Muita gente diz que o Brasil se tornou uma democracia pela metade. Um sistema que respeita a regra majoritária, alternância de poder, mas fragiliza garantias do estado de direito. De um lado, se diz que era preciso aceitar certos “excessos” do Judiciário, admitir a “experimentação regulatória”, na linguagem elegante do ministro Fachin, ou a censura em situação “excepcionalíssima”, como naquela decisão da ministra Cármen Lúcia. Tudo por um bom motivo. De outro, se diz que isto não passa de um exercício de autoengano. [...]
É precisamente aí que as coisas começam a mudar. Escrevi sobre tudo isso à época das eleições de 2018.[...] Para saber se nossos autoproclamados “democratas” estariam dispostos a reconhecer a legitimidade de um tipo de pensamento, valores e mesmo de uma estética diametralmente opostos a sua visão de mundo. Por óbvio, não estavam.
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O inquérito das fake news foi aberto já em março de 2019. [...] Houve um solitário voto contrário do ex-ministro Marco Aurélio, dizendo que o “Supremo não é sinônimo de absoluto”. Suas palavras se perderam na poeira. A partir dali, assistimos a tudo que estamos cansados de saber. [...]. Depois disso, tivemos a virtual edição do debate eleitoral, a partir da tese elitista sobre a incapacidade do “eleitor ordinário” para lidar com a “desordem informacional”.
Foi ao que assistimos. Acusar um candidato de corrupção? Só com decisão judicial. Lançar um filme? Só se passar pelo teste algo metafísico de “presunção de veracidade”, visto que nem sequer seu conteúdo era conhecido. No debate do PL das Fake News, as plataformas digitais foram duramente censuradas e impedidas de expor sua visão; um youtuber é banido, sem menção a lei alguma; um humorista é preso por meses, sob a mesma lógica da fraseologia seguida de pontos de exclamação, posta no lugar do direito. Muita gente acreditou na urgência de cada uma dessas atitudes, o que é em si mesmo um dado para nossa reflexão. Por que cargas d’água proibir a menção do sabido vínculo de Lula com ditadores latinos, como Maduro e Ortega, seria essencial à democracia? Qual a “grave ameaça” contida na discurseira do Monark, naquele tuíte do PCO ou das indagações do professor Marcos Cintra? O fato simples de que sempre foi perfeitamente falsa a oposição entre “respeitar direitos individuais” e “defender a democracia”.
Tudo isso vai muito além do tema da liberdade de expressão ou dos direitos individuais. A questão diz respeito ao próprio “equilíbrio na diversidade” [...]. O ponto é que a “exceção” se tornou política de Estado, no Brasil, e a questão é saber o impacto disso precisamente sobre a ideia de uma democracia inclusiva e aberta à expressão de nosso pluralismo político. E mais: se o que temos presenciado não é exatamente o que tantos temiam: nosso deslizamento para uma democracia de traços não liberais. Tipo difuso de autoritarismo fragilizando prerrogativas e direitos republicanos.
[...] mesmo podendo-se identificar excessos por parte do Judiciário, “a maioria da sociedade parece estar relativamente satisfeita com o desenho atual” que concede ao Judiciário uma “macrodelegação” de poderes. Sua análise é realista: “o custo marginal da mudança tem sido maior do que o do status quo”. De fato, o Senado vem se recusando a exercer controle sobre a ação do Supremo, boa parte do sistema político parece satisfeita com o modelo de tutela, e há apoio da sociedade civil. Somos um estranho país em que “garantistas” apoiam prisões de ofício e todo jogo interpretativo do direito, desde que a seu gosto. E onde [ …] boa parte da mídia apoia a censura.
Processos de “autocratização” e fragilização de garantias individuais não raro ocorrem assim: com suporte majoritário e cálculo, que vai do apoio à passividade, na elite política. É o caso brasileiro. Censura e quebra de prerrogativas são aplicadas homeopaticamente, e a cada vez produzem mais recuo e medo. Quanto se produz de autocensura, no jornalismo, quando um jornalista tem seu passaporte retido? Quanto se “disciplina” um parlamentar, quando um colega é banido? E quanto aquilo que é inaceitável, em um primeiro momento, vai ganhando ares de normalidade? Um blogueiro censurado em 2019? Grave. Um humorista preso em 2023? Indiferença.
[...] muita gente imaginou que havíamos enterrado o passado autoritário [...]. O fato é que não. [...] Andamos em um labirinto, cuja saída parece distante.
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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper