Trechos selecionados de A Vida na Sarjeta, de Theodore Dalrymple, especialmente do artigo 'E a faca entrou'.
“Fragrante destruição dos sólidos laços familiares nos mais
pobres, laços que, pela mera existência, faziam com que um grande número de
pessoas saísse da pobreza”.
“Os instrumentos para vencer a pobreza são sistematicamente
negados aos pobres de hoje, ao passo que são marteladas justificativas para que
permaneçam pobres. Essa verdadeira praga é baseada em ideologias que transferem
para terceiros – sempre ‘os outros’ – a culpa pelos seus problemas, o que, sem
dúvida, estimula vícios como a inveja, a revolta e o ressentimento”.
“Pessoas com vidas desprovidas de significados, já que não
são incentivadas a se orgulharem de conseguir pagar a própria comida e a
própria casa, como as gerações anteriores faziam. Em outras palavras, são
deixadas ao deus-dará e sem nenhuma noção de responsabilidade, em um mundo
relativista e extremamente carente de juízos de valor.”
“Retrata com clareza o quanto são erradas e nocivas as
políticas que estimulam os pobres a esse comportamento autodestrutivo.”
“Se queremos de fato combater a pobreza, a primeira coisa a
ser feita é tratar os pobres como seres humanos e não como boiada, dotá-los de
senso de responsabilidade individual e social e apresentar a eles a importância
dos valores morais tradicionais – como honestidade, trabalho, frugalidade e
respeito ao próximo – que, infelizmente, vêm sendo progressivamente
abandonados”.
“Alguns educadores, intelectuais e outros creem estar sendo
amigos dos pobres ao justificar ou ‘entender’ esse comportamento autodestrutivo
e ao estimulá-los a ter uma visão paranoica do mundo que os cerca”.
“Essa é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não
correm bem – muitas vezes por culpa de nossos próprios excessos – pomos a culpa
de nossos desastres no sol, na lua e nas estrelas, como se fôssemos celerados
por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e traidores
pelo predomínio das esferas; bêbedos, mentirosos e adúlteros, pela obediência
forçosa a influências planetárias, sendo toda nossa ruindade atribuída à influência
divina... Ótima escapatória para o homem, esse mestre da devassidão,
responsabilizar as estrelas por sua natureza de bode!” – William Shakespeare,
Rei Lear, Ato I, Cena II
[Sobre comportamentos autodestrutivos e círculos viciosos da 'subclasse']: “O determinismo econômico (...) dificilmente parece dar uma
resposta. (...) O determinismo genético ou racial não é melhor. (...) O Estado
previdenciário (...) pode ter sido a condição necessária para tal ascensão:
tornou-a possível, não inevitável. (...) Mas o ingrediente adicional é
encontrado no campo das ideias.”
“A frequência de locuções de passividade é um exemplo
surpreendente. Um alcoólatra, ao explicar sua conduta quando bêbado, dirá: ‘A
cerveja é muito doida’. Um viciado em heroína, ao explicar seu recurso à
agulha, dirá, ‘tá tudo dominado pela heroína’, como se a cerveja bebesse o
alcoólatra e a heroína se injetasse no viciado. Possuem uma função
justificativa e representam a negação do agente e, portanto, da
responsabilidade pessoal. O assassino alega que ‘a faca entrou’ ou que ‘a arma
disparou’. O homem que ataca a parceira sexual alega que ‘ficou muito doido’ ou
‘perdeu a cabeça’, como se fosse a vítima de uma espécie de epilepsia. (...)
Até a ‘cura’, é claro, ele pode continuar a maltratar (...) certo de que é ele,
e não a parceira, a verdadeira vítima. Passei a ver essa desonestidade e
autoengano como parte essencial do meu trabalho. Quando um homem diz-me, como
explicação para seu comportamento antissocial, que ele se deixa levar
facilmente, pergunto-lhe se alguma vez se deixou levar pelo estudo da
matemática ou do subjuntivo dos verbos franceses. (...) O absurdo do que ele
disse se torna aparente para ele mesmo. (...) mas existem algumas vantagens,
psicológicas e sociais, decorrentes da manutenção dessa farsa.”
“Não muito tempo depois que os ~teóricos da criminologia~
propuseram a teoria de os criminosos reincidentes possuírem um desejo
~compulsivo~ pelo crime (...), um ladrão de carros, de inteligência limitada e
de pouca educação, pediu-me que tratasse de sua ~compulsão~ de roubar carros e,
ao não receber tal tratamento, é claro, via-se moralmente justificado para
continuar a livrar os donos de carros de suas propriedades”.
[Sobre um relacionamento] “’Não deu certo’, dizem, e o que não deu certo foi o
relacionamento, que concebem como algo possuidor de existência independente das
duas pessoas que o compõem”.
“Revelar a origem dessa realidade, que é a propagação de
ideias más, insignificantes e insinceras. (...) É importante lembrarmo-nos de
que, caso haja culpa, uma grande parte é devida aos ~intelectuais~. Não
deveriam ter sido tão tolos, mas sempre preferiram evitar-lhes o olhar.
Consideraram a pureza das ideias mais importante que as reais consequências.
Desconheço egotismo mais profundo.”
“Lamúria escusatória. (...) Fatalismo desonesto. (...) Fico
tomado de surpresa pela pequeníssima parte que atribuem aos próprios esforços,
escolhas e ações. (...) Descrevem-se como marionetes do acaso”.
[Como se a] “A vítima do esfaqueamento, no entanto, é que
foi o verdadeiro autor da ação homicida: se ela não estivesse lá, ele não teria
a matado.”
“O modo de o prisioneiro apresentar-se ao público muitas
vezes guarda semelhança com o retrato que deles fazem os progressistas. É como
se dissessem: ‘Vocês querem que eu pareça vítima das circunstâncias? Pois bem,
para vocês serei vítima’”.
“Auto-engano (...) o orgulho e o amor-próprio não tem
dificuldade de superar a memória. (...) A facilidade com que as pessoas
rejeitam a responsabilidade por aquilo que fizeram – a desonestidade
intelectual e emocional sobre as próprias ações – que aumentou enormemente nas
últimas décadas.”
3 possíveis motivos:
- Legião de pessoas cujas rendas e carreiras dependem da suposta incapacidade de outras pessoas
- Ampla disseminação de conceitos psicoterapêuticos adulterados ou mal-interpretados: se a pessoa não conhece ou compreende os motivos inconscientes dos próprios atos não é verdadeiramente responsável por eles
- Classes médias abarrotadas de culpa
“É bastante verossímil para abalar a confiança das ~classes
médias~ que o crime é um problema moral e não um problema de disposição de
ânimo.”
“O próprio modo de explicação oferecido pelos progressistas
para o crime moderno – que parte das condições sociais direto para o
comportamento, sem passar pela mente humana – oferece aos criminosos uma
desculpa perfeita.”
“O comportamento antissocial não aumenta na proporção das
desculpas criadas pelos intelectuais?”
“As pessoas, longe de se acharem extremamente afortunadas se
comparadas a todas as populações anteriores, passam a acreditar que vivem nos
dias atuais na pior das épocas e sob os mais injustos regimes.”
“A noção disseminada de que a desigualdade material é, em
si, um símbolo de injustiça institucionalizada também ajuda a fomentar o crime.
(...) Se a propriedade é um roubo, logo, o roubo é uma forma de justa
retribuição. Isso leva ao desenvolvimento de um fenômeno extremamente curioso:
o ladrão ético.”