quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Aborto

Inicio a discussão com uma proposta empática: colocar-se no lugar do outro.
Pessoas pró-aborto, quais são as razões que vocês acham que leva um não-abortista a ter essa outra opinião? São um bando de filhadaputa que quer ver pobre morrer? São os vingadores do tipo 'trepou-agora-aguenta'? São religiosos fundamentalistas irracionais?

Claro que não. Essa simples pergunta talvez estabeleça uma ponte pra conversa. Vamos ponto por ponto.

O principal argumento do pró-aborto, ou melhor, o mais utilizado, é sobre as várias (A1) mortes de mulheres pobres que fazem aborto clandestino. Embora alguns números divulgados sejam bem chutados, o ponto é mais conceitual. A refutação desse argumento pode se dar pelo menos de duas maneiras. Primeiro, (CA1a) o fato de uma parte da população (ricos) conseguir cometer o crime de forma bem sucedida (enquanto outra - pobre - não consegue) não pode ser motivo para mudar a definição do crime (Estratagema de Schopenhauer: tomar a prova pela tese). A rigor, há uma série de crimes que são majoritariamente praticados por ricos (de bate-pronto: corrupção, estelionato, dirigir bêbado e matar,...) e que, nem por isso, devem deixar de ser crimes. Outro problema no argumento é (CA1b) pressupor que a rede pública resolveria a questão das mortes em cirurgias abortivas. Pobres morrem mais que ricos em cirurgias de aborto (todas clandestinas), assim como morrem mais em cirurgias de apendicite, de retirada de amígdala, de parto normal... embora todas essas últimas sejam legais. Ou seja, se a mobilização pró-aborto desejasse apenas evitar mortes de pobres, seria mais eficiente começar exigindo "morte zero" no atendimento da rede pública em todas as cirurgias já legais - que, com certeza, são em número significativamente maior que mortes por aborto. Ou seja, a simples empatia pelo risco do pobre não é o mote central dos pró-aborto. (Veja bem: não quero ser sommelier de campanha. Lógico que um grupo pode se juntar para defender uma causa que não seja O grande problema. Mas meu ponto é deixar as coisas com as devidas dimensões.) Ou seja, o pró-aborto comete um erro cognitivo que Daniel Kahneman chama de "substituição da pergunta": responde-se uma pergunta próxima e mais fácil, e não a questão principal. Last but not least nesse argumento: todas as pesquisas - de Datafolha a Roberto DaMatta - mostram uma profunda REPROVAÇÃO da ideia do aborto nas camadas de renda mais baixa da população. Quem deu a procuração para os ricos defenderem os pobres? Lembro da frase: "Hoje há um (pseudo)conflito entre ricos e pobres, e os ricos querem assumir os dois papeis".

Outro argumento utilizado pelos pró-aborto - e disparado o mais fraco, embora presente em todo textão de facebook - é o (A2) "estrago" que um filho não desejado pode causar na vida dos pais. Há várias variações, desde o "E se a gravidez é descoberta em um momento de dificuldade financeira, com um dos pais desempregado?" até o feminismo raso do "abandono do pai". A resposta é que se (CA2) se trata de uma geração não acostumada a frustrações ou eventos não-planejados. Divorcia-se, é-se demitido de um bom emprego (ou do único emprego), acaba-se com uma família por um vício ou um chifre, perde-se um pai cedo demais, tem-se câncer ... e engravida-se a namorada/peguete sem querer. Tentamos evitar, às vezes dá pra evitar, às vezes não. E a solução não é esconder a cabeça debaixo da terra. A geração Ctrl+Z quer uma maneira de tentar 'dar um jeito' em pelo menos um desses 'problemas': o aborto.
Sobre a 'indesejabilidade' de um filho, cito uma questão que já preocupa os EUA e que li pela 1ª vez n'O que o dinheiro não compra' de Michael Sandel: (CA2a) os contratos de barriga de aluguel. Muitos americanos com dificuldades para engravidar começaram a alugar barriga de indianas. O problema é que, mesmo com contrato assinado (que entregariam o filho assim que nascesse), muitas indianas criaram relação afetiva com o bebê (na barriga!) e simplesmente não quiseram devolver. (Há toda uma discussão moral e jurídica por trás disso). Não é difícil entender esse 'amor de mãe'. Ou seja: mães que não transaram, não tinham parceiro, nem pensavam em ter filho ... e que criaram vínculo com o bebê. (Na verdade, acho que toda grávida tem uma relação de amor e ódio (enjôos, dores) com seu bebê, mesmo os 'planejados'.) 'Mas e as condições econômicas?' (CA2b) Fico pensando o que essas pessoas fariam se perdessem o emprego com uma criança de, sei lá, 5 anos em casa. Abandonariam? Matariam? Isso não pode ser um argumento sério. Há frustrações. Há eventos não planejados. Ponto. Quanto ao abandono do pai, novamente não se corrige um erro com outro. Parece uma coisa mimada, do tipo 'Se você não voltar, eu termino'.

