma bagunça. Se houver salvação, é para depois que morremos. Enquanto isso, o que dá para ter certeza é o seguinte: o bem o mal são alimentados por cada concreto, específico, particular. Não há iluminação ou santidade permanente. Cada um precisa lutar sozinho para não virar um filho da puta. O resto é mentira e ilusão.

(Lucas Mafaldo)

Nada pessoal


Juan Carlos Osorio, em entrevista coletiva, disse certa vez: Aprendi a não tomar nada como pessoal. Na maioria das vezes, as críticas não são a mim especificamente, mas àquilo que eu represento. As críticas não são ao Osório, mas ao técnico; ou ao técnico estrangeiro; ou ao técnico com background acadêmico.
Aquilo me tocou. E tenho tentado aplicar à minha vida. Não tomar as coisas como algo pessoal. Nem sempre é fácil.
Personas. Somos personas. Somos personagens em cada cenário de nossas vidas. Vestimos máscaras. Representamos funções. A crítica, tomada como pessoal, pode afastar o desejo de continuar. Mas virá outra pessoa, representando aquela mesma função, e a crítica permanecerá. Se a função é necessária, haverá um personagem, e esse personagem será criticado.
Mas, oras, se a função é mesmo necessária, a crítica então será conseqüência natural, ato contínuo. Se a persona não agüenta, a estrutura – para a qual a função era necessária – cai.
(...)
Criticar é preciso. Aguentar a crítica... também.