Algumas perguntas das inúmeras discussões em que me meto às
vezes simplesmente ficam no ar. Uma dessas é a do amigo Fil, questionando os
motivos da minha religiosidade, ‘embora culto, sem doenças e sem necessidades materiais’.
Antes de tudo, é bom deixar claro que não sou ‘do tipo
pregador’, tão chato quanto os ateus pregando sua crença, a inexistência de
deus. Ou seja, não o incomodo (pelo menos, não nesse particular...). Outro fato
intrigante da pergunta-confronto é que esse amigo é muito ‘do bem’, segue uma
moral ou ‘bons costumes’ que uma mãe (ou uma religião...) gostaria de passar pr’um
filho. Mas me questiona...
Geralmente digo que, por trás dessa desconfiança no
sobre-humano por parte de um ateu, existe um excesso de confiança na razão
humana. E esse excesso de confiança no homem, essa auto-suficiência é tão
‘misteriosa’ (ou ‘questionável’...) que a confiança em um deus. Pois bem...
Acabei de ler ‘Temor e tremor’, de Soren Kierkegaard, um raro
filósofo existencialista e, ao mesmo tempo, religioso. Confesso que a leitura não
é fácil.
Cheguei ao autor através de um dilema interno entre idéias aparentemente
paradoxas, pelas quais sou simpático: a ausência de sentido da vida e a fé em
Deus.
O livro conta a história de Abraão - já em idade avançada, chamado
por Deus a sacrificar seu único filho, Isaac -, apresenta suas alternativas e as compara a alguns outros dilemas
famosos da História.
A passagem de Abraão é (erroneamente) simplificada da seguinte
maneira: ‘Abraão ofereceu o que tinha de mais valioso como prova de sua fé em
Deus’.
Kierkegaard discorda. A mensagem não é essa e destaca duas
grandes razões:
1) Um milionário que se desfaz de toda sua fortuna como
prova de amor a Deus também pode estar oferecendo o que tem de mais valioso, mas
definitivamente não revive a história de Abraão. Aí não há a angústia, não há a dúvida
doída e calada, questão central no drama de Abraão.
2) Ao contrário dos demais dilemas, nos quais a moral é ‘força
impulsionadora’ para coisa certa, na questão de Abraão a moral é justamente a tentação. Os costumes mandavam Abraão não matar seu próprio filho.
A história é o caminho pelo qual Kierkegaard desenvolve sua
noção de fé. Ele diz que antes da fé, é preciso uma resignação absoluta, um
completo aceitar. Acho que assim, ao invés de contrapor (como um paradoxo), ele consegue aliar a
ideia da religiosidade ao conceito de (ausência de) sentido da vida.
Gosto da parte em que diz que a fé é uma paixão e, como
toda paixão, deliciosa e carente de maiores explicações. Ainda: a fé se inicia
onde acaba a razão. (Uma boa explicação para religiosidade em diversos níveis
educacionais, isto é, cada pessoa com seu ‘limite de razão’).
Acho que é uma boa resposta, na medida do que é possível e preciso ser respondido...