Esse argumento pró-aborto ("ter apenas filhos desejados") é raso, mas é o mais perigoso. Levado a cabo, as conseqüências são catastróficas. (CA2c) Não haveria limite para o que está acontecendo na Índia: aborto de bebês femininos (aqui e aqui). Ou o que é mais comum ainda em vários países: aborto de portadores de Down. Queria evitar a Lei de Godwin, mas impossível não lembrar da busca pela "raça ariana perfeita", apenas com descendentes "desejáveis". A vida não é isso. 

O último principal argumento utilizado - e pelo qual os pró-aborto ganham o apoio dos libertários - é (A3) a "liberdade" do corpo da mulher, simbolizado pelo "meu corpo, minhas regras". Aí, o problema também são pelo menos dois. O primeiro é (CA3a) entender "liberdade" apenas como "ausência de restrição", uma definição animalesca, tribal. Intrínsecas à "liberdade" estão as ideias de "reciprocidade" e "responsabilidade". O exemplo clássico que ilustra não existir "liberdade" como conceito absoluto é o da escravidão: um homem é ou pode ser "livre" para assinar um contrato com outro homem aceitando ser escravo desse? (Ou um mais besta: posso andar pelado por aí?) Já passamos dessa fase; já entendemos que não, não pode. Destaco abaixo em nota* um trecho de Roger Scruton que considero brilhante acerca da "definição de liberdade". O "faço o que quiser" independentemente dos outros é um passo de volta à barbárie.
E o 2º erro nesse argumento é (CA3b) assumir que o feto é apenas uma extensão do corpo da mãe. Não é. (Vejam: ainda que fosse, teria toda uma questão ética presente nas discussões sobre suicídio e eutanásia. Mas não é). Trata-se de um OUTRO ser. O não-abortista, em geral, também é contra a pena de morte, pelo mesmo princípio: o Estado não deve matar um criminoso, mesmo confesso. Se devemos poupar até o culpado, como não poupar um feto?

The love of liberty is the love of others;
the love of power is the love of ourselves.
William Hazlitt

Reparem: até aqui, não usei absolutamente nenhum argumento religioso. E não precisa usá-lo. A proibição legal de matar é ANTERIOR a subida de Moisés ao Sinai para proclamar o 5º Mandamento: 'Não matarás'.

É claro que por trás desse contrargumento está o entendimento da vida como algo "transcendental", "metafísico". Esse é o grande ponto. E não precisa ser religioso para aceitar isso. Não precisamos falar de Deus pra isso. Basta olha a lágrima de um ateu ao ver seu filho nascer ou o choro de um agnóstico ao ver seu pai morrer. (Perdoem-me o sentimentalismo barato, mas faço meu ponto). Não, senhores e senhoras, a vida não é algo que se brinca de tirar ou colocar.

Por isso, toda conversa decente sobre aborto vai recair na questão 'Quando começa a vida?' E, claro, não é uma resposta óbvia. Uma proposta é tentar responder por analogia (menos ideologizada): quando ACABA a vida? Enterramos alguém com morte cerebral, em 'estado vegetativo', mas com coração batendo? É difícil alguém olhar um ultrassom de 5~6 semanas de gravidez, com meia dúzia de células fazendo barulho e dizer que aquilo ali não é vida. Reparem a vulnerabilidade que assumimos se começarmos a conceituar vida de acordo com pressões de época, e não como algo absoluto. (Nesse momento, você está pensando como o pensamento pró-aborto pode se aproximar do que já foi feito na História com judeus, negros, gays...)

Os pró-aborto me fazem lembrar de um trecho de Nassim Taleb:

If you have more than one reason to do something (choose a doctor or veterinarian, hire a gardener or an employee, marry a person, go on a trip), just don’t do it. It does not mean that one reason is better than two, just that by invoking more than one reason you are trying to convince yourself to do something. Obvious decisions (ROBUST TO ERROR) require no more than a single reason.

Tentei passar por cada ponto dos pró-aborto. Mas como contrargumento final, também entendo que basta uma única resposta para não se legalizar aborto: Não se mata.

Aprendi uma verdade que está cravada na minha carne e na minha alma, para sempre: - “Não se mata”. Mesmo o culpado, não se mata. Um homem não mata outro homem.
Nelson Rodrigues

Termino com o reverso da pergunta do início. Então, afinal, o que eu acho que o pró-aborto deseja? Ou: o que eu, não-abortista, acho que são os motivos pelos quais os pró-aborto defendem a liberação do aborto? Meu amigo Conrado definiu com precisão: 'é uma demanda de uma certa classe abastada, hedonista e falsamente libertária, pois egoísta e narcisista'. As palavras parecem fortes mas cada uma delas é necessária. Parece-me muito mais uma questão psicológica, uma carta branca do superego pra tranqüilizar a consciência.
É claro que mesmo os pró-aborto não se sentem bem com a ideia de fazer de fato um aborto. Deve ser uma questão que fica cutucando pra sempre, ou seja, 'não é bom'. Em Alma Imoral, Nilton Bonder fala sobre a tensão entre o 'bom' e o 'correto'. Infelizmente nem sempre os dois andam juntos. Muitas vezes, o bom é errado e o correto é ruim. A questão do aborto não entra nesse dilema: o não-bom deve continuar não-correto.





ps: Nem passei pelo comentário birrento (nem chega a ser um "argumento"): "Se você não concorda com o aborto, basta não fazê-lo e deixe que outros façam"; esse discurso tem a mesma honestidade e profundidade intelectual da resposta "pergunte antes ao feto se ele aceita ser morto".

pps: Óbvio que conheço amigas(o)(x)(s) que abortaram. Por favor: esse texto não é um "julgamento" de minha parte. É apenas uma discussão conceitual.

* Trecho de 'As vantagens do pessimismo' de Roger Scruton:
(...)O Contrato Social de Rousseau (...) apresenta um novo conceito de liberdade humana, de acordo com a qual liberdade é o que nos resta quando afastamos todas as instituições, todas as restrições, todas as leis e todas as hierarquias. E seus seguidores acreditavam que essa liberdade, uma vez obtida, exprimir-se-ia na felicidade e na fraternidade da espécie humana, e não naquela 'guerra de todos contra todos', que Hobbes descreveu como o verdade 'estado natural'.
(...) a defesa apaixonada [desse conceito] da liberdade foi mais tarde utilizada para desculpar a tirania dos revolucionários.
As instituições, as leis, as restrições e a disciplina moral fazem parte da liberdade e não dos seus inimigos, e a libertação dessas coisas leva rapidamente ao fim da liberdade.
A 'liberdade' disponível num estado natural é uma ilusão - uma mera 'falta de restrição', mas sem a segurança e o reconhecimento que dota a liberdade com os seus atributos distintivamente humanos.
A liberdade genuína só aparece quando (...) o conflito se resolve num estado de reconhecimento mútuo. (...)
O preço dessa liberdade é o preço da reciprocidade.
A liberdade é algo que adquirimos. E adquirimo-lo através da obediência. Só a criança que aprendeu a respeitar e acatar os outros pode respeitar-se a si mesma.
A liberdade não é um dom da natureza mas o resultado de um processo educativo, algo que temos que trabalhar para adquirir através de disciplina e sacrifício.

Reconhecimento de que a liberdade não é um dom natural mas um artefato que construímos em conjunto através da nossa pertença social partilhada